Este
post é uma espécie de continuidade da
idéia apenas esboçada
no post anterior -de que romances com uma "sintaxe
cinematográfica" poderiam ser um
fator de inovação da linguagem romanesca. Embora eu não tenha encontrado uma resposta definitiva, logo após a publicação do
post deparei com dois artigos que me fizeram pensar mais a respeito, ampliando o escopo do problema.
O primeiro foi
um artigo publicado no The New York Times, que comenta sobre "
Level 26:
dark origins", o novo romance de
Anthony Zilker, criador da série
CSI. O romance, lançado em
setembro, está disponível, além da versão impressa, em formato e-
book, áudio livro e também para
iPhones. Mas não é só isso: os leitores do romance são encorajados a visitar um site com vídeos baseados
em passagens do livro.
O
NYT chama livros como "
Level 26" de "
hybrid books" ou, de forma ainda mais ousada, de "
vooks" (neologismo de gosto duvidoso, sem dúvida). Ainda neste artigo, Judith
Curr, editora da
Atria Book, diz que "você não pode mais ser linear com o seu texto" e que "todo mundo está tentando pensar em como livros e informação [
multimídia] ficarão melhor combinados no século 21". Esta combinação do livro com vídeos e sites, diz-se,
proporcionarão uma
interação maior do leitor com a obra, em uma experiência cognitiva que não se limitará mais a leitura do que está no papel.
Além da
interação leitor-obra, as redes sociais e os blogs poderão ser meios de criar/potencializar um tipo de
interação que nos anos passados era muito mais difícil (e na maioria dos casos impossível): a
interação autor e leitor. Através destas ferramentas, o autor pode escrever um livro
online e, mediante os comentários recebidos, promover (ou não) alterações. Susan
Katz, editora da
Harper Collins
Children´s
Books, aposta que no futuro será mesmo muito comum que "o autor seja visto como um líder de um grande grupo e escolherá a dedo a partir destas sugestões [dos leitores]". Isso, aliás, já está acontecendo:
Kevin Kelly, desde 2004, está escrevendo um livro que conta com a participação de muitos de seus leitores. Cada
post é discutido por uma série de pessoas em todo o mundo, e o próprio
Kelly incentiva a prática
neste texto onde explica suas motivações
colaborativas.
O processo de leitura é de natureza linear. Formamos palavras através de letras, orações através de palavras e enfim textos com a (
co)ordenação de tudo isso. E essa linearidade típica da leitura ocorre essencialmente no tempo. Os elementos
discursivos são como que somados, colocados um na "frente" do outro, e daí se produzem os sentidos. Agora, com todas as possibilidades de
interação promovidas por vídeos e redes sociais nos processos de leitura, ocorre como que uma quebra neste percurso linear. Romances como "
Level 26" pretendem ampliar a experiência cognitiva, conferindo-lhe aspectos de
simultaneidade. O texto "salta" do papel de uma forma muito mais concreta do que apenas na imaginação do leitor.
Esssa mescla do visual com o romance é algo ruim? Nenhuma resposta convincente pode ser dada a esta pergunta, pelo menos por enquanto. Considero até mesmo a minha pergunta um absurdo: juízos de valor sobre fatos culturais em geral deformam nossa visão sobre o fato. E o fato é que o romance,
gênero literário essencialmente
problemático (pois produto do
zeitgeist da modernidade), está sofrendo abalos consideráveis em um contexto onde a imagem ganha espaço cada vez maior. Já em 1974 o alemão Adorno tinha dito que
"Assim como a pintura perdeu muitas de suas funções tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indústria cultural,
sobretudo para o cinema."
E mais isso aqui:
"Noções como a de 'sentar-se e ler um livro' são arcaicas. Isso não se deve meramente à falta de concentração dos leitores, mas sim à matéria comunicada e
à sua forma." (as duas citações extraídas de Notas de Literatura I, página 56, Duas Cidades/Editora 34, 2008)
As partes
grifadas corroboram meu ponto de vista: a forma do romance está aquém de nosso tempo. Sua forma não
corresponde mais totalmente aos anseios do homem
atual. Isso já está sendo discutido há tanto tempo que me sinto idiota ao ler o que escrevi (digo isso como um alerta, para que o leitor não pense que descobri isso sozinho; sou de um convencimento absurdo, mas para certas coisas é preciso ter modéstia); e apenas para lembrar uma experiência radical de questionamento da linguagem romanesca, eu cito "Memórias sentimentais de João
Miramar", de
Oswald de Andrade, romance devastador que empurra os limites expressivos do romance para um pouco mais além das linhas estabelecidas naquele Brasil de 1924.
Voltemos ao mundo dos processos de leitura e das inovações promovidas por
vooks e redes sociais.
Neste artigo interessantíssimo do site
The Frontal
Cortex, discute-se como a leitura pelo computador se relaciona com os processos
neurais. O que me chamou a atenção não foi saber que a dificuldade e
incômodo que muitos expressam ao ler pelo computador é,
neurologicamente falando, o mesmo que nos
afeta ao ler um texto impresso com fonte não amigável (por exemplo,
a letra gótica medieval), e que a prática contínua da leitura
online elimina o desconforto da mesma forma que nos acostumamos com fontes
indecifráveis (é incrível como a minha namorada, que é mais nova do que eu, lê com muita naturalidade no computador, e isso me faz pensar que há uma questão
geracional ainda não devidamente estudada sobre por que as pessoas reclamam que não gostam de ler no computador). O que me suscitou interesse nesse artigo foram as palavras da
neurocientista Maryanne Wolf, que acenou para a necessidade de estudar, até mesmo fisiologicamente, os processos cognitivos das novas gerações, submetidas que estão a vídeos, fotos e
gifs animados que interferem no processo de leitura. Nunca se produziu tanto conhecimento e livros como hoje em dia, mas frente a tantas
distrações , segundo ela será cada vez mais difícil a formação de leitores capazes de imersão profunda em textos longos e complexos.
Cortázar disse que o romance não tem leis, "a não ser a de impedir que a lei da gravidade entre em
ação e o livro caia das mãos do leitor." Hoje a literatura ocorre além das páginas dos livros e se funde com vídeos, música, discussões em redes sociais. Muitas vezes, o romance que cai das mãos do leitor só faz isso para deixá-las livres e assim investigar um site onde o personagem conta detalhes da trama apenas sugerida nas páginas de papel. Se isso não é uma reconfiguração das leis do romance, então não sei o que pode ser.