12.11.2007

Excertos de uma confissão a um padre


"E então o demônio me convidou para dançar, e surgiu sob a forma de olhos verdes, incrivelmente verdes - e neles me perdi. Se estivessem perto, quão enorme seria o desastre! Pois meu coração busca o abismo, o abismo das sensações malditas, das sensações que enlouquecem e deixam cicatrizes.


Por que o anjo caído veio sussurrar ao meu ouvido novamente? E por que agora, quando a calmaria parecia novamente nascer? Existe um propósito nesta tentação? Pois nela eu já me vejo caindo de cabeça, já me vejo ali, escrevendo poemas para acompanhar os presentes idiotas que trocaremos, as cartas molhadas pelo sangue meu e dela."

11.27.2007

Escrever é Exorcizar


Concordo e assino embaixo, e com letra bonita:


"Só tenho vontade de escrever num estado explosivo, na excitação ou na crispação, num estupor transformado em frenesi, num clima de ajuste de contas em que as invectivas substituem as bofetadas e os golpes. (...) Escrevo para não passar ao ato, para evitar uma crise. A expressão é alívio, desforra indireta daquele que não consegue digerir uma vergonha e que se revolta em palavras contra os seus semelhantes e contra si mesmo. A indignação é menos um gesto moral que literário, é mesmo a mola da inspiração. E a sabedoria? É justamente o oposto. O sábio em nós arruina todos os nossos élans, é o sabotador que nos enfraquece e nos paralisa, que espreita em nós o louco para dominá-lo e comprometê-lo, para desonrá-lo. A inspiração? Um desequilíbrio súbito, volúpia inominável de se afirmar ou de se destruir. Não escrevi uma única linha na minha temperatura normal. (...) Escrever é uma provocação, uma visão infelizmente falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece existir. Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que, livre da sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnífica, sempre desconcertante, algumas vezes odiosa. Nada mais miserável do que a palavra, e no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade! Pode-se alcançá-lo também, curiosamente, através da ironia, com a condição de que esta, levando ao extremo sua obra de demolição, cause arrepios de um deus às avessas. As palavras como agente de um êxtase invertido... Tudo o que é realmente intenso participa do paraíso e do inferno, com a diferença de que o primeiro só podemos entrevê-lo, enquanto o segundo temos a sorte de percebê-lo e, mais ainda, de senti-lo. Existe uma vantagem ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de se livrar de seus perigos. Sem a faculdade de encher as páginas me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais!"

[Confissão Resumida, páginas 123 e 124;
"Exercícios de Admiração", de E. M. Cioran]

11.21.2007

21 de Novembro


Chegar neste ponto onde me resta apenas um ano antes de completar trinta é como estar vivendo aqueles momentos trágicos que antecedem a expulsão do Paraíso. Pois agora, dado o distanciamento, percebo que a vida que vivemos é um Paraíso até que alguma forma de desgraça nos force a dividí-la em um antes e em um depois. Eu ainda era um adolescente em corpo e espírito naquela época, inconsciente de tudo, quando este marco divisor aconteceu - e lógico que não precisa ser muito perspicaz para entender que há uma mulher e um amor despedaçado nesta história. A Inconsciência! O Paraíso é isso: um tipo de inconsciência que toma ares de absoluto. Nada perturba os inconscientes, basta termos em mente os ascetas que por anos vivem em suas cavernas de frio isolamento. Quem me dera ter esta tranqüilidade de aço! Mas não: apartado do Paraíso, dele hoje tenho apenas relampejos e memórias gastas. Tive hoje flashes daquele tempo quase imemorial, quando pude ter um tempo a mais a vagar pela Santo André terra natal, e ali, vendo as ruas e os caminhos que percorria eu ainda infante, sem medo, sem nem saber o que é o Saber, apenas um ser que não é sujeito, e lembrei em detalhes de tantas coisas que havia esquecido, e os olhos encontraram prédios onde antes havia apenas casas, encontraram sujeira onde antes só havia brincadeira, e desilusão, e tédio, vamos embora daqui, Memória, vamos para longe, leve-me de volta para aquele pedaço de Paraíso que eu tinha aqui. As décadas passam e as cidades mudam, a paisagem nunca é a mesma, mas a crueldade de um prédio que nasce como um tirano entre escombros de minhas lembranças é algo que não suporto, vamos embora daqui, e agora. São vinte e nove anos, eu pergunto pelas minhas realizações, Deus pergunta pelas minha realizações, diga-me o que fizeste, filho, Pai, pouco fiz de minha vida, andei é espalhando coisas ruins para as pessoas, andei é machucando as mulheres, andei é passando noites em claro e gastando meus dias arquitetando planos de como me vingar de muita gente, até no trabalho fui desonesto, teve uma menina que me pediu perdão e eu neguei, apenas pelo prazer de vê-la triste, já matei animais pequenos, já desejei mal de forma gratuita, traí pessoas que amava e quando recebi o troco achei que eu merecia o sangue delas (ainda penso em matá-las, confesso), todos os meus primos e irmãos tem famílias bem construídas e eu nem sequer tenho uma namorada fixa, eles já deram netos para meus tios, pobre da minha mãe, ela quer tanto um neto, sempre me rejeitei a idéia de ter filhos mas quando vejo a velhice consumindo meus pais eu sinto nojo de mim, da minha incapacidade de ter uma vida decente e de dar a eles um sucessor, um consolo para uma vida de privações, eu mesmo ficaria feliz em ter esposa e filhos agora, é Deus, eu admito, filhos e esposa me alegrariam, me salvariam de mim, havia uma garota que poderia fazer isso, ela me salvava de mim, mas agora já é passado, nada como um dia após o outro, eu ainda gasto dinheiro com pornografia e não me preocupo muito com isso, só há pouco tempo passei a dar mais atenção para minha aparência, tem dias que sinto muita dor de cabeça e pensei em rezar para ver se ajudava, mas este escambo de devoção por cura me pareceu baixo demais, mesmo sabendo que a Sua bondade é infinita eu permaneci com dor de cabeça e teimoso em minha blasfêmia, ainda há muito por confessar, Deus, mas eu não tenho a eternidade que Você tem, prefiro apenas traçar metas mais realistas, todas anotadas em um caderninho diminuto ao lado da escrivaninha, coisas simples que me deixarão feliz neste último ano de vida, pois depois dos trinta o que me resta é apenas o esquecimento, engraçado que sempre achei as histórias dos solitários dignas de admiração, lia Fante e achava Bandini demais, ainda acho, mas a dor de ser solitário às vezes é foda demais, peço perdão pela palavra, mas é que nada há em meu cansado vocabulário de insone algo mais apropriado que foda para explicar a sina da solidão, uma namorada me deixou uma citação de Goethe na escrivaninha, o que desejamos na juventude alcançamos na velhice, sei lá de onde ela tirou isso, mas ainda tenho a citação por lá, este Goethe meio neurolingüístico me parece suspeito, mas ao menos comigo vejo se realizar os desejos juvenis, Goethe filho-da-puta, não se assuste o leitor com mais este termo desajeitado, nem com a indelicadeza de ofender tão nobre escritor, que admiro, Werther foi um corajoso ou um covarde?, só sei que ele está ali, entre os desejos de outrora, e passados vinte e nove anos de vida nem o suicídio é atraente, prefiro é mesmo continuar vivendo, às vezes triste, às vezes alegre, pensando em Deus e em minha existência que é uma vergonha para o Reino dos Céus, desejando a sublime disciplina dos santos todos os dias, e vivendo como um pusilânime amante de tudo o que é rápido, fugaz e fútil, aprendendo que esta vida corrida que há anos não me larga, que me joga de um trabalho para outro, de uma viagem para a outra, de um isolamento para outro, esta vida nunca vai parar, e continuamente vai me dar Prazer e Beleza logo em seguida de noites de Dor e Terror.

