12.28.2013

Comentários sobre o livro "Os filhos místicos do Sol"



O livro "Os filhos místicos do Sol" foi lançado em 1971 em Paris, pela Editións Robert Laffont, e a edição brasileira chegou às livrarias em 1976 através da Difel Difusão Editorial, como um dos livros da coleção "Enigmas de todos os tempos". Eu não sei exatamente quantos livros compõem essa coleção, mas entre eles conheço outros três: "O livro da Tradição", "Hitler e as religiões da suástica" e "Hitler e a tradição cátara". Todos esses livros foram escritos pela dupla Michel e Jean Angebert, pseudônimos dos franceses Michel Bertrand e Jean-Victor Angelini, respectivamente. É bem fácil encontrar "Os filhos místicos do Sol" e "O livro da Tradição" no Estante Virtual; já os outros dois são mais raros, sendo que o último é praticamente impossível de ser encontrado e, com uma boa dose de sorte, não sairá por menos de R$ 200,00.

Ante de irmos ao livro, um parênteses para que você, (talvez) um futuro leitor de "Os filhos místicos do Sol", não se decepcione: a tradução é um lixo. E não, eu não li o original francês e cotejei os textos, assinalando as imperfeições com uma paciência algo filológica - você as percebe claramente pela falta de fluência com que o texto se desenrola em determinadas partes. Há trechos onde as orações simplesmente não se encaixam, e é necessário ler e reler para que o sentido então floresça. Nas 341 páginas da obra, curiosamente, essa deficiência (que presumo ser da tradução, posto que já tive a oportunidade de debater erros tradutológicos em outra obra, de outra editora, e essa falta de "fluência" se repetia de maneira muito similar) apareceu mais monstruosamente presente no epílogo. Seria um indício de que a "tradutora", cansada, ficou ainda mais displicente, produzindo um texto com menos cuidados, uma tradução quase literal, palavra a palavra, prenunciando em quase três décadas os equívocos do Google Translator? [uma outra hipótese: a dupla francesa realmente escreve mal. Mas não acho que é o caso. Franceses podem ser uns porcalhões, mas escrevem bem, com elegância, vide o efeito que a vivência parisiense produziu no estilo de autores tão díspares como Cioran e Cortázar].

Deixando de lado essas questões sobre a qualidade duvidosa da tradução, a tese do livro pode assim ser resumida: a influência decisiva (e por vezes terrível) que o Sol tem sob a vida dos seres humanos. Partindo de uma premissa, por assim dizer, astrológica, ou se preferirem o dito hermético "tanto em cima como embaixo" - isto é, que a movimentação e a posição dos astros no cosmos influencia indubitavelmente o destino dos homens em particular e da humanidade como um todo - os autores assinalam que nessa rede infindável de forças cósmicas, o Sol tem a primazia, sendo o centro de orientação das estrelas e planetas que compõe o Zodíaco. Premissa inegável, de fato, desde que você obviamente não entenda por astrologia essas vulgaridades baratas de "adivinhações" presente nos horóscopos diários de jornais e sites "esotéricos", que nada mais do que uma versão bastante deformada e "profana" da autêntica Astrologia, ciência antiquíssima (talvez a mais antiga a permanecer entre nós, mesmo que como um eco), e que a ânsia "objetiva" dos cientistas modernos relegaram a um patamar inferior de "crença", colocando a Astronomia como verdadeiramente "científica".

Na sua misteriosa alquimia, o Sol no plano astral condensa as forças inorgânicas imensas, as energias contidas no cosmos, e essa vitalidade prodigiosa, que parece constantemente renovada, participa verdadeiramente do poder divino e, por trás do Sol visível, deslumbrante luminária, permanece como um braseiro imenso, infinitamente mais vasto e mais terrível, o Sol invisível, o Sol negro dos magos e dos alquimistas, assim chamado devido ao seu terrível brilho, ao nossos olhos emanação do Logos Divino... Outrossim, não é dado aos humanos, pelo menos nessa vida, contemplar esse fogo espiritual, de tal forma brilhante que faria arder a nossa alma pela eternidade. Em compensação os textos sagrados da humanidade, tal como o Livro dos Mortos egípcio ou o Bardo Thödol tibetano, presumem essa luz que poderemos contemplar do outro lado do espelho, isto é, depois de nossa morte terrestre. É o Sol de Osíris dos sacerdotes de Mênfis, a "luz azul" do plano budístico, o "Sol dos mortos", o que, sozinho, guia as almas para o Espírito e transcende o mistério do Conhecimento Supremo. O segredo do logos, o conhecimento do Sol negro, caminho da vida e da morte, tal era a chave dos grandes mistérios conhecidos em outros tempos dos colégios de iniciação, dos pontífices atlantes, dos sacerdotes egípcios e dos grandes druidas antes da extinção da luz da Tradição soprada por um "vento de loucura" nascido em alguma parte da Judéia. (página 4)

Mas o livro não é simplesmente uma interpretação astrológica de eventos e personalidades históricas. A referência teórica é mesmo anterior à Astrologia, considerada não em si, mas tão somente como uma herdeira de uma sabedoria muitíssimo mais antiga, que extrapola os limites da história oficial, do que hoje é tomado como "verdade histórica"; uma sabedoria que permanece codificada nos ritos de mistério da Antigüidade, nos tratados alquímicos da Idade Média, nas construções templárias repletas de simbolismos, e que possuem, segundo os autores, todos eles um mesmo tronco comum, perdido na névoa dos templos - a mítica Atlântida.

