4.08.2017

Carta a Cioran


São Paulo, 8 de abril de 2017

Caro Cioran,

É raro escrever cartas hoje em dia, e ainda mais para os que estão mortos. Mas hoje é uma data especial, a noite já morreu (sic) e a madrugada está no seu ápice demoníaco, com o relógio a marcar exatas três horas da manhã. Deveria ser por volta dessa hora que você fazia seus passeios em Sibiu, caminhando por ruas vazias, comungando do silêncio que traz consigo paz apenas para os covardes – seres como tu e eu não vemos nada no silêncio, a não ser um convite irrecusável para pensamentos delirantes e inconsequentes. E quero aproveitar o silêncio dessa madrugada onde o sono não vem para a ti confessar algumas coisas. 

Hoje seria o seu aniversário de 106 anos. Sinceramente, eu nunca sequer te imaginei com uma vida tão longa. Acho que você também não gostaria de estar aqui hoje, nesse mundo de polêmicas virtuais que precisam estar ferrenhamente circunscritas a regras e fronteiras. Oscilando entre o sangue e a tolerância, como você uma vez disse (não com essas palavras, perdoe minha memória falha), a história dos homens só parece mesmo avançar no calor que emana do Caos: é na lista dos crimes dos Césares que vemos o motor que anima o Tempo girar com força redobrada. “Safe spaces” (perdoe o anglicismo, mas isso é normal atualmente, os idiomas todos foram estuprados pela língua inglesa) e polêmicas que não podem exceder seus limites são exatamente o contrário do que esse mundo precisa. É como se a História fosse um ator ridiculamente tímido, que precisa ser empurrado para o palco, que não consegue ficar face a face com suas verdades - como você disse, “o homem prefere apodrecer no medo do que enfrentar a angústia de ser ele mesmo” (isso eu cito de cabeça de um de seus livros, e agora tenho certeza que citei corretamente). Hoje eu não sei dizer se vivemos na calmaria, na febre ou nos instantes que antecedem a passagem para a epilepsia, mas estou convicto que, se você resolvesse escrever as coisas que escreveu em uma fan page do Facebook, bastante provável que sua aventura virtual não duraria nem cinco minutos, seja por tédio (você sempre me pareceu um ranzinza), seja por legiões de pessoas que iriam te xingar de todas as formas possívei e pedir a algum poder qualquer (privado ou público, não importa: o que vale é deixar disponível aos insetos alguma forma de denunciar os outros nessa era onde todos são panópticos de todos) para tirar você e suas infantilidades do ar.

Enfim, você não teria nada o que fazer aqui.

Não leve isso demasiado a sério: conheço muitos que gostam das coisas que você escreveu. Eu sei bem a opinião que você nutriu quando jovem sobre a avidez das pessoas em ler os “autores tristes”: as pessoas procuram esses textos pois estes as “poupam de sofrer ou lhes dão a ilusão do sofrimento” (e eu acho que muitos que o lêem o consideram um homem irremediavelmente triste, embora eu veja mais petulância do que tristeza, além de muitas doses de humor, nas suas obras: certamente alguns trechos foram escritos em meio a risadinhas de satisfação). Busca-se sangue e lágrimas nas palavras do outro para, medindo-o a partir de nossa própria mediocridade, encontrar um destino singular, que possa ser colocado em uma espécie de pedestal. “A admiração da plebe é plena de sadismo”, você disse, e eu não poderia concordar mais. Mesmo sabendo dessa sua opinião tão negativa sobre seus leitores, eu segui lendo tudo o que você escreveu, e isso foi ao mesmo tempo uma desgraça irremediável e uma fagulha fatal que deu início a uma crise libertadora que jamais cessou.

Digo desgraça pois – e você sabe disso, não negue – a inconsciência é sempre a mais virginal e benfazeja das dádivas que um homem pode ter. Seria outro eu vivendo agora se, naquele momento da primeira desilusão amorosa, aquela que você fala que precisa ser vivenciada na juventude para que possa se amar pela primeira e única vez na vida, se naquele momento eu não tivesse lido seus elogios ao isolamento e à insônia. Talvez eu tivesse me casado mais cedo, talvez eu tivesse acumulado menos livros, talvez até mesmo ficado rico? Questões todas absolutamente irrelevantes: o absurdo rege a vida e nela eu só posso me deliciar com as coisas que não sei. Enfim, com as leituras de seus livros eu fui mergulhando em um lodaçal de questionamentos e pensamentos horrorosos que foram experimentados no limite da exaustão física. Ao mesmo tempo fonte de admiração e de inspiração, seus textos passaram de faíscas para o elemento combustor que mantinha destruidoramente selvagens as chamas da transfiguração.