11.15.2007

Caminhos indefinidos



"(...) E você ainda se interessa pelas pessoas? Puxa, isto é mágico. Já vi que cheguei no ponto que não consigo mais amar de forma pura. Quando um sentimento me assalta, eu imediatamente me questiono, é automático, sinto uma espécie de voz interior falando `O que você quer nesta pessoa, de verdade? São os sentimentos dela? As idéias? O corpo? Uma gozada? A possibilidade de dominá-la e fazê-la acreditar que você a ama para, depois da conquista, você rejeitá-la como já fez com tantas? Ora, M., seja sincero, você só ama os seus próprios desejos´. E eu devo concordar com esta voz: eu sou absolutamente egoísta. Até mesmo no sexo, mesmo que eu me preocupe em dar o máximo de prazer para a mulher que está comigo, é porque no fundo me move a suprema vaidade de me considerar uma espécie de deus do amor, capaz de vê-la(s) delirando, e pedindo mais, e eu negando em palavras o que proporciono com gestos. Pois é assim que funciono, que sempre funcionei, mas agora pareço que chego aos últimos estágios de desenvolvimento: eu como um mestre de mim, um déspota, um déspota que quer corações e mentes e corpos, e cuja vontade é insaciável."

"(...) Éramos muito imaturos, mas queríamos mudar tudo dentro de nós, quebrar tabus, criar nossas próprias regras, como se tudo isso estivesse sendo vivido pela primeira vez. Tudo diferente do que estávamos acostumados, diferente do modo que fomos condicionados a lidar com os outros e com nossos sentimentos. Sabe o peso do amor? Era esse peso que queríamos liquidar. E eram muitos sentimentos por muitas horas e ininterruptos. Amor demais. Paixão demais. Ódio demais. Raiva demais. Tristeza demais. Felicidade demais. Liberdade demais. Conversas longas, discussões e consenso. Criamos muito silêncio e caos simultaneamente. Conseguíamos sempre machucar um aos outros sem se ver. Constantemente silenciosamente atacados e atacando. Por ações tão comuns, distraídas. Em três instantes só eu tive tudo com todo mundo ao mesmo tempo. E tudo isso me fez ser cética, imoral, me fez destruir o ciúmes e muitas vezes buscar apenas o desejo. E o que mal existe nisso? Não existe mal. Que mal existe em querer sexo? Ou um corpo? Ou idéias? Precisamos saciar nossos desejos? Com certeza! Somos feitos de desejos. Eles estão dentro de nós e se não sacia-los, alguma hora eles comerão nossas entranhas. "

10.21.2007

Saudade é a 7ª palavra mais difícil de traduzir


Navegando por acaso, eis que me deparo com este artigo. Ele é de 2004, velhinho, mas fala sobre as dificuldades de tradução de certas palavras, inclusive a nossa luso-brasileiríssima "saudade" - sentimento que devora corações e almas desde os tempos dos trovadores medievais.

Saudade "é a 7ª palavra mais difícil de traduzir"
da BBC, em Londres

Uma lista compilada por uma empresa britânica com as opiniões de mil tradutores profissionais coloca a palavra "saudade", em português, como a sétima mais difícil do mundo para se traduzir.

A relação da empresa Today Translations é encabeçada por uma palavra do idioma africano Tshiluba, falando no sudoeste da República Democrática do Congo: "ilunga".

"Ilunga" significa "uma pessoa que está disposta a perdoar quaisquer maus-tratos pela primeira vez, a tolerar o mesmo pela segunda vez, mas nunca pela terceira vez".

Em segundo lugar ficou a palavra "shlimazi", em ídiche (língua germânica falada por judeus, especialmente na Europa central e oriental), que significa "uma pessoa cronicamente azarada"; e em terceiro, "radioukacz", em polonês, que significa "uma pessoa que trabalhou como telegrafista para os movimentos de resistência ao domínio soviético nos países da antiga Cortina de Ferro".

Contexto cultural

Segundo a diretora da Today Translations, Jurga Ziliskiene, embora as definições acima sejam aparentemente precisas, o problema para o tradutor é refletir, com outras palavras, as referências à cultura local que os vocábulos originais carregam.

"Provavelmente você pode olhar no dicionário e [...] encontrar o significado", disse. "Mas, mais importante que isso, são as experiências culturais [...] e a ênfase cultural das palavras."

Veja a lista completa das dez palavras consideradas de mais difícil tradução:

1. "Ilunga" (tshiluba) - uma pessoa que está disposta a perdoar quaisquer maus-tratos pela primeira vez, a tolerar o mesmo pela segunda vez, mas nunca pela terceira vez.

2. "Shlimazl" (ídiche) - uma pessoa cronicamente azarada.

3. "Radioukacz" (polonês) - pessoa que trabalhou como telegrafista para os movimentos de resistência o domínio soviético nos países da antiga Cortina de Ferro.

4. "Naa" (japonês) - palavra usada apenas em uma região do país para enfatizar declarações ou concordar com alguém.

5. "Altahmam" (árabe) - um tipo de tristeza profunda.

6. "Gezellig" (holandês) - aconchegante.

7. Saudade (português)

8. "Selathirupavar" (tâmil, língua falada no sul da Índia) - palavra usada para definir um certo tipo de ausência não-autorizada frente a deveres.

9. "Pochemuchka" (russo) - uma pessoa que faz perguntas demais.

10. "Klloshar" (albanês) - perdedor.




Veja matéria original publicada na Folha aqui

10.17.2007

Cachos negros

Dela M. apenas guardara o sorriso e a maneira cheia de sutilezas de arrumar os abundantes cabelos. Era uma forma tão graciosa de passar os dedos pelos cachos negros, e conduzi-los quase que por encanto para cima, para baixo, que M. esquece que está em plena Avenida P. dos carros famintos por asfalto. E se continuasse ali na calçada, contemplativo naquela paixão matinal, a esbarrar nas gentes que ali passavam, chegaria tarde no trabalho - e nenhum patrão no mundo, nem mesmo aquele que se dá ares de poeta, gosta de funcionários que atrasam 15 minutos por contemplar musas.

E então M. segue em frente, farol fechado paras as bestas a gasolina, e lá se foram os cachos negros em direção que não se sabe, a multidão na P. é um ultraje à libido, sequer podemos seguir com os olhos um belo par de pernas por mais de 20 segundos. No caso de M. os cachos negros eram bem mais que pensamentos sexuais, eram uma paixão mesmo, daquelas que fazem estragos, que deixam ruínas e de cujos efeitos muitos não se recuperam. Encontrava uma garota na rua, três olhares depois ela já se transformava na mulher de sua vida, se não fosse um recluso faria um convite simpático para um café perto do Parque T., lá conversariam, se reconheceriam, não demoraria muito e já estariam cheios de afagos e afetos, trocando cartinhas, trocando confidências: assim imaginava M. detalhes de cada relação com cada garota desconhecida que subitamente lhe inspirava paixão.