O que acabou de ser dito - Atlântida - surge quase como uma anátema sobre mim para alguns. Lida com espanto, a palavra remete aos nefastos programas da History Channel (que contribuem, através do recurso do ridículo, em colocar véus ainda mais pesados sobre determinadas questões, com o estratégico objetivo de obnubilar o entendimento geral, mas isso já é matéria para outro texto). Remete a fantasias sem nexo e a uma retórica "New Age" que é apontada com cinismo, cinismo "irreverente" repetido bilhões de vezes em memes que são o resumo e objeto cultural mais do que representativo da bobagem pós-moderna. Sobre isso, sobre esses possíveis olhares de reprovação ao se invocar Atlântida nesse texto, nada mais a dizer do que o que segue:

(...) enquanto do ponto de vista da "ciência" se dá valor ao mito pelo que ele poderá fornecer de história, dá-se pelo contrário valor à própria história pelo que ela nos pode fornecer de mito, ou pelos mitos que se insinuam em suas malhas, como integração do "sentido" da própria história (Revolta contra o mundo moderno, edições Dom Quixote, 1989, página 16)

Ou seja: a suposta "cientificidade" do History Channel e outros programas/publicações do tipo está bastante distante do ponto de vista sustentado pelos autores, que se aproxima muito do ponto de vista evoliano. Eles buscarão, ao analisar a trajetória de oito personalidades históricas - Akhenaton, Zoroastro, Alexandre o Grande, Juliano o Apóstata, Frederico de Hohenstaufen, Napoleão, Hitler e Mao Tsé-Tung - a influência que o mito do Sol desempenhou na biografia de cada um desses homens, homens que em diferentes épocas e de diversos modos promoveram gigantescas mudanças na história humana.

O capítulo dedicado a Akhenaton foi para mim o mais interessante. Esse faraó misterioso, que revolucionou o Egito em 1.300 a.C. implantando a primeira religião monoteísta da história - o culto ao Sol, a Aton - enfrentou o poderoso clero do deus Amon, tornou ilegal o culto aos antigos deuses e proclamou a si e a sua esposa Nefertiti como divinos e únicos representantes do Sol na terra. A nova religião tinha como principal sacerdote, justamente, o faraó: cristalização perfeita do papel imperial e religioso em concordância, próxima à configuração tradicional que estabelece que os poderes espiritual e temporal devem ser um único poder. E o mais interessante: Aton, o Sol, não deveria ser personificado em uma estátua, bem ao gosto dos egípcios. A única representação permitida de Aton era o disco solar, feito em ouro, que posicionado no centro-alto do templo, recebia os primeiros raios do Sol, resplandecendo em um milagre de luminosidade - a adoração feita desse modo assemelha-se aos primórdios da religião romana, onde os deuses eram tidos como forças, como numen, presentes no universo e envolvendo a tudo e a todos os momentos da vida.

Outro capítulo que merece destaque é o último (na verdade, um epílogo) dedicado ao "Sol Vermelho" de Mao Tsé-Tung. Tendo em mente o leitor que o livro foi escrito em 1971 e, portanto, as informações sobre a China eram infinitamente escassas, a pesquisa realizada pelos autores por si só já merece aplausos; mas mais do que isso, trouxe para mim aspectos sobre a Revolução Cultural que eu desconhecia completamente, como por exemplo a Sociedade Hung, uma milenar sociedade secreta, espécie de Maçonaria chinesa, para fazermos uma comparação extremamente grosseira. Segundo os autores, os quadros do alto comando do Partido Comunista são todos membros da sociedade Hung. De fato, parece crível: a China pode ter hoje uma abertura muito maior ao mundo ocidental, e recentemente, em seu plano quinqüenal, acenou para uma liberalização ainda mais acentuada. Mas a hierarquia do Partido e o controle absoluto da sociedade chinesa permaneceram intactos, o que demonstra a existência de um "núcleo duro" e uma centralização total do poder. Há sempre uma aura de mistério, de algo não dito, sobre a China e suas intenções no cenário geopolítico mundial. Citamos um trecho do livro, que na verdade é citação de um outro, "L´agonie de la Vielle", feita pelos Angebert:

A situação... permite prever um terremoto capaz de engolir nossa Atlântida... Três catolicismos desmoronam: o catolicismo de Roma, o de Washington e o de Moscou - e sobre suas ruínas medra silenciosamente o joio do nacionalismo (...) Suprema irrisão: se um sentimento internacional nascer, encontrará amanhã impulso e fundamento na ameaça que representarão um bilhão de chineses nacionalistas, xenófobos e armados até os dentes. Ele será pois branco e racista. Nesse dia, sobre o imenso campo das ruínas da moral cristã (a moral socialista foi apenas uma tradução moderna da anterior), uma ordem nazificante estenderá a vasta envergadura de suas asas. Do Valhalla, Hitler poderá fazer esta reflexão: "Enganei-me somente da data. Fui muito apressado." Sim, o presidente Mao, "Sol vermelho, irradiante, glória do Universo e flor maravilhosa da criação", pensa na reação que arrisca a desatar, ou bem, está de tal forma confiante na inelutável decadência da sociedade ocidental? Sabe-se que alemães e japoneses pagaram muito caro essa tendência de subestimar o adversário... Passar-se-á o mesmo amanhã?