Imitando você, busquei refúgio na escrita. Derramava-se em textos sem fim como forma de fuga, mas também como um exercício de investigação dos meus estados internos, explorando todas as contradições em uma exasperante ebulição de ódio, desespero e caos. Foi inspirado em ti que neguei a todos os ideais, pisoteando-os como devem ser pisoteados. Minhas delícias estavam naqueles devaneios onde “ninguém mais necessitasse da ilusão dos ideais, em que toda satisfação imediata da vida e toda resignação ilusória se tornariam impossíveis, em que todos os limites da vida normal rebentariam definitivamente” – e olha aí, nisso até mesmo você tinha um sonho, um sonho! Tirânico e cheio de soberba, certamente, mas ainda sim um sonho de disseminar a desilusão dos ideais como uma praga por toda a humanidade. Não se tratava de agir como Prometeu (deus que você odiava e que me ensinaste também a odiar), levando aos ignorantes a Boa Nova da consciência – que, longe da felicidade, trouxe para os homens somente os horrores da História e as torturas do espírito – mas sim de restituí-los ao nosso estado primordial, ao que éramos antes de entrar na humilhação do Tempo. “Os homens escutavam, que necessidade tinham de compreender?”, você perguntou, e isso se esfrega na nossa cara até hoje, castigando sem piedade, e assim até o Fim dos Tempos.

Foi na sua fonte também que alimentei meu ódio ao Cristianismo, essa religião feita da vingança e da inveja dos escravos e dos sofredores. Também abdiquei de tratar de minhas dores quando li seu relato sobre a velha que encontraste no hospital, queixando-se de suas enfermidades como se delas dependessem o Universo, como se a nossa existência tivesse alguma espécie de dignidade fundamental. E igualmente ambicionei, nos mais altos cumes do desespero, a sonhar com uma Elêusis de corações desiludidos, com um Mistério claro, sem deuses e sem as veemências da ilusão. Iniciados nos ritos secretos do Nada através de seus livros, os domingos todos se tornaram expressões circulares do arquetípico Domingo da Vida, o símbolo do tédio que sufoca os homens saudáveis, isto é, os animais. Não tenho hoje, assim como você, nenhum gosto em existir em tempos tão irremediavelmente medíocres. Só posso viver no início ou no fim do mundo. No caos primordial ou nos momentos finais do Apocalipse. Contemporâneo dos primeiros meteoros ou então vendo o espetáculo da Criação resfriar até tornar-se um astro frio e solenemente silencioso. 

E dentre todos os aprendizados que tu me proporcionaste, o mais valioso foi transformar cada ideia em uma obsessão. Só quando o pensamento sangra, quando se debate como fera enlouquecida e deixa atrás de si um rastro de grandiosidade e devastação, só quando chega a esse nível começo a levar uma ideia a sério. O comedimento e o bom senso passaram a me causar ânsias de vômitos. Eu imagino que você, quando estava ali em Paris reescrevendo pela terceira vez o Breviário, também experimentou e muitas vezes esse mesmo nojo pelos parisienses arrumadinhos que encontrava em suas caminhadas. Chegou a maltratar algum deles? Isso jamais saberei.  Você morreu há quase 22 anos e certamente nem lerá essa carta. E hoje, 8 de abril, dia de seu nascimento, onde passei a madrugada em uma espécie de rito necromântico, confessando a ti minhas opiniões e experiências a respeito de sua obra, de longe uma das mais avassaladoras tempestades do pensamento que o século XX nos legou, hoje senti – com uma força antes não experimentada – a dor que você expressou nessas palavras:

“De que serve ser conhecido se outrora não nos conheceu tal sábio ou tal louco, um Marco Aurélio ou um Nero? Não teremos existido nunca para tantos de nossos ídolos, nosso nome não terá perturbado nenhum dos séculos anteriores; que importam os que vêm depois? Que importa o futuro, essa metade do tempo, para quem adora a Eternidade?” 