E era uma verdadeira paixão. A ponto de M. ficar triste quando, calado, observava a desconhecida tão sua indo embora para nunca mais. Pois a Cidade é imensa, e imensos caminhos a cruzam, e cada vez que os percorremos, parece que eles já não mais são os mesmos, ou talvez somos nós os que estão em mutação, o ovo ou a galinha, certas questões nascem para ser eternas. Mesmo assim, mesmo sabendo que apartado estava para sempre de cada uma de suas paixões instantâneas, M. cultivava a possibilidade de novamente encontrá-las, e em questão de segundos suas paixões o reconhecerem com um largo sorriso, eu lembro de você aquele dia em tal lugar, lembra de mim, te procurei tanto. Desce em direção a Alameda S. com a certeza de que ali, na esquina com a Rua A., aquela loirinha de brincos de argola estaria como naquela última quinta-feira. Sacola de compras na mão, e tão indiferente ao mundo ela parecia que M. acreditou que jamais se apaixonaria de novo, era tão somente ela e nenhuma outra, ali estava a companheira definitiva para as viagens e bebedeiras e contas atrasadas e noites de sexo. Mas as esperanças são apenas brinquedinhos que Deus fez para nós, brinquedinhos Dele, gastarmos o tempo tão pouco que aqui temos - e M. não encontrou sua loirinha de brincos de argola, assim como jamais encontrará os negros cachos novamente.

Obviamente ele não pensa estas coisas. Está muito atarefado em desviar dos caudalosos rios humanos que infectam as ruas dos Jardins. Mas no íntimo sofre a perda de suas paixões. E quando o leitor se depara com o verbo sofrer, deve se recordar das vezes que sentiu dor por alguém, e saber que é uma dor como esta que aflige M., e não acusá-lo de leviandade e de superficialidade de sentimentos. Pois é muito razoável que alguns vejam em M. tão somente um aventureiro; se assim o fosse, estaria ele imaginando tórridas cenas sexuais com os cachos negros, e não uma sala confortável com filhos e filhas a brincar no cantinho. Sim, ele a quis nua, os lábios dela desejou, os contornos que transbordavam volúpia, imaginou um perfume e um nome até - Juliana ela chamaria. Mas no momento do êxtase, sobre ela ele se estenderia com fúria, até que cachos negros ficasse quietinha, na semi-imobilidade que sucede o Excesso, e envolvendo-a em um abraço, diria Juliana, eu te amo, e seria o mais verdadeiro dos homens ao fazer isso.

Vinte minutos de atraso quando, finalmente, M. liga o computador no escritório. Felizmente, seu chefe ainda não tinha chegado. Ninguém perceberia seu atraso. Vai tomando um copinho de café enquanto vê a rua pela janela. Quantas ainda amarei até te encontrar, pensa, e naquele momento ele é triste e cheio de vida. Já não lembra mais de cachos negros e nem dos seus dedos sibilinos a balançar os fios para cima e para baixo. Aquela paixão, tão subitamente nasceu, tão subitamente foi embora. A multidão, porém, continua a mesma na Avenida P., produzindo desencontros, engolindo paixões e de todos nós embaralhando o Destino.

10.10.2007

Sobre Tchekhov


Enquanto termino a redação de mais dois novos textos (e isso não é blefe) coloco aqui um texto que li hoje na Folha Online sobre Tchekhov. Vou fuçar mais tarde nos sebos do Centro em busca do texto em questão - que parece interessantíssimo, por sinal.

Para assinantes UOL , o link da matéria está aqui


Ninguém é inocente
"Platonov", peça escrita por Tchekhov em 1878, já anunciava a desilusão dos dias atuais
TCHEKHOV escreveu "Platonov" (ou "Peça sem Nome", como é conhecida no repertório do teatro Mali, de São Petersburgo, dirigido por Lev Dodin) em 1878, quando tinha apenas 18 anos e estudava no liceu de Taganrog, no sul da Rússia. Foi deixado para trás pela família (que partiu para Moscou depois da falência do pai), para terminar os estudos. Numa carta datada do mesmo ano, o irmão mais velho critica o texto e se refere a ele por um neologismo (possivelmente o título original da peça) que quer dizer algo como "a ausência dos pais". Tudo em "Platonov" se resume à perda e ao fracasso. O manuscrito, dedicado à atriz Maria Nicoláievna Ermolova, e por ela rejeitado, só foi descoberto em 1920. Publicado três anos mais tarde, o texto foi considerado impróprio para a encenação, por ser incoerente, caótico e, sobretudo, muito longo.

Ainda hoje, no teatro Mali, quando as luzes se acendem, no intervalo, e o público ovaciona os atores ausentes do palco, depois de quase duas horas de espetáculo, alguns espectadores desavisados (além dos que simplesmente não podem suportar mais duas horas de uma peça que gira em torno do vazio) se levantam, pegam seus casacos e vão embora, intrigados talvez com a idiossincrasia (ou a modernidade) de intérpretes que não voltam para agradecer os aplausos da platéia.

À parte alguns efeitos cênicos (o palco está separado do público por uma piscina, que representa um rio, diante de uma propriedade rural, e na qual os atores se jogam, vestidos ou não, ao longo da peça), não há nada especialmente moderno ou inovador na montagem de Lev Dodin. Ao contrário, a encenação e a interpretação têm um ar ligeiramente ultrapassado, que alguns espectadores mais radicais podem considerar tolo ou insípido, mas que garante grande parte do charme e da nostalgia. A montagem, criada há dez anos, hoje faz parte do repertório do teatro Mali. É apresentada em alternância com a mais recente encenação do diretor, a adaptação do romance caudaloso de Vassili Grossman, "Vida e Destino", por muito tempo proibido pelo regime soviético.

Sendo um texto de juventude, muito do que aparece em germe em "Platonov" anuncia o que voltará mais tarde, nas peças maduras de Tchekhov, como uma das características mais marcantes e inovadoras do dramaturgo. "A Gaivota" foi vaiada na estréia, no teatro Alexandrinski, de São Petersburgo, porque nada acontecia em cena. "Platonov" ainda se ergue sobre um modelo de melodrama. Mas um melodrama no qual a ação revela apenas a incoerência e o vazio de tudo. Se acontece alguma coisa, é só para tornar ainda mais ostensiva a ausência de acontecimentos, o tédio e a derrocada de todas as promessas.

À peça não falta apenas um título, mas um personagem principal. Mais do que herói ou anti-herói, Platonov é um agente catalisador da falta que está no ar, revelador de uma época de incertezas e desilusões. É o herói onde já não pode haver nenhum. Ao mesmo tempo, a peça não pode existir sem ele. Começa pouco antes de ele entrar em cena (reaparece casado, depois de anos, para rever seus amores e amizades de juventude, na propriedade rural de uma senhora falida) e termina com a sua morte. Todos amam Platonov (ou a lembrança do que ele foi na juventude) e ele ama todos, mas seu fracasso (o jovem rebelde romântico foi reduzido a professor rural, casado com a mais desinteressante das mulheres) limita sua ação à sedução vazia e ao engano. Na falta das velhas certezas e promessas, convertidas em ilusão, todos querem se deixar seduzir e enganar por Platonov, pelo sonho que um dia ele representou e do qual agora não é mais do que uma paródia. É como se a morte conspirasse por trás de um mundo de exaltações, desejos e alegrias fugazes.

É claro que esse tempo de desilusão pode também ser o nosso. Mas há um aspecto especificamente russo. Uma jovem que encontrei em São Petersburgo, e que já tinha descido aos infernos nos seus 30 e poucos anos, me corrigiu quando falei de um mundo terrível: "O mundo não é terrível. É o que é. Já está na hora de você perder um pouco da sua inocência". Realmente, basta assistir ao filme mais recente de Sokurov ("Alexandra", exibido no Festival de Cannes e atualmente em cartaz em Paris, sobre uma avó que vai visitar o neto, soldado russo na Tchetchênia) para entender que, talvez em qualquer lugar, mas na Rússia com certeza, não há inocência possível. E esse é um mundo que Tchekhov já anunciava na sua primeira peça "incoerente e caótica" de juventude.
(Bernardo Carvalho)

10.09.2007

Poesia

DE PROFUNDIS

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom;ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer

Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.

Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.

(TRAKL, Georg. De Profundis. Tradução de Claudia Cavalcanti, Iluminuras, São Paulo, 1994.)

Leia mais sobre Georg Trakl.

9.05.2007

Rebatismo

Desde ontem, este blog passou a se chamar Dissolve // Coagula.

Eu resolvi mudar o nome porque o anterior, Reflexões de um Anticristo, era o nome de um zine que fiz lá pelos meados dos anos 90. Naquela época onde zines eram xerocados, recheei as páginas dos dois números com textos raiovosos, plenos do ateísmo radical que dominava minha mente, convivendo com outras temáticas como elogio dos vícios, heresias de todo tipo e suicídio. Aplicar o nome daquele zine já morto ao meu blog foi mais fruto da comodidade e de uma azeda preguiça mental do que qualquer outra coisa. Pois basta ler uns dois posts para perceber a distância continental entre meu saudoso zine e os escritos virtuais.

Agora, rebatizado de Dissolve //Coagula, além de manter uma firme identidade com a URL do blog, reflete muito melhor o caráter dos textos. Em todos há sempre presente uma luta de polos opostos, alguns mais explícitos que outro, mas sempre há o conflito, o choque, o embate, os caminhos tortuosos e difíceis que caracterizam as relações humanas.

Dissolve//Coagula é um lema que inspira os significados mais intensos e obscuros. Evoca coisas que se repelem, mas que necessitam uma da outra para operar mudanças, momentos de glória e catarse, de purificação pela dor, de redenção em meio à sujeira do dia-a-dia, em meio às misérias do cotidiano. Pois é ali, naquela crise onde tudo é dito aos gritos, ou quando os olhos vêem a traição que antes era uma suspeita, ou quando Deus nos leva ao inferno apenas para mostrar Sua glória infinita, ou quando brota a consciência de que os dias são sempre iguais, de que a Vida nada mais é que a repetição de ciclos eternos, que mesmo o mais apaixonado amor nunca é o bastante para satisfazer nosso vazio, é ali, naquele ponto, é ali, naquele momento, que se tem a chance de ir ainda mais fundo em si e viver com uma intensidade que a média dos homens jamais alcançará. Sim, é necessário sofrer, é necessário uma disposição ao desespero em proporções gigantescas, é necessário nada esquecer, nada perdoar, e deixar uma espécie de coágulo se formar na alma - até que um dia ele explode. A mão direita para cima, a esquerda apontando para baixo, a mutação é feita - nada será como antes.

Sim, como eu já disse em outros momentos: a vida vivida é o combustível do que você lerá aqui. São as tardes sem fim na FFLCH, os passeios sem rumo pelas ruas do centro velho de São Paulo, algum livro folheado nos sebos da Augusta, conversas com amigos nos bares da avenida Paulista, telefonemas de três horas e meia nas madrugadas frias onde não se dorme, e-mails de puro ódio que se escreve por puro amor, viagens para lugares distantes e diferentes que se assemelham a sonhos, problemas de todo tipo, coisas que se perdem, coisas que se conquistam - tudo entra no horizonte de significados onde busco as palavras, estas coisinhas difíceis e escorregadias que sempre dizem tudo quando as esprememos. Ou quase tudo.

8.26.2007

Walt Whitman

"And I say to any man or woman, Let your soul stand cool and compose before a million universes."
Song of Myself, Walt Whitman NOTÍCIAS TABLOIDE CARROS ECONOMIA FÓRMULA 1 ENTRETENIMENTO COMIDAS E BEBIDAS MULHER DIETA E BOAFORMA EDUCAÇÃO RÁDIO

8.21.2007

Desencontros


E é difícil para M. até hoje aceitar que N. já não era mais sua. É que ela era o oásis, a salvação, o Éden perdido de M., e isso era tão puro e bonito que a feiúra de um mundo inteiro não ofuscava os brilhos do sol que eram aqueles-dois-em-um-só. Sim, pois a metade da alma de cada uma estava no outro, "dimidium animae meae", assim eles se chamavam, metade da minha alma, e eram sinceras palavras quando ditas, ou escritas. Pois sempre existiam cartas para serem entregues e lidas, e sempre muita coisa para trocar, de beijos até as carícias mais obscenas, e nunca nem mesmo isso era mundano.

Mas eis que os ventos batem, os amantes se separam, o tempo passa.

Um dia eis que em uma rua qualquer se encontram - e os segundos que duram aquela eternidade do reconhecimento são apenas um momento - e fogem um do outro. Correm como loucos, e sentem medo, mas também sentem desejo, e aumenta a vontade de ali mesmo se entregarem ao Grande Excesso, e ficam correndo com esta contradição por dentro, parece que vão tomar coragem e enfim fazer o que deveriam ter feito.

Mas só o que conseguem é correr mais depressa e ir cada vez mais longe. Para sempre.

8.14.2007

Dívidas


Dormir o sono dos justos é uma expressão bíblica que remete ao repouso tranqüilo dos homens de bem. M. lia a Bíblia, mas não acreditava em Deus, e nos últimos tempos o seu sono era como um castigo pela impiedade do ateísmo.

E no leito M. revirava de um lado para o outro, e lá ele tinha a sua estação no inferno, mas sem espaço para qualquer tipo de poesia: cada sobressalto, cada virada para um novo lado da cama estreita era acompanhada da palavra “dívida”, que surgia em sua frente em letras garrafais, espécie de outdoor mental que se esfregava em seu pensamento tão logo fechava os olhos.

E as dívidas eram muitas, extensíssimas, e tão imensas pareciam, e tão insolúveis quando postas ao lado de sua pobreza, que muitas vezes na mente de M. os melhores caminhos seriam o crime e o suicídio. Impossível dormir sabendo que já não conseguia pagar os empréstimos que fez para pagar dívidas, dívidas que ele nem sabia ao certo como começaram: parece até que acordou um certo dia e elas já estavam lá, gordas e abundantes a zombar de sua cara. Estranho mesmo, pensava, e devemos dar um certo crédito para este homem, afinal nunca se dera grandes luxos consumistas, pode-se dizer até que anda meio mal vestido, sempre as mesmas camisas amassadas e o sapato por engraxar, mas enfim as cartas de cobrança não mentem, estavam ali empilhadas sobre a estante da sala a espera de uma solução, até lá veremos M. virando de um lado para outro na cama.

Já era tarde, e M. olhava o teto do quarto semi-iluminado. Ocupava-se em ouvir uma briga dos vizinhos do segundo andar, povo mais sem educação, deveriam deixar os outros dormirem, M. ainda guardava certos pudores, difícil encontrar isso em um homem que não janta decentemente há dois meses e que engana o estômago com chicletes, estou é me fudendo com uma úlcera, pensava rancoroso. E os gritos dos vizinhos se misturavam ao som dos carros, a rua Augusta nunca dorme, de dia são as lojas e escritórios e butiques, de noite são cinemas e prostitutas e cafetões, e sempre cheia de carros, M. nunca teve um carro, nem sabia o nome de alguns, mas naquele momento todos os carros do mundo lhe pareciam coisas estúpidas e barulhentas, que o leitor veja nisso uma certa porção de inveja.