A dimensão apocalíptica do aviso nos parece ridícula. Vemos a China apenas pelos olhos da mídia como um país "comunista" que se rendeu ao capitalismo. Mas será apenas isso mesmo? O enorme apetite por commodities faz a China comprar minérios, grãos e combustível de todas as partes do mundo. No recente leilão do pré-sal, um dos consórcios é chinês - trocaremos a tecnologia deles com o petróleo pátrio. E toda essa energia levada ao solo chinês, que fins terá além da óbvia manutenção da enorme população chinesa? A sociedade Hung possivelmente ainda permanece com influência nas decisões estratégicas do país, e talvez ainda alimente o sonho de dominação do "Sol vermelho" de Mao Tsé-Tung. É necessário, portanto, ver além dos véus e entender os sinais que indicam sentidos além dos óbvios.

Enfim, "Os filhos místicos do Sol" apresenta uma releitura de biografias históricas sob uma perspectiva nada oficial. Para os que apreciam temas esotéricos e interessam-se pela Tradição, é uma leitura complementar que possibilita ver o jogo de forças aeônicas atuando na História e exercício interessante para descobrir, nas entrelinhas, as formas tradicionais de vida em choque com suas antíteses.

10.30.2013

Germinal


essa notícia e, na hora, lembrei-me desse trecho do Germinal:

"Era a visão vermelha que arrastaria a todos, fatalmente, numa dessas noites sangrentas desse fim de século. Sim, uma noite, o povo em torrentes, desenfreado, correria assim pelos caminhos, gotejando o sangue burguês, exibindo cabeças, semeando o ouro dos cofres arrombados. As mulheres gritariam, os homens abririam suas queixadas de lobos, prontos para morderem. Sim, seriam os mesmos farrapos, o mesmo matraquear de tamancos grosseiros, a mesma turba assustadora, suja, de hálito fétido, varrendo o mundo caduco com a sua irresistível avalancha de bárbaros. Arderiam incêndios, nas cidades não ficaria pedra sobre pedra, regredir-se-ia à vida selvagem das florestas após o grande cio, o grande rega-bofe, e, que os pobres, numa só noite, extenuariam as mulheres e esvaziariam as adegas dos ricos. Não sobraria nada, as fortunas e os títulos das situações adquiridas desapareceriam, até o dia em que talvez desabrochasse uma nova sociedade. Sim, eram essas coisas que estavam passando pela estrada, como uma força da natureza, e vinha delas o vento terrível que lhes açoitava os rostos."

Zola, esperançoso, é também cauteloso: diz que "talvez" desabrocharia uma nova sociedade. No incêndio que assola a Zona Norte de São Paulo, parece-me que dos destroços pouca coisa sobrará, que a ânsia de destruição minará todas as possibilidades de renascimento. 

O niilismo em sua mais crua cristalização.  O vento terrível da revolta popular. Os sintomas claros - e cada vez mais evidentes - do fim de um ciclo. Sigo como um observador curioso, procurando ler nas entrelinhas dos noticiários as mensagens ocultas e tentando compor um cenário mais abrangente de tudo.  

10.11.2013

Algumas razões de não escrever mais aqui


Foi com algum tipo de surpresa que ontem, ao visitar o blog, constatei que em 2013 realizei simplórias seis postagens. Algumas poucas pessoas que acompanham as postagens aqui devem ter considerado a ausência como a morte do blog. Entretanto, eu nunca o considerei morto, talvez por uma espécie de mórbida afeição por coisas moribundas. Mas para prestar uma espécie de satisfação a todas as almas que aqui vinham, deixo algumas palavras de esclarecimento.

Se, nos anos anteriores, eu já tinha meu cotidiano marcado por um ritmo de trabalho frenético, 2013 tratou de acelerar ainda mais esse aspecto de minha vida. Nunca trabalhei tanto como nesse ano. Somado a isso, iniciei uma pós-graduação que consumia o já escasso tempo livre, como forma de aprimorar minhas qualificações profissionais. Em resumo: não contente com a quantidade de trabalho que eu tinha, tratei de aumentar o ritmo e criar condições para que novas responsabilidades sejam adquiridas no futuro. 

A esses dois fatores juntamos a preguiça. Na verdade, não é preguiça, mas um esgotamento físico e mental que me assola quando cruzo a porta de casa. É o preço a ser pago para tornar-se "eficiente". Busco conforto, então, em um prato de comida, na música (ouço agora os acordes de Dylan Carlson, esse oásis de calmaria em dias tão sempre repletos de caos), na leitura ou simplesmente na técnica que mais gosto: deitar no sofá, acender um cigarro e como que submergir nele, deixando que as almofadas me abracem, até que uma sonolência me capture - e então levanto, vou para o quarto e durmo, para começar no dia seguinte tudo de novo.

A pedra rola até o topo, cai, e você vai lá empurrando de novo para cima.

