11.26.2009

Em defesa do romance - Vargas Llosa


No site da Revista Piaui há um ótimo texto do Mario Vargas Llosa, cujo mote principal é a defesa da literatura. Para ele, "um mundo sem literatura teria como traço principal o conformismo, a submissão dos seres humanos ao estabelecido. Seria um mundo animal."

Embora o texto tenha excelentes momentos (como quando aborda a relação entre literatura e prazer sexual, no qual Llosa sustenta que tanto o amor quanto o prazer "seriam mais pobres, privados de delicadeza e de distinção, da intensidade a que chegam todos aqueles que se educaram e estimularam com a sensibilidade e as fantasias literárias") a aposta que o leitor faz na literatura como um fator humanizante chega a dar sono. A depuração do intelecto nem sempre vem acompanhada da depuração do caráter. Sarney, por exemplo, é um dos maiores bibliófilos do Brasil. Esse é um dos pontos onde o texto de Llosa falha vergonhosamente.

Outro ponto é a aposta na literatura como passaporte para a civilização. Ele diz:

"Uma humanidade sem romances, não contaminada pela literatura, se pareceria com uma comunidade de tartamudos e afásicos, atormentada por problemas terríveis de comunicação causados por uma linguagem ordinária e rudimentar."

Não preciso sublinhar no trecho acima a desconfiança de Llosa pelas culturas não letradas. Em certa medida, ele está correto: parece haver um salto qualitativo nas realizações culturais de um povo quando este passa da oralidade para a escrita. Mas voltemos os olhos para outras culturas, onde literatura tal como a defendida por Llosa nem de longe existia.

A Índia, por exemplo. O Rig Veda, composição poética de mais de seis mil anos (para alguns doze mil anos) era eminentemente oral. Não eram textos literários, no sentido ocidental do termo. Sua função era eminentemente religiosa. Contudo as noções morais ali colocadas, os dilemas humanos e tudo o mais revelam um apuro comunicativo altamente desenvolvido, muito distantes da animalização que Llosa julga encontrar nas sociedades que não lêem/produzem romances.

E para nos atermos a exemplos mais próximos no tempo e espaço, podemos lembrar dos incas, subjugados pelos letradíssimos espanhóis na sua sede por ouro, e que mesmo não possuindo literatura deram mostras inegáveis de uma cultura desenvolvida em grande escala. Os relatos dos primeiros colonizadores, em muitos pontos, salientam as maneiras educadas e respeitosas nos tratos entre si dos povos originários.

Llosa, longe de perceber estes fatos incontestáveis, faz uma aposta ilusória no fator humanizante da literatura. Tal afirmação só pode sobreviver pela arrogância ocidentalizante de que o conhecimento, por si só, é capaz de moldar o caráter. A vivência acadêmica na USP tratou de esfregar na minha cara que essa é uma das maiores mentiras já inventadas.

Obviamente não defendo o embrutecimento e a opção voluntária pela burrice Uma das coisas mais irritantes para mim é a ignorância. Mas afirmar que a literatura é o motor principal da abertura das consciências soa como piada aos meus ouvidos.

Parece que o conhecimento depura o ser apenas quando acompanhado de vivências e reflexões. Da mesma forma que não basta ler Alfred de Musset para se tornar um exímio amante, sendo necessário algumas garotas (ou garotos) para se realizar como tal. O mundo, a grande experiência do mundo, os perigos e oportunidades que ele oferece compõem a arena onde nos arriscamos diariamente. E nesses riscos diários as páginas dos livros, por mais importantes que sejam, parecem não são ser decisivas.

11.25.2009

Preâmbulos

Há dias em que apenas uma chuva de ácido sossegaria minha sede de mandar este universo e cada uma dos seres humanos que nele habitam para o nada de onde todas as coisas que existem, definitivamente, nunca deveriam ter saído.

Até lá, preencherei os dias entre a contemplação deste desastre e tentativas de tornar menos miserável o dia-a-dia. Há sempre o fracasso como possibilidade entre um e outro, e é bom lembrar disso, como maneira de equilibrar a arrogância, natural companheira minha.

Hoje ainda posto umas reflexões que tive sobre este texto do Mario Vargas Llosa. Ou talvez amanhã. A herança colonial sempre será a desculpa para o eterno para-depois e para-amanhã que costumamos aplicar a quase tudo. Gosto de boas desculpas, essas fantasias que em geral encobrem a fraqueza.

11.21.2009

As cruzes que os homens carregam

As cruzes humanas, pesadas, megalíticas cruzes, atormentam as costas dos desgraçados que as carregam. Suas formas são as mais diversas: ora são dívidas, às vezes são paraísos artificiais, outrora uma família que nos deixava feliz e agora só nos vitima com desgostos.