Como pagarei tudo isso, falava de si para si, mas é claro que era apenas uma pergunta sem resposta, assim como tantas outras, será que Deus existe, como começou o Universo, existe vida em Marte, M. virava novamente na cama e o seu drama pessoal oferecia ao mundo mais uma pergunta insolúvel. Já tinha vendido o computador, a televisão, o aparelho de DVD e alguns CDs, uma migalha após outra, mas não queria vender o seu som, afinal fora presente de uma namorada e sem música se sentiria ainda mais só, já que nem parentes próximos ele tinha e os distantes nem sabiam aonde ele estava. Sem música a vida seria um erro, essa frase não era dele mas M. a fizera sua, um erro, algo grotesco, pensava, e assim repetia toda vez que mirava o presente da ex-namorada e pensava em vendê-lo, veja até onde vai o desespero dos homens. E quando M. percebia que a noite já estava perdida, que nenhuma tentativa de adormecer seria mais válida e que o melhor seria acalmar os pensamentos, ele escolhia um CD qualquer, colocava no aparelho e ouvia baixinho, lendo as letras, às vezes cantarolando, às vezes com olhos vagos e cheios de tédio. Assim, algumas vezes, o sono até chegava a acontecer, e um pouco de repouso noturno lhe era concedido. Era como se as notas e acordes afugentassem as cifras, os juros, as cartas de cobrança, o nome sujo no SPC, a fome mascarada com chicletes, a vida que cheirava miséria. E M. fechava os olhos, imaginava as contas pagas, os credores felizes, a sua dignidade de homem renascendo. Um erro, uma vida sem música é um erro, pensava, e assim voltava para a cama, já satisfeito, já sem brigas de vizinho, já sem carros na rua para incomodar, apenas M. e sua cama mal cheirosa onde o aguardava um sono que, mesmo não sendo dos justos, lhe daria repouso antes de seu tormento retornar.

Em uma noite, sonhando com Lúcifer, Ele me disse:

"E que de hoje em diante nenhum momento seu seja feito de alegrias vãs e sentidos vazios; ocupará o seu tempo com criações, as mais belas e terríveis, e nenhum segundo de noites que se arrastam será desperdiçado com ternuras que não te querem e nem com sonhos que jamais foram seus; pois além de qualquer coisa pela qual o seu coração se incline, nenhuma será maior que o firme propósito que está aí, oculto em seu espírito, acessível apenas ao teu íntimo e a mais ninguém; pois queres a fuga de um leito bem aquecido? Ou as carícias de uma mulher que te olha como se fosse Deus? Ora, meu infante, meu doce bobinho, esqueça de uma vez por todas o que te foi ensinado e aprenda: a vida que tu queres é a vida que você mais odeia! Pois o teu Destino, aquele que pulsa desde sempre no Livro da Vida, aquele Destino da qual não se escapa, este Destino diz que a você nada mais há a não ser os seus próprios tormentos. Pois é sua sina estar para sempre apartado de tudo que é trivial, de tudo que conforta, de tudo que poderia fazer as noites mais próximas do Fabuloso. Sim, sim, sua vida é uma ânsia eterna que não se completa.

Quê? Pois isso é uma lágrima? Apague de seu rosto esta fraqueza - pois será a última. Suas noites e dias serão entregues ao confinamento em si. Estás para sempre sozinho. Quando muito, alguns caminharão ao seu lado por tempos. Mas eles irão embora, como todos sempre vão, até mesmo os amigos eternos, lembre-se apenas de quantas amizades você disse que eram para sempre e hoje são apenas fotos colocadas em caixas velhas. Nada mais sensato que aceitar a total dissolução de tudo que vive, e regozijar-se em caminhar breves passadas ao lado de quem lhe é caro - pois apenas passos vocês darão juntos e no final todos estão imutavelmente sós. E todo cansaço físico das noites a fio trancados em seu quarto - o seu único e verdadeiro mundo - jamais será recompensado, se por recompensa você desejar qualquer coisa que não seja conhecimento. Sim, pois conhecimento é o que lhe ofereço, conhecimento de si mesmo e de tudo que a ti se relaciona. Queres paz? Paixão? Felicidade? Pois tudo isso não são conceitos, invenções de homens que vivem febres como as tuas, desejos de aniquilamento como os teus? Nada há para você admirar que não seja a disciplina dos antigos sábios, a sede de Absoluto dos fanáticos, o impulso corajoso dos grandes heróis. Nada fora isso merece teu respeito. Crie, crie sem parar, até que sem forças adormeça, até que o sol volte a aparecer, até que todas as lembranças do passado cessem, até que os anjos venham em coro cantar para embalar seus sonhos, que serão adocicados e cheios de vida - a vida que não tens, a vida que nunca teves, a vida que jamais terás."

6.08.2007

As coisas que os amantes dizem


E no sonoro toque do celular de M. existia, desde a viagem, algo que arremessava aquele homem na tensão de uma alegria quase indecente. Sim, pois agora bastava o celular tocar para que os olhos de M. se abrissem mais que tudo, retinas feitas de expectativa, a mirar o minúsculo aparelho - e se ali encontrasse o número que sempre esperava, M. chegava perto daquela tola felicidade que todos sentimos na infância e que os anos acabam por tornar apenas uma lembrança.

Tudo isso soa ridículo. Mas assim são todas as histórias dos casais separados, elas só são belas para quem as vive, os olhos que de fora olham apenas podem julgar estes excessos de sentimentalismo como tolice de folhetim, peço licença para lembrar desta bonita palavra, tolice de folhetim, hoje não existem mais folhetins, temos ao nosso lado as novelas das oito, e das sete, e das seis, e outras que passam bem tarde, e tanta repetição de histórias perfumadas de enamorados, e tantas contas para pagar, e tantas Paulistas e Farias Limas paradas, e tantos metrôs infectados de gente que só lembramos de afetos quando topamos com anúncios de dia dos namorados, eis aí um efeito curioso da propaganda, até mesmo os mais truculentos mandam flores para suas companheiras nos 12 de junho, e talvez ensaiem alguma espécie de carinho naquela face agradecida, um leve e sem jeito roçar de dedos na bochecha, gesto que M. fez na face dela antes da despedida fatal, ela talvez não se lembre mas para M. aquele foi o último toque, o último sentir perto aquela presença já tão distante, e preservava aquela migalha de tempo com o cuidado e respeito que só merecem as divindades.

Será uma separação definitiva - assim M. dizia de si para si, como uma afirmação, será para sempre, e às vezes a afirmação era repetida como pergunta, será uma separação definitiva, incrível como a voz pode produzir a certeza e a dúvida usando as mesmas palavras. Para M. oscilar entre as duas era mais que um inferno, afinal S. fora para muito longe, não sei quando, e nem se volto, ela disse. Se M. pudesse a trancaria em seu quarto para nunca mais saírem de lá, já tinha falado disso certa vez, ela tomara como uma brincadeira, mas agora M. sentiu uma fisgadinha de arrependimento, deveria tê-la apenas raptado, maníaco, louco, todos diriam, mas livre da incerteza. Mas nem ele mesmo levava a sério este plano, o que mais admirava em S. logo após as curvas e o sabor semidemoníacos de seu corpo era a liberdade de espírito, o desejo de alçar vôos longe da terra natal e no distante além fazer uma nova vida. Incentivara e apoiara cada centímetro daquela viagem, foram até juntos comprar as malas, duas malas grandes e cheias de insolência, levarei S. para longe de você, pareciam dizer. Juntos eles colocaram nas abusadas malas blusas, camisetas e calças, dobradas uma por uma, entre conversas que nunca terminavam, não posso esquecer minha maquiagem, S. sempre tão preocupada com miudezas. Ele quis dizer coisas bonitas, ir além daquelas bobagens todas que os namorados se falam quando estão sós e nus estendidos e suados na cama, mas apenas repetiu as bobagens mais repetidas e bobas, e até sentiu vergonha de não saber versos, vergonha deveria ter sentido de dizer em sussurros o que todos os casais sempre dizem.