Gosto de imaginar que a vida é assim como todo mundo: envelhecemos e nos tornamos todos iguais. É extremamente confortável imaginar que se trata de um fatalismo, que mais cedo ou mais tarde até o mais irascível fã do Crass vai cogitar em fazer um seguro de vida. Mas isso é só uma crença, e como todas as crenças é duvidosa, em geral existe apenas como um frágil argumento para tornar a vida mais tolerável. Toda crença tem um pouco desse poder de permitir ao crente uma estratégia de fuga quando a situação se torna crítica. A minha é ver a minha vida se tornar medíocre e considerar que a de todo mundo é igual. 

O caminho para a mediocridade tem muita relação com a passagem do tempo e o acúmulo de compromissos que isso traz. Com vinte anos, eu tinha um conjunto de preocupações mais ou menos reduzido, mas certamente sem comparação com os que tenho hoje. Compromissos que envolvem dinheiro principalmente: esses são os mais nocivos. É através dessas dívidas que se multiplicam no tempo que somos arrastados para a vala comum dos vencidos. O dândi se transforma no proletário quando os juros do cheque especial batem à porta. A mediocridade é a transformação das relações humanas em um tipo onde o peso da matéria se acentua e passa de coadjuvante a protagonista - quanto mais envolvida nos véus da influência materialista, mais medíocre uma vida se torna. E isso não significa que apenas existências plenas de recursos materiais sejam medíocres. Não estou fazendo uma elogio do voto de pobreza, tão ao gosto desses tempos contaminados por uma moral de escravo. A vida medíocre se instala assim que preocupações materiais se tornem as principais, ocupando a maior parte do tempo/energia que temos.

Então, sempre quando chego em casa, olho com desdém um bar que fica em uma esquina próxima. Sempre vejo lá, sentado na mesma mesa, um homem gordo, que fuma e bebe às vezes sozinho, às vezes acompanhado. Tento imaginar que tipo de vida ele tem e só consigo vê-lo suado, rindo aquela sua gargalhada imbecil, rodeado de outros igualmente imbecis. Gosto de me imaginar uma pessoa incrivelmente mais interessante do que aquele gordo - afinal eu chego em casa e leio, enquanto ele fica lá se matando e engordando como um porco; eu escuto música decente, enquanto aquele infeliz tem uma experiência musical baseada em ritmos de FM e sons de botequim; mas principalmente eu chego em casa tarde, pois estava trabalhando, enquanto que ele fica todo dia em um bar jogando conversa fora. Em uma palavra: sinto-me superior àquele homem gordo mas, no momento seguinte, penso que tudo isso é simplesmente inveja, recalque, que na verdade tenho muito em comum com aquele homem que não conheço e já odeio, e então calo meus pensamento, subo pelo elevador, entro em casa, deito no sofá e morro.

Para começar no dia seguinte tudo de novo.

Entre uns momentos de descanso e outro, tenho rabiscado textos sem fim em um caderno. Eles fazem parte de um fanzine, que compilará uma série de pequenas histórias, cujo tema é o encontro amoroso. Eu já publiquei aqui no blog algumas dessas histórias, mas acho que quando se trata de amor, a tela do notebook é demasiado pobre. Amor é algo que se faz na base do tato, do encontro entre duas (ou mais) epidermes, é algo que é inseparável do contato. Por isso a insistência de levar para o impresso essas pequenas histórias, que estão sendo rabuscadas, geralmente, aos finais de semana. Dar qualquer prazo de quando isso estará pronto seria uma mentira a mais entre tantas que já contei, então digo apenas que, algum dia, se os deuses assim quiserem, essa publicação ficará pronta.

Isso tudo para dizer que cada vez menos frequentarei o Dissolve Coagula. Pelo menos até o final do ano. Não sei se é pelo fato de eu ter feito da Internet o meu ganha-pão, mas no tempo livre que sobra por vezes tenho um ciclópico cansaço de fazer qualquer coisa relacionada com a rede. Nos meses mais recentes, eu até cheguei a gastar um tempo considerável com redes sociais, me metendo inclusive em uma série de discussões. Mas foi tamanha a energia empreendida nessas "interações" que até isso me cansou e, além disso, sou péssimo em argumentar e defender meu ponto de vista, ainda mais em um ambiente onde, claramente, ninguém quer discutir nada, mas tão somente fincar pé em uma posição de modo bastante irrefletido e dogmático, ou então fazer piada com tudo e todos - e esse clima "irreverente" me cansou a um ponto que bloqueei tantas pessoas que preferi abandonar o uso do meu perfil, por não fazer mais sentido. No final das contas, a lição aprendida é que discussão na Internet é igual a Para-Olimpíadas: mesmo que a vitória seja sua, no final você sempre será um retardado. 

Escrever esse post enquanto os acordes do senhor Carlson ecoam pela sala foi uma exceção prazerosa, mas para esse sabor permaneça é necessário saber dosá-lo adequadamente. Quem sabe no final do ano escrevo de novo aqui. Agora, volto para o cotidiano estupidificante que me faz pensar o que estou fazendo de errado e se algum dia vou acordar com a sensação de que é tarde demais para mudar.