Respeitosamente,

L.


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Emil Cioran nasceu em 1911, na Romênia, formando-se em Filosofia pela Universidade de Bucareste. Em 1937, mudou-se para a França, onde escreveu seus principais livros. Morreu em 1995, em Paris. Sua perturbadora obra, cuja densidade é tão alta quanto os vôos poéticos que marcam seu estilo, é um convite para o universo do niilismo nas suas mais extremas contradições e limites. Mestre da concisão e do aforismo, esse trecho do Breviário de Decomposição - considerado seu magnus opus - sintetiza o coração de sua filosofia:

“Queria semear a Dúvida até nas entranhas do globo, impregnar com ela toda a matéria, fazê-la reinar onde o espírito jamais penetrou e, antes de alcançar a medula dos seres vivos, sacudir a quietude das pedras, introduzir nelas a insegurança e os defeitos do coração. Arquiteto, teria construído um templo à Ruína; predicador, revelado a farsa da oração; rei, hasteado a bandeira da rebelião. Eu teria estimulado em toda parte a infidelidade a si mesmo, impedindo multidões de corromperem-se no podredouro das certezas."

4.03.2017

Vishudha Kali


Vishudha Kali é um projeto russo de música industrial que utiliza como base de suas composições sons produzidos pela boca, além de muitas camadas de distorção e efeitos variados. As longas composições - muitas vezes ultrapassando os dez minutos - produzem atmosferas que levam o ouvinte atento a uma jornada por áridos desertos de introspecção.

Encontrei o texto abaixo no site do projeto, onde seu idealizador, Andrei Komarov, fala um pouco mais sobre o conceito do Vishudha Kali. A revolta ao estilo "vamos destruir toda a humanidade" presente nas linhas abaixo pode soar demasiado colegial para muitos (para mim também, e muitas vezes), mas eu não consigo deixar de admirar as mentes obcecadas por inconsequentes sonhos de destruição. Mais de uma vez já escrevi aqui que, em um momento onde fazer arte (seja ela qual for) parece cada vez mais estar vinculado a atender as expectativas do público seguindo uma certa cartilha princípios não declarados, só me interessam os retardados, extremistas e solitários, que estão menos preocupados com reconhecimento (o "valor de mercado" intangível de suas obras) e mais com alargar a percepção que tem sobre si mesmos em um mundo que convulsiona no seu leito de morte.

Antes da leitura, clique no play abaixo para ouvir o som "Rituals from fire", do álbum de estreia "Psenodakh=" lançado em 2002.




"Vishuddha significa em sânscrito antigo o lugar, ou chakra, onde a energia de expressão e criação é concentrada. Está localizado na parte inferior da garganta e opera igualmente com respiração e a voz. Kali é a deusa da idade do ferro - este é o tempo de pensamentos escuros, guerras, muros & destruição, era de involução. 

Vishudda Kali é um projeto musical baseado apenas em sons produzidos através da boca do homem. Todos os sons dos discos são sons vocais, produzidos de diferentes formas de controlar a respiração e modular a fala, e apesar de terem sido gravados com diferentes tipos de processos e bastante distorcidos, são ainda sons da voz somente. As composições não são música propriamente. O trabalho criativo de Vishuddha Kali é devotado ao total genocídio da sociedade humana e ao esforço da humanidade por auto-aniquilação e destruição.

Mas também Vishuddha Kali quer observar que nem todos vocês são humanos reais. Há três tipos de seres humanos: os primeiros têm o espírito, a alma e o corpo. Estes são reais humanos, um tipo raro - um a cada um milhão, provavelmente. Cerca de 1% de toda a população humana. O segundo tipo tem a alma e o corpo - estes estão procurando a evolução. A quantidade de tais seres é próxima de 10% de todos os humanos - um entre milhares. O terceiro tipo tem o corpo somente, e o espírito e a alma estão em grau embrionário. Eles não têm nenhum objetivo espiritual, apenas uma lista de programações sociais - nascer, comer, obter o dinheiro, obter coisas diferentes e finalmente morrer e ter uma tumba apropriada com suas flores. Eles ainda podem confiar em Deus, e fazem isso da mesma forma como limpam os dentes - automática e inconscientemente. São biomassa: nascem, trabalham, tem filhos, morrem; nascem de novo, trabalham, procriam e depois morrem mais uma vez. O universo precisa que eles continuem a humanidade como espécie animal - são a fonte para produzir o homo sapiens.