Egoísmo sem fim seria se colocasse moleza nos gestos, ou se distante ouvisse os medos de S. perante a viagem, M. queria era que tudo desse certo e no fim foi isso que aconteceu. Tanto que quando aquele coração de mulher tremia na incerteza, M. também quebrava completamente, mas arremessava a sua voz como pura confiança, a custo da morte do pessimista que vivia lá em seu íntimo. Sim, era uma mentira, algum mais apressado diria, mas ele nunca inventara facilidades e paisagens cor-de-rosa, só queria preparar a fúria que S. para ele sempre teve, e que jazia adormecida, apenas a esperar os desafios que a vida ingratamente distribui para despertar. Assim no aeroporto a abraçara mais forte do que jamais tinha abraçado e entre despedidas disse "Força!", era uma palavra horrível de se dizer - dissesse eu te amo, ou te adoro, morrerei de saudades, mas não força, alegaria um poeta da pieguice, mas para M. nenhuma palavra outra valeria a pena ser dita, queria ver S. voar ainda mais alto, mesmo que para longe de sua vista, mesmo que nunca mais possa cingi-la pela cintura e levantá-la e assim ir caminhando para o quarto, para onde você tá me levando, ela sempre perguntava rindo com sabor de malícia. Dizer força assim, em uma despedida que não se quer, onde dois que eram um são feitos dois novamente e jogados para longe um do outro, era para S. algo mesmo incompreensível, mas nas primeiras dificuldades no novo cotidiano ela soube, repentinamente, tudo o que M. quis significar quando pronunciou aquela palavra esquisita, e achou que seria bom tê-lo por perto novamente, senti-lo quente e com uma intensidade quase violenta, S. chegou a suspirar ao pensar nisso, e desejou aquelas longas conversas, aquele adormecer juntos sem a pressa de um vôo, apenas perder-se entre cobertores que cheiram sono, e quis então ela e M. livres, absolutamente livres, distantes da crueldade das grandes partidas, de toques de celular que amedrontam os corações, de qualquer coisa que faça em pedaços aqueles dias que não saem da sua memória e que jamais deveriam acabar.

5.31.2007

Sob a chuva e o Ragnarök

8:30 AM – 18/06
Ainda preciso ficar mais sete horas aqui dentro. Tal como o prisioneiro da solitária, conto os minutos que me separam da liberdade até o enlouquecimento. Um copinho de café e uma rápida ida ao banheiro apenas aumentam a sensação de que estou sob rígido controle. Todo meu esforço, então, vai ao sentido de transmitir aos demais que estou profundamente atarefado, olhar fixo no monitor, fazendo cálculos monstruosos, projeções de cortes de gastos para melhor multiplicação de dividendos. Em verdade minha mente está a quilômetros de distância visitando as delícias de uma cena de crime hediondo, algum excesso sexual ou relembrando o ótimo filme de ontem. Nada na tola vida corporativa que preciso aturar para garantir meu sustento me interessa. Sou incompatível com gráficos e fórmulas financeiras. E sempre quando aperto o nó da gravata penso o quão estranho são os caminhos que Deus escolhe para Seus filhos, quer acreditemos Nele ou não. Mas o que importa tudo isso? Será que eu desejo, no mais íntimo, que me paguem para fantasiar poesias? Tudo que me sobra são insatisfações e, desde a última visita ao médico, o início de uma gastrite nervosa. Nem refrigerantes, nem frituras, evite os enlatados, e passar bem meu rapaz.

3:30 PM – 27/06
O pior são as reuniões com a gerência: encontros programados para durarem duas horas, acabam se estendendo por até quase três, repletos daqueles sebentos protocolos de bons modos corporativos. Dê-me um castigo corporal, minas sem fim para escavar na Sibéria, uma noite andando nú nos domínios de Isengard, permitam-me sentir o sangue da carne escorrer e pintar no solo alguma imagem qualquer, um desenho infantil e grotesco – mas não me façam participar de mais uma reunião dessas. Até cheguei a dormir em uma delas. Sentado, a cabeça caída para frente, a expressão azeda da minha chefe louca para explodir desatinos enquanto os outros apenas esperavam meu despertar humilhado. Sempre me alegro quando lembro daquela incômoda (para os outros, não para mim) sesta corporativa, mas não gostaria de repeti-la.

5:15 PM – 29/06
Estou indo para a sala dela. O motivo eu já sei. As vendas da minha equipe não estão bem. Nunca foram. Dependendo do meu esforço, nunca serão (sou o tipo de homem que não se entende com notas ou valores; sempre quando adquiro algo me sinto como se tivesse sido enganado e na maioria das vezes faço péssimos negócios, mesmo quando compro chicletes). Era a quinta vez apenas hoje que esta prostituta me chamava na sala dela apenas para gritar. Uma gritaria e um acúmulo de palavras poucos gentis. Resultados, precisamos de resultados, sua equipe está péssima, você precisa motivá-los, não sinto comprometimento de sua parte, isso é irresponsabilidade. Friamente eu ouvia tudo, até o final. Olho no olho, como deve ser. Cada palavra era pesada, analisada, relacionada com diversos outros dados e, em questão de segundos, emaranhado em cálculos e numa queda vertiginosa de auto-estima, surgia um El Greco, os céus pesados de Toledo e o desejo de um êxtase de santo prestes a tocar o Intangível (as pinceladas velozes e o tom sobrenatural da cidadela, vista ao longe, as cores frias que quase tornam tudo opaco...).

- Você está anotando tudo que estou te pedindo?

- Sim. Tudo aqui, na minha agenda. Mais alguma coisa?

A sala tem uma larga janela no fundo. A cidade e seus prédios, posso vê-los daqui; conto o primeiro, o segundo, o terceiro, e são tantos que perde-se a conta e o olhar em meio a tantos prédios. Nas paredes predomina a candura de uma pintura nova, higiênica e desconfortante. O ambiente lembra um hospital. A mesa, em cor negra, acomoda uma agenda, canetas e um computador. Mulheres, amantes que são dos laços afetivos e (em grau ainda maior dos) seus símbolos, encheriam aquela mesa com fotos de entes queridos: o esposo, o namorado, os filhos, o amigo... Contudo não há nada que lembre afeto naquele ambiente. Nenhuma menção de carinho, nenhum traço de desorganização: ordem absoluta e fria que trazia-me enjôos.

- Eu sempre chamo você aqui pelo mesmo motivo. As vendas da sua equipe...

A chuva está ficando mais forte. Se não fossem estes vidros grossos a prova de som, escutaríamos os deliciosos sons da chuva caindo. Tive uma namorada que disse que os sons da chuva caindo eram tão gostosos que desejaria comê-los. Começo a pensar um sabor para eles. Tento imaginar um aroma também. Preciso sair daqui.

- ... pioram a cada dia!! Eu sempre falo sobre isso, mas parece...