6.02.2013

Resenha de "O cemitério de Praga", de Umberto Eco


Comecei a ler Eco através de seus textos sobre semiótica e tradução (especialmente o "Quase a mesma coisa", livro saborosíssimo sobre a arte da traduzir, mas que certamente agrada não somente aos profissionais de tradução). Só depois é que fui ler "O nome da rosa" e "O pêndulo de Foucault" - esse último, aliás, é até agora o meu preferido, pela sua estrutura narrativa completamente sinuosa, os cruzamentos de dimensões temporais, os testemunhos escritos que constroem a ação narrativa, as teorias da conspiração que surgem mesclando política, esoterismo, sociedades secretas... E nesse romance mais recente, O cemitério de Praga, todos esses elementos estruturais comparecem mais uma vez, como marca indelével do estilo do autor, mas com sabores e cores novos, que me fizeram questionar em qual ramificação romanesca o livro se encaixaria: é um romance histórico? Ou um adepto do realismo fantástico? Sem conseguir muitas respostas, compartilho a seguir algumas das minhas impressões sobre a leitura.

"O cemitério de Praga" é um livro de 478 páginas repartido em 27 capítulos que contempla o período de, aparentemente, pouco mais de 60 anos (de mais ou menos 1830 até 1898) da vida do protagonista Simone Simonini. Nesse longo percurso, o leitor encontra no primeiro capítulo a voz de um oculto Narrador que descreve o ambiente: uma residência pequena, nos redutos mais pobres de Paris, onde há um cômodo repleto de móveis e objetos de decoração antigos, e no outro, entre perucas e roupas de manequim, uma espécie de diário, sobre o qual ele diz o seguinte:


“Tampouco espere o Leitor que o Narrador lhe revele que ele se surpreenderia ao reconhecer no personagem alguém já nomeado precedentemente, porque (dado que essa narrativa começa justamente agora) ninguém foi nomeado antes, e o próprio Narrador ainda ignora quem é o misterioso redator, propondo-se a sabê-lo (junto com o Leitor) enquanto ambos bisbilhotam intrusivos e acompanham os sinais que a pena daquele homem está traçando sobre aqueles papéis.”

Então desde o começo sabemos: a história que leremos está, na verdade, presente em uma espécie de diário, que o Narrador encontrou (não sabemos em que circunstâncias) e que compartilhará conosco, seu Leitor. Na verdade, serão dois diários distintos: o de Simone Simonini e do abade Dalla Piccola. Temos, então, três registros escritos que se alternam durante o romance: Narrador, Simonini, Piccola. Não sei se na versão italiana a diagramação resolveu isso como na edição brasileira, onde cada um desses registros aparece com uma fonte diferente – talvez como forma de guiar os olhos do leitor pelo labirinto de datas, lugares e personagens secundários que surgirão. 


Por ser um diário algo tardio, o romance se estrutura em duas dimensões temporais diferentes: uma é a que está presente nas datas do diário, iniciado em 24 de março de 1897 e que termina em 20 de dezembro de 1898 (praticamente um ano e oito meses); a outra é dimensão de tempo da história contada nos diários, que reúne acontecimentos de 1830 até a data final de 1898. Essas duas dimensões temporais encontram um ponto de suspensão nas intervenções do Narrador: atuando como um compilador dos fatos, um leitor em primeira mão dos diários, ele também comenta trechos de ambos, resumindo passagens e fazendo citações; compartilha, assim, com o leitor (que somos nós), as mesmas perguntas que temos ao longo da leitura: afinal, quem é Simonini? Quem é Dalla Piccola? Por que ambos estão sem memória? São, como suspeitam, a mesma pessoa, ou melhor, duas pessoas diferentes que compartilham o mesmo corpo? 

Além da dimensão temporal e da confusão em torno da identidade dos protagonistas, outro ponto a salientar são os personagens: todos, com exceção de Simone Simonini, são figuras que realmente existiram, não foram inventados pelo autor. Os jornais e revistas citados (e são dezenas deles) também o são. Até mesmo os acontecimentos que se desenrolam têm como pano de fundo fatos históricos: Simonini, após a morte do avô, junta-se ao exército de Garibaldi, nas suas campanhas na Itália, com o intuito pouco nobre de frustrar a insurreição; participa, como um agente secreto contra-revolucionário, da Comuna de Paris; envolve-se no episódio do caso Dreyfus, sendo peça fundamental no complô para incriminar o oficial judeu. Uma situação bem interessante e quase anedótica ocorre em um restaurante parisiense, onde Simonini encontra um tal doutor Froïde, que lhe fala sobre suas pesquisas sobre hipnose e o uso da cocaína como tônico fortificante... Ele desconfia das palavras desse desconhecido Froïde (sim, essa é grafia que aparece no diário de Simonini) principalmente porque ele é, certamente, um judeu – e o ódio contra os judeus, assim como uma intensa glutonia e misoginia, é o que mais caracteriza o inescrupuloso Simonini. 