Também há alguns seres especiais com vetor anti-espiritual em seu ser. Organizam ideologias, religiões e movimentos políticos. Iniciam todas as guerras, promovem progresso científico e econômico; em outras palavras, ensinam as biomassas para deslocar a energia da vida não para o progresso interno, mas para atuar no vazio. Tais seres anti-espirituais manipulam os membros da biomassa e os utilizam como escravos. Estes escravos criam as possibilidades para as pessoas anti-espirituais tenham vidas esplendorosamente ricas. Anti-espirituais criam uma infinidade de coisas vazias, fetiches como religiões, jogos e um monte de produtos diferentes para fazer com que os membros da biomassa sejam dóceis e facilmente manipuláveis. Eles também criam guerras e crises às vezes, e conduzem a energia vital e atenção das biomassas cegas para elas. As pessoas de biomassa existem somente para realizar todos os planos insanos dos anti-espirituais, tornando-se uma refeição para demônios e animais. Anti-espirituais controlam as estruturas do poder. Todos os sacerdotes, políticos, ídolos pop, etc são utilizados como fontes de energia para que consigam seus objetivos. Com isso, fazem com que os seres que têm a alma e o corpo vivam em uma atmosfera estranha, que tenham sua imaginação adoecida. Eles promovem a formação pensamentos idiota e estúpidos onde os indivíduos se imaginam muito importantes e únicos, como uma criação perfeita de Deus, como um rei de natureza, como se houvessem deuses ou anjos ou Satanás em algum lugar. Esse tipo de pessoa é o típico homem culto, ou funcionário do mundo das artes. Eles não são perigosos para um regime anti-espiritual porque eles estão escondidos dentro de sua mente interior. Sua esquizofrenia está progredindo através de diferentes eventos artísticos, naquele tipo de público interessado por colecionar coisas, fanclubs, ciência ou negócio. 

Vishuddha Kali - esta "Arte de Destruição" - tem uma intenção muito séria de mostrar a todos os seres o seu real lugar nesta vida. Sendo criado somente dos sons de respiração, ativa alguns processos de consecução. Mostra a todos que a necessidade de progresso demanda um certo tipo de violência - violência contra todos os pensamentos falsos e os programas sociais, discursos religiosos e idéias falsas. Todos nós necessitamos de um processo através da violência para limpar nossas mentes. Vishuddha Kali ajuda a abrir os olhos, para realizar que agora é tempo de parar de enganar-se, que é tempo de olhar a si mesmo de forma honesta antes de continuar a viver, antes que a poluição informativa e as mais diversas influências em nossas mentes destrua nossas almas e espíritos.

Pare de obedecer aos comandos hipnóticos de sua consciência doente para produzir famílias, crianças, acumular coisas sem sentido, ler jornais e ver TV. Pare de ter medo de qualquer coisa, de orar por qualquer um. É demasiado fácil & difícil simultaneamente - simplesmente pare e comece a viver. Destrua o seu ego. Nós não somos princesas ou reis ou anjos ou demônios - nós nem sabemos qualquer coisa sobre o cosmos e a Terra, sobre químicas e física. Todos os nossos conhecimentos sobre essas coisas estão velhos, ultrapassados  - é somente um conglomerado de ilusões, parte de um processo de involução, como uma magia negra perpetrada pelos meios de comunicação. É hora de parar esta loucura. Nenhuma religião, nenhuma política, nenhuma ideologia. Isso é tudo."


Discografia

Álbuns
Vishudha Kali - "Psenodakh" - 2002
Vishudha Kali - "Prem Genocide" - 2002
Vishudha Kali - "Myths about Srontgorrth" - 2003
Vishudha Kali - "The White Stone" -2004
Vishudha Kali & Chaos As Shelter - "Mirror" - 2004
Vishudha Kali - "Unfinished Devastation Narrative" -2005
Vishudha Kali & Velehentor & Closing The Eternity - "Ishopanishad" - 2008
Vishudha Kali & Moon Far Way - "Vorotsa" - 2011