O Ragnarök começaria com uma grande tempestade e as gotas fariam barulhinhos sabor creme de avelã. As gotas escorreriam pela minha boca semi-aberta. Ligaria para minha ex-namorada: você tinha razão, os barulhinhos da chuva têm sabor. Ficaria feliz por isso. O Ragnarök destruiria tudo mas a chuva seria consolo triste no meio da destruição.

- ... que você não se importa com nada!


- Estou revertendo esta situação. Nos últimos dias...

E olhando mais além dos primeiros prédio, a água da chuva que cai, densa, escura, constrói uma cena sem beleza, mas que prende o olhar e faz esquecer o Ragnarök. E por detrás da eficiência de minhas explicações de subalterno, apenas desejo minha demissão, apenas um confortável seguro-desemprego, apenas algumas migalhas pelo esforço de anos aqui. A imagem longínqua dos prédios, cada vez mais opaca e distante, mesclando-se ao som de minha voz mentirosa, que diz aquilo que precisa ser dito e que não impõe respeito nem convicção, vai aos poucos perdendo o interesse, e nada mais consigo olhar, nem sentir – sou todo voz, e uma voz toda de mentira e engano. Reproduzo com automatismo coisas inventadas não por mim, mas não reconheço quem as inventou. Até mesmo duvido se sou eu mesmo falando, se não há mais alguém que não vi quando aqui entrei, mas a dúvida é banal e passa depressa. Logo vem a mente mais uma vez a chuva, as telas de El Greco, uma confusão, mas não importa o que eu penso, o discurso é arranjado com precisão arrisco a dizer aritmética, contraditório atribuir às palavras uma alma de número, mas assim as coisas acontecem quando o que se fala é aquilo que o outro quer ouvir, um esforço mental quase nulo, basta deixar que o decoro e a hipocrisia guiem a língua. Coloco ao lado do discurso pronto um sorriso simpático, não há como dar errado tal tática, e já não me importo mais com a aparência de ambulatório da sala, apenas quero terminar mais esta encenação, e se o sorriso adiantar o fim melhor.

5.14.2007

E ao reler o Breviário, encontrei:


"... Até que tu vieste, Insônia, para sacudir minha carne e meu orgulho; tu que transformas o bruto juvenil, matizas teus instintos, avivas teus sonhos; tu que, em uma só noite, concedes mais saber que os dias consumados no repouso e, nas pálpebras doloridas, descobres um acontecimentos mais importante que as enfermidades sem nome ou os desastres do tempo! Tu me permitiste escutar o ronco da saúde, os humanos mergulhados no esquecimento sonoro, enquanto que minha solidão englobava a escuridão circumdante e tornava-se mais vasta do que ela. Tudo dormia, tudo dormia para sempre. Nenhuma aurora mais: velarei assim até o fim das eras: me esperarão então para pedir-me contas do espaço em branco dos meus sonhos... Cada noite era igual às outras, cada noite era eterna. E sentia-me solidário de todos os que não conseguem dormir, de todos esses irmãos desconhecidos. Como os viciosos e os fanáticos, eu tinha um segredo; como eles, havia constituído um clã, a quem tudo desculpar, tudo dar, tudo sacrificar: o clã dos insones. Atribuía gênio ao primeiro que chegasse com as pálpebras pesadas de fadiga, e não admirava nenhum espírito que conseguisse dormir, fosse ele glória do Estado, da Arte ou das Letras. Havia consagrado culto a um tirano que - para vingar-se de suas noites - proibira o repouso, castigara o esquecimento, decretara a desgraça e a febre. E foi então que apelei para a filosofia: mas não há idéia que console na obscuridade, não há sistema que resista às vigília. As análises da insônia desfazem as certezas. Cansado de tal destruição, chegava a dizer-me: nenhuma hesitação mais: dormir ou morrer... reconquistar o sono ou desaparecer... Mas tal reconquista não é fácil: quando nos aproximamos dela, percebemos o quanto estamos marcados pelas noites. Se amas, teu ímpeto estará corrompido para sempre; sairás de cada ´êxtase´ como de um pavor de delícias; aos olhares de tua vizinha excessivamente próxima mostrarás um rosto de criminoso; a seus arroubos sinceros responderás com as irritações da uma voluptuosidade envenenada; à sua inocência, com uma poesia de culpado, pois tudo se tornará para ti poesia, mas uma poesia da culpa... Idéias cristalinas, encadeamento feliz de pensamentos? Não pensarás mais: será uma irrupção, uma lava de conceitos vomitados, agressivos, saídos das entranhas castigos que a carne se inflige a si mesma, pois o espírito permanece vítima dos humores e fora de questão... Sofrerás por tudo, e desmesuradamente: as brisas te parecerão borrascas; as carícias, punhais; os sorrisos, bofetadas; as bagatelas, cataclismos. É que as vigílias podem cessar; mas sua luz perdura em ti: não se vê impunemente nas trevas, não se extrai delas ensinamento sem perigo; há olhos que nunca mais poderão aprender nada do sol, e almas doentes de noites das quais jamais se curarão...".

CIORAN, Emile. Breviário da Decomposição. Tradução de José Tomas Brun. Editora Rocco, São Paulo, 2000.

5.12.2007

Snooker, pipoca e crises


Porque entre os escombros ainda brota vida, e nem mesmo Deus, em sua solidão infinita, pode impedir que nós brinquemos de anjos rebeldes que a tudo negam com apenas uma palavra.

E assim se passa uma noite entre mesas de bilhar onde as horas voam, onde confissões são feitas e laços se tornam ainda mais firmes.

Acendo um cigarro, penso na forma inesperada como aconteceu toda aquela conversa, e em tudo que falei e principalmente no que ouvi. Sim, Deus, triste é sua solidão e ela nem se compara com a minha. Mas no intervalo de algumas horas o meu universo foi preenchido - e para minha felicidade, agora nada mais será como antes.

5.09.2007

Abraços de um sem fim

M. andou por muitas horas. Era sua terapia quando estava ansioso. Comprou para ela um lindo colar que há tempos prometera. Nem pensou em embrulhar: colocou no bolso da bermuda e fez o caminho de volta. Tinha ido muito longe, o caminho de volta seria fatigante. Mas era um daqueles dias onde fazemos coisas idiotas, e M. sabia disso mais que ninguém. Por que dar um presente desses quando tudo agora é cinzas, pensou. Era uma pergunta importante, mas M. sabia que a resposta poderia ser qualquer uma, até mesmo uma resposta dada em forma de engano: saudade, desejo de criar uma fantasia, dívida com o passado que insiste em voltar. Ela nunca acreditara nele mesmo. Se não acreditasse na sinceridade daquele presente, era apenas mais uma incredulidade de mulher. Afinal, ele era um homem, e segundo o catecismo feminino homens são seres que mentem usando palavras cobertas com açúcar. Saber que ela pensava assim o fazia sofrer, e ela, quietinha, também ao seu modo sofria. Mas quando M. mirava aqueles olhos cheios de brilho e falava "gosto de você, menina", a sua alma era só emoção e nas suas palavras só existia verdade. E era a verdade deste sentimento que o fazia mexer no bolso da bermuda e apalpar o colar. Ansioso como nunca, ia mais rápido para a casa dela. Queria entregar o presente, queria beijá-la mais uma vez, sentir o calor de um abraço que já conhecia, mesmo que fosse para nunca mais. Era um dia comum em São Paulo, com seu ar tórrido de rush e buzinas e gente cheirando a estresse - mas graças à ansiedade de M. as avenidas eram como corredores de um sonho e as pessoas desfilavam em harmonia abrindo-se em seu caminho. E na casa dela, M. tira o colar do bolso e mostra cheio de orgulho. Demorou pra achar um do jeito que você falou, mas enfim encontrei. Ela agradece, voz baixinha, misturando um pouco de timidez com uma dose generosa de alegria. Aproximam-se, pé ante pé, parece que vão se beijar pela primeira vez, assim é o beijo dos apaixonados, carregam os mistérios de Vênus na tensão que o antecede. Mas enfim não se beijam, apenas se abraçam, e é um abraço que parece poesia, o rosto de M. mergulhado no perfume dos cabelos dela, e a face de menina-mulher brilhando feliz ao sentir o másculo amplexo. Minutos infinitos eles ficam ali, absolvidos na emoção do reencontro, afogados no momento que querem a todo custo reter e fazer gelar, e sabem que não vão conseguir, que terão que se soltar e encarar-se; e a vida, que em momentos atrás parecia um sonho vivido, vai esbofetear o rosto destes dois apaixonados e fazê-los acordar. Mas até lá, M. ficará mergulhado naqueles olhos feitos do mais doce brilho, e vai dizer novamente “gosto de você, menina” - e ela, desta vez, vai acreditar.