Aqui entramos um pouco mais no tema do livro em si, que é a gênese dos Protocolos dos Sábios de Sião, o célebre texto anti-semita divulgado pela Okhrana, a polícia secreta russa, em 1897, que fala sobre um plano de dominação mundial arquitetado pelos judeus. Esse livro, de origem bastante controversa, é um daqueles registros que extrapolam suas limitações textuais e promovem verdadeiros abalos sísmicos na sociedade. É bastante difícil imaginar um Hitler, por exemplo, em um mundo que não tivesse conhecido os Protocolos. Ainda hoje, grupos neonazistas acreditam piamente na autenticidade desse texto, mesmo com todas as controvérsias sobre sua origem – e é essa origem controversa que Eco explora no romance, com doses cavalares de ironia.

O livro é recheado de ilustrações da época em que se passam os acontecimentos, provenientes do acervo do Umberto Eco, colecionador voraz. Essa aqui é sensacional.

Resumindo tremendamente a história, Simonini ouvia sempre do avô histórias de que os judeus eram “o povo ateu por excelência”, que matava crianças em rituais sanguinários, que venerava o demônio, que em conjunto com os maçons (cujos líderes eram todos judeus) fazia seus planos de agitação política puramente com fins de acumular todo o ouro do mundo e assim dominar completamente a Humanidade. Anos mais tarde, mediante seu envolvimento com a espionagem e os serviços secretos da Itália e da França, começa a perceber o quão os judeus eram mal vistos por esses serviços; que em todos os países europeus havia casos de judeus envolvidos com atividades ilícitas; que, sendo ele agora um agente com certa credibilidade, poderia ganhar uma pequena fortuna se, valendo-se de sua habilidade para criar documentos falsos, fizesse chegar às mãos das pessoas certas algo que comprovasse que os judeus tinham realmente um plano secreto para dominar o mundo. Esse documento precisaria ser crível, antigo, original, e deveria agradar seja quem fosse que o comprasse: assim, mediante adulterações de fontes jesuíticas, admiração por Dumas e um espírito inventivo sem igual, Simonini começa a confeccionar o texto. 

Acompanhamos a produção desse documento, que levou anos para ficar pronto e, redação após redação, foi recebendo as influências de diversos setores, todos transbordando anti-semitismo: os jesuítas, grupos maçons, os russos.  E de acordo com os ódios particulares de cada um deles, Simonini vai construindo a delirante versão do manuscrito, camada após camada, pacientemente esperando o comprador certo. E é de Herman Goedsche, o novelista alemão (que realmente existiu) que aparece no romance como um dos principais inimigos de Simonini, que são proferidas as palavras mais certeiras sobre o anti-semitismo que anima a ambos, com uma dose de ironia genial:

“- Convém retomar as palavras de Lutero, quando dizia que os judeus são maus, venenosos e diabólicos até o miolo; foram durante séculos nossa praga e pestilência, e continuavam sendo no tempo dele. Eram, nas palavras de Lutero, serpentes pérfidas, peçonhentas, ásperas e vingativas, assassinos e filhos de demônio, que mordem e lesam em segredo, não podendo fazê-lo abertamente. Diante deles, a única terapia possível seria uma schärfe Barmherzigkeit – Goedsche não conseguia traduzir, e entendi que deveria significar uma “áspera misericórdia”, mas que Lutero queria falar em ausência de misericórdia. Convinha incendiar as sinagogas – e aquilo que não ardesse deveria ser coberto por terra para que ninguém pudesse jamais ver uma pedra restante –, destruir as casas deles e fechá-los em um estábulo como os ciganos, tirar-lhes todos aqueles textos talmúdicos nos quais só eram ensinadas mentiras, maldições e blasfêmias, impedir-lhes o exercício da usura, confiscar tudo o que possuíam em ouro, moeda sonante e jóias, e colocar nas mãos dos rapazes judeus machado e enxada e nas mãos das moças, roca e fuso, porque, comentava Goedsche com risotas, Arbeit macht frei, “só o trabalho liberta”. A solução final, para Lutero, seria expulsá-los da Alemanha, como cães raivosos.”

Certamente, a intenção de Eco não era fazer de seu romance uma trincheira anti-semita (engraçado até mesmo lembrar que, na época de seu lançamento, ouve alguns resmungos de grupos ultra-ortodoxos sobre o livro – que certamente não o leram) mas ele conseguiu mostrar como o sentimento antijudeu era razoavelmente comum em muitos círculos europeus, inclusive entre vários extratos populares; e em como nesse caldo cultural de intolerância bastou algumas palavras fantasiosas (as de Simonini) para fazer nascer um sentimento de ódio disseminado. Isso não se aplica apenas ao anti-semitismo. Na verdade, julgo que o principal argumento do livro é que a construção de “verdades”, em muitíssimos casos, não passa de um ato discursivo: diz-se, e algo já é. O Verbo pairando sobre as águas. A voz dos homens criando suas realidades. E hoje temos quantas vozes criando verdades? Amplificadas por ondas invisíveis, as verdades disseminam-se em televisores, celulares, telas de computador, salas de cinema. A neutralidade impossível dos conteúdos que circulam e que nos atingem em todas as direções é algo que já ninguém mais acredita há pelo menos duas décadas, e mesmo assim nem mesmo entre os setores mais esclarecidos isso foi levado à sério até suas últimas conseqüências, isto é, em assumirmos que até em uma porcaria de um iPad há um valor ideológico cristalizado (virtualização do conhecimento, da experiência de comunicação). Temos legiões de Simoninis, agentes secretos, produtores de verdades, atuando nas redações dos jornais, nas agências de publicidade, nos estúdios de cinema, sempre prontos para construir novas verdades customizadas ao gosto do freguês. Verdades que, uma vez proferidas (como fala do âncora na TV, como texto na tela, como imagens no filme), tornam-se essa complexa e imensa fraude que chamamos de realidade.

Seria, para fechar, O cemitério de Praga um romance histórico, por ter como pano de fundo acontecimentos e pessoas reais? É de Lukács a definição que o romance histórico é aquele cuja estratégia narrativa consegue “reconstituir com minúcia os componentes sociais, axiológicos, jurídicos e culturais que caracterizam” uma determinada época. Ora, o texto de Eco traz muito disso como pano de fundo onde as ações de Simonini se desenrolam; entretanto, nosso protagonista é um elemento puramente ficcional; e mais do que ficcional, a sugestão de que os Protocolos foram produzidos por um agente secreto italiano exilado em França chega a ser surreal, contrariando qualquer noção de realidade. Devido a isso, então, ainda podemos colocá-lo na rubrica de romance histórico? Tendo a achar que não: Eco vale-se de um pano de fundo histórico, é fato, mas sem a ambição de fazer de seu romance uma reconstituição de uma época ou, pelo menos, essa não é a sua ambição primeira. Tenta, antes e mais do que tudo, criar uma realidade outra, baseada no fantástico, na suposição de que um único homem – Simonini – impulsionou a criação de um dos textos mais controversos de todos os tempos. Suposição forçada para muitos, mas nem tudo o que é forçado é impossível.

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5.10.2013

Pedaço de papel com anotações feitas em uma sala de embarque


Inacreditável a quantidade de LIXO que é possível ouvir apenas sentado por nada mais que meia hora em uma sala de embarque de aeroporto. Palavras que sintetizam os diálogos que pude ouvir: consumo, reclamações, queixinhas, vazio, sentimentalismo, patético, exibicionismo, putas, inveja, esnobismo, teatro, o verbo comprar conjugado em todos os tempos possíveis, Freeshop, medo, profissionalismo, moda, ausência de gosto, ridículo e olhares estupefatos ao me ver escrevendo nesse bloco de papel. Todos ao redor com seus notebooks e tablets, e eu aqui me sujando com tinta de caneta e buscando sintetizar o horror desse lugar que, sinceramente, não deveria existir. Sonho com tempos dos bandeirantes, das rotas de mulas, de longos trajetos percorridos em semanas. Encurtamos as distâncias, relativizamos o tempo. Outrora havia toda uma outra maneira do tempo, do espaço e das pessoas interagirem. Talvez tudo fosse uma enorme merda. Mas me parece que nesse "avanço" o que foi perdido supera, em valor, todos os (supostos) ganhos. Mas não é o progresso, em suma, um abandonar de possibilidades? No jogo infinito dos erros e acertos humanos, o que nos marca como signo fatal é o desperdício, a destruição dos caminhos que poderíamos percorrer. Deixamos de lado as mulas, agora que nos contentemos com os aviões.


PROLEGÔMENOS DA FUTURA ARTE DE ORGANIZAR AEROPORTOS SILENCIOSOS

  • um aeroporto silencioso é aquele onde se fala o mínimo possível; 
  • pessoas que desejam falar (seja com outra pessoa ou através de um aparelho celular)  terão filas, salas de embarque e aviões específicos;
  • sensores de som espalhados pelo aeroporto silencioso identificaram sinais de conversa abusiva. Os que desrespeitarem a regra serão automaticamente amordaçados e transferidos para áreas isoladas do aeroporto, até que fiquem calmos e deixem de falar;
  • área reservada para escritores, filósofos, poetas e quaisquer outras atividades intelectuais. Lá imperará o silêncio e meios analógicos de expressão. Portadores de notebooks, tablets, Kindles e outros não poderão entrar nessa área. Proíbe-se comer e beber (as mastigações e goles produzem um desagradável ruído), mas fuma-se à vontade;
  • gordos, crianças e pessoas que andam devagar terão aviões e salas de embarque específicos;
  • nas filas de despacho de bagagem, haverá um triagem realizada por especialistas em leitura facial: os espertos e organizados serão direcionados a uma fila, enquanto que os não-espertos e não-organizados para outra. Iguais com iguais, democraticamente no mesmo espaço, podendo até mesmo acenar uns para os outros - mas em filas diferentes;
  • graças à medida anterior, é natural que a fila dos espertos e organizados ande muito mais depressa que a dos não-espertos e não-organizados, que ficam sempre enrolados procurando os documentos no momento de despachar as bagagens
  • os Freeshops não terão autorização para vender suas mentiras em aeroportos silenciosos;
  • não haverá avisos sonoros: os passageiros deverão acompanhar em telões os seus portões de embarque e mudanças em horários de pouso e decolagem;
  • é vedado também o uso de óculos de sol dentro do aeroporto silencioso, péssimo hábito muito comum em aeroportos tradicionais.

5.02.2013

Rito sacrificial, induzido por D.R. Hooker




Nota: para corretamente ler o que se segue, acione o play na música abaixo. Em seguida, comece a leitura.