5.06.2007

Noite insone



As noites insones são as maiores delícias mortas na vida de alguém. É como se o tempo passasse sem passar, como se carro do Sol se levantasse e trouxesse um dia novo, sem parecer que o dia que foi ontem se foi para sempre. As noites insones te levam do quarto para a cozinha em busca de algo para beber e aquecer aquele frio que insiste em entrar pelas frestas da janela, e no meio do caminho ainda há uma tentativa de ligar a TV, mas logo se percebe que aquele mundo da telinha não é mais para você. As noite insones são acúmulos de horas que inquietam o espírito. Os olhos buscam leituras, letras, frases, períodos, poemas que balbuciam dores em cada verso, romances que esbofeteiam, filósofos tão incompreensíveis como as razões que te deixam desperto e com batimentos cardíacos acelerados em plena 4 horas de uma quarta-feira qualquer.

As noites insones castigam mais do que os remorsos dos velhos, aqueles remorsos de uma vida que foi perda, ruína e covardia. E não é demais pensar que o próprio Cristo teve a sua noite insone, no escuro Getsemâni, a procurar uma razão para seu sacrifício. Cristo compreende os insones. Ele conhece a agonia de querer dormir, do corpo pedir descanso e encontrar a resistência de pensamentos que não cessam de reclamar. A tolice ainda aumenta quando o cigarro é aceso, a nicotina afasta o sono como cruzes afastam maus espíritos, e ainda busca-se um café para completar o desastre, ou chá, ou os dois, mesmo o chá verde tem cafeína, um veneno a mais para a desgraça de ficar confinado entre o azedume característico das lembranças que não querem partir.

As noites insones são todas. Não lembro quando tive a última noite de sono saudável, regular noitinha gostosa envolto entre cobertas cheirosas das 22 às 7, uma delícia, acorda-se com a disposição de um conquistador, come-se pão fresquinho com um leite vaporoso de quente. Agora a minha hora é inversa a da maioria e eu estou a mil quando o mundo estaciona em letargia. Adormeço por momentos, resmungo, os sonhos são tristes e eu invejo aqueles que jamais se lembram deles. Como muito mal. Às vezes esqueço de tomar banho. Respiro o ar de um quarto que nunca está com a janela aberta, odeio vizinhos bisbilhoteiros. Sei que Deus me vê agora, este Deus absurdo que brinca com os homens em suas ironias, mas Ele eu tolero e não tenho como evitar. Penso como foi triste a agonia no Getsemâni, afinal Jesus não tinha livros, nem computador, nem café para lhe fazer companhia, e os folgados dos apóstolos estavam é dormindo. Era só Cristo com o desespero de uma noite que não se dorme. Eu sempre achei que estes infernos noturnos me seriam negados, mas eu estava errado.

E nas noites insones leio, escrevo, penso, leio mais, escrevo mais um pouco, busco uma saída e o presente de encostar a cabeça no travesseiro e simplesmente repousar - mas não acontece. Desejo que Hipnos embale meu pensamento e o deixe dócil, pequeno, envolto em nuvens etéreas - e ele não aparece. Ao contrário, tenho um coração que não pára e uma ânsia de absoluto que fica ao meu lado sugerindo planos para o próximo dia. Sou um atleta do devir. Especialista em fazer de noites inteiras um laboratório de tormentos e lágrimas, e com a sensação de estar enlouquecendo por isso sem ao menos dar importância.

4.09.2007

Escolhas

Em um minuto, S. precisava tomar uma grande decisão. Pouco tempo para muita responsabilidade. Afinal, quase como o destino de seu coração o que estava sendo decidido: precisava escolher entre o cheiro de um perfume que lhe causava as mais fortes ereções ou o prazer de tórridas aventuras sexuais nas suas tardes de vagabundagem.

Era uma decisão difícil. A primeira tinha xx anos, a segunda yy. Era uma diferença banal, mas significativa para S., que beirava os 30 e estava em busca de alguém que pudesse, quem sabe, regar com ele as flores de seu jardim no futuro vetusto. Ele adorava esta imagem, regar com juntos as flores de seu jardim, leu isso em Voltaire e achou lindo, e a imagem dele com brancos cabelos, alguns netos e um jardim era coroada pela presença da esposa, igualmente de cabelos brancos, junto com ele no cuidados de crisântemos e papoulas.

Mas tudo poderia ser apenas sexo, tanto com uma ou com outra. Pegou o telefone da primeira, pegou o da segunda, somou números, procurou combinações, tentando achar algum indício cabalístico de quinta categoria. Explicar número de telefone pela cabala, era só o que faltava, realmente S. precisava de ajuda, ou ao menos de um pouco mais de canalhice, ficava com uma hoje e a outra amanhã, elas jamais saberiam, bastaria levá-las para lugares diferentes. Lembrou dos seios de T., logo em seguida da bunda de M., comparou-as, bela bunda, belas tetas, seria bem melhor se S. fosse algum tipo de deus que pudesse leva a bunda de uma pro corpo com as tetas da outra. Por um momento este pensamento o absorveu, nem deu tempo de dar-se conta do absurdo no qual se metera, e logo sacou os papéis de telefone de novo e ficou pensando para qual delas ligar.

Não deu tempo: o celular tocou. Olhou o visor, era uma garota de tempos atrás. Que estranho ela ligar assim, mas alegrou-se, ela era um avião, S. adorava gírias antigas. A conversa fluiu imbecil como todas as conversas entre pessoas que há tempos não se vêem, saudades, vamos sair?, eu te ligo, a gente combina, e assim ficou acertado que S. ligaria para ela na sexta, iriam num bar para matar saudades, certamente ela queria mesmo era o velho vai-e-volta acelerado, mulheres também são filhas de deus.

Então S. viu os telefones em sua mão, olhou bem para cada um deles, xx anos em um, yy anos no outro, em uma aquela vida de delícias sentimentais, na outra uma ninfeta tarada na qual era difícil confiar - anotou ambos na agenda do celular, acendeu um cigarro e foi até a janela. Não ligaria para nenhuma das duas, estava decidido, disse baixinho para si mesmo. Tentava levar o pensamento para longe daquela confusão de nomes e seios fartos, para longe daqueles nomes, para longe daquelas vozes femininas cheias de veneno. E por mais que tentasse apaziguar seus pensamentos, S. olhava a cidade com a estranha sensação de que estava perdendo a mulher de sua vida para sempre.