Voltava para casa no metrô lotado da Grande Cidade, sempre abarrotado de gente de todos os tipos, tamanhos e graus de educação. E cotidianamente em frente a tantos rostos que nada me dizem, a tantos destinos com os quais não me importo e que, apesar disso, tenho que compartilhar (forçosamente, mas ainda compartilhar) o mesmo ridículo espaço de um vagão de metrô, e isso há tantos anos que é como se todos esses destinos já fizessem parte de minha família, minha enorme família São Paulo lar de todos os imbecis orgulhosos de seus preconceitos e de seus divertimentos baseados em preços altos e longas filas. E então entro no vagão lotado, me esgueiro entre todos e consigo me encostar em uma porta; ligo o MP3 (maravilha tecnológica, escudo a nos proteger do caos das multidões) os primeiros acordes de uma música desconhecida, que nunca tinha antes ouvido; presto atenção na letra, e aos poucos sinto hipertrofiar o meu desacordo em relação ao mundo; foi como uma epifania musicalmente induzida, escancarando perante os meus incrédulos olhos todos os meus pecados, todas as minhas faltas, todas as minhas omissões; e não apenas humilhado graças ao peso fatal de todas essas revelações, que anjos arremessavam sobre mim (pois nesse momento eu já via uma imensa falange de anjos rodopiando sobre mim, sobre todos ali) percebi, refletido no rosto de todos os que forçados compartilhavam aquele vagão comigo,os meus próprios pecados; e misturado ao reflexo de meus pecados misturavam-se os deles também, e estavam todos nós ali imersos em erros, em abominações; e a cada novo acorde daquela maravilhosa música, mais forte em mim se tornava a revelação de que todos somos desgraçados pecadores, que o sacrifício na Cruz jamais nos absolveu, que na verdade a morte de Cristo abriu as portas para uma nova era de crimes. Então eu ouvi, além da música, uma angélica voz sussurrar-me ao ouvido (e era o mais doce som que já ouvi em minha vida) que chegada era a hora, o momento em que toda a minha existência enfim se justificaria, o clímax redentor e definitivo. E como em um filme (mas não era um filme, oh Deus, não era) tudo ficou lento, poeticamente fluindo como em uma romântica seqüência cinematográfica, e naquela metrô cheio fedendo a pecado, lodaçal de todas as depravações, altissonante tocaram dez mil trombetas em honra ao Senhor dos Exércitos, (mas nenhum pecador pode ouvi-las, continuaram em seu impassível estado-zumbi de trabalhadores cansados e insatisfeitos) e compreendi que esse era o aviso final; vi então na minha frente o Arcanjo Miguel com seu olhar incandescente, e aquele olhar não poderia ser mais expressivo, era como uma ordem que dele emanava, e com lágrimas nos meus disse "amém!" e de suas misericordiosas mãos recebi um toque -brevíssimo, casto, como convém aos anjos- e nada mais precisou ser dito, de repente compreendi tudo: retirei da mochila o facão que tinha comprado anos atrás (sem entender o porquê, agora mais cristalino que a glória divina) e iniciei os ritos sacrificiais; o sangue das ovelhas precisava cair, o pecado extirpado para sempre, o advento de um mundo novo e santo. Como foi lindo contemplar os anjos cantando, mãos postas em glória a Ele, e os golpes de facão no pescoço das ovelhas (que antes eram simples pecadores) jorrando o sangue como em chafariz; e já eram incontáveis os gritos e gemidos, os confusos olhares de pavor e perplexidade (tolos, não sabiam que o holocausto que presenciavam era na verdade um ato de renascimento, virginal oferenda de fluidos vitais santificados, limpando o mundo do Pecado). Ouvia o choro das mulheres implorando para que eu parasse, e como aquele choro me enchia de júbilo, um júbilo muito próximo da fúria (pois naqueles choramingos havia apenas o desejo de permanecerem com suas existências de pura luxúria e depravação, essas amaldiçoadas filhas de Eva, tão corruptíveis como sua mãe). Ouvia também o grito dos homens, ou melhor, de rebotalhos de homens, fúteis espécimes masculinos que nada mais tinham da altivez moral dos heróis do passado. Arruinados por uma vida onde o pecado era a regra, não compreendiam (ou compreendiam e se faziam de tolos? Difícil discernir isso agora, os estratagemas do Inimigo são tão ardilosos...) que eu estava ali como o mensageiro da salvação eterna, a eles entregue como um presente de Deus, tendo seus anjos misericordiosos como testemunha. 

O rito sacrificial foi breve, durando tão somente o caminho entre duas estações. Chegando no Trianon, as ovelhas sobreviventes (como queria tê-las matado todas)  correram confusamente para fora do vagão; permaneci ajoelhado entre as ovelhas sacrificadas, mãos estendidas ao alto contemplando as falanges angélicas rodopiando em espiral entre os esplendores dos Nove Céus. Não demorou muito para que os policiais, esses cães do Reino do Anticristo, me imobilizassem com toda a sua costumeira truculência. Eu chorava, e minhas lágrimas eram todas feitas de uma pura e incrível felicidade. O Arcanjo Miguel observava enquanto eu era arrastado para fora do vagão. No seu olhar era notável a serenidade, a beleza, a compaixão.