Há cruzes que são filhos inesperados, os quais é obrigatório amar, mesmo que nada nos ligue a eles a não ser as lembranças de um coito sem brilho, apenas mais um coito entre tantos, e que resultou em um ventre fecundo e um novo ser amaldiçoado desde a concepção. Para outros a cruz é um amor cuja voracidade engoliu a tudo, até mesmo da dignidade este amor fez refeições, a tudo devorou, como em geral acontece.

Tudo isso, todas essas cruzes, quando compartilhadas, pesam menos - é o que dizem. Mas a aqueles que renunciaram à própria renúncia, a aqueles cujo prazer supremo é rolar a pedra depois e depois, que mediante o efeito das noites em claro compreenderam a cíclica marcha das eras, lua após lua, sol após sol, a esses nenhuma cruz será mais pesada que o ar que os constrangem. A esses que, do peso infinito das horas, em uma alquimia que apenas os fortes conhecem, são capazes de rir e manter-se firmes, as cruzes que carregam jamais poderão ser compartilhadas totalmente - e cientes disso caminham para as altas montanhas, cientes disso descem para as profundezas dos abismos.

11.20.2009

Vania Zouravliov

Vania ZouravliovNa última vez que o casal Índio e Sascha aportaram por aqui conversamos, entre kekabs e cafés com damasco, sobre as ilustrações de um cara chamado Vania Zouravliov. Hoje, a Sascha finalmente me enviou um link com muitos dos trabalhos deste cara.

A imagem acima, que ilustra o post, é do Vania. E algumas das maravilhas dele eu coloquei logo abaixo. São todas belíssimas. Aprecie-as sem moderação:

Vania Zouravliov




Outros trabalhos do Vania você pode conferir aqui.

11.17.2009

As listas e a cultura

Hoje eu li uma entrevista com o Umberto Eco onde ele fala da importância que as listas desempenham para a cultura ocidental. Segundo ele, listar coisas faz parte do desejo humano de criar uma certa ordem em meio ao caos e estabelecer limites para o incompreensível. Daí surgiram dicionários, enciclopédias, legislaturas, museus - realizações estas que são como as grande listas de nossa cultura, registros das conquistas e criações dos homens nos mais diversos campos do conhecimento.

Fazer listas é inegavelmente um ato cultural, e na literatura elas ocorrem amiúde. E no cânone da literatura ocidental, uma das mais marcantes listas ocorre na Íliada. Conhecida como "o catálogo das naus", extende-se dos versos 484 a 877 do canto II , e é uma enorme lista de todos os povos e generais que participaram do cerco a Tróia, enumerados um a um, com as respectivas quantidades de navios e homens levados para a expedição guerreira.

De certa forma, o catálogo é um corpo estranho no poema: quebra-se a narrativa para enumeração de soldados. Há um debate secular sobre este trecho da Ilíada, mas todos concordam que um dos efeitos da passagem é mostrar a grandiosidade nunca vista da expedição, para que o leitor pudesse medir as dimensões do confronto; e justamente estas dimensões, épicas por excelência, foram as responsáveis pela popularidade da guerra. É mais ou menos isso que Eco diz neste trecho da entrevista:

Na "Ilíada", ele tenta transmitir uma impressão do tamanho do exército grego. Primeiro ele usa metáforas: "Assim como um grande fogo florestal investe contra o topo de uma montanha e sua luz é vista de longe, enquanto marchavam, o brilho de suas armaduras reluzia nas alturas do céu". Mas não fica satisfeito. Ele não consegue encontrar a metáfora certa, então implora às musas para que o ajudem. Então ele chega à ideia de listar os nomes de muitos, muitos generais e seus navios.

Na edição bilíngüe com tradução de Haroldo de Campos, pouco antes de começar a lista das naus, o poeta evoca as musas com os seguintes versos:

(...) o total de nomes da multidão, nem tendo dez bocas, dez línguas, voz inquebrantável, peito brônzeo, eu saberia dizer, se as Musas, filhas de Zeus porta-escudo, olímpicas, não derem à memória ajuda, renomeando-me os nomes."

O gênero épico prescreve a evocação das musas como auxílio ao poeta, para o sucesso da narrativa. E momentos antes de efetuar a lista dos povos que se movem contra Tróia, nada mais adequado: a tarefa, o poeta sabe, é enorme. Justamente sobre essa dificuldade Eco fala logo em seguida:

O trabalho de Homero se depara constantemente com o tópos do inexpressível. As pessoas sempre farão isso. Sempre fomos fascinados pelo espaço infinito, pelas estrelas incontáveis e galáxias além das galáxias. Como uma pessoa se sente olhando para o céu? Ela acredita que sua língua não é suficiente para descrever o que vê.

Foi lendo este ponto da entrevista que me lembrei da mais recente versão para o cinema da guerra de Tróia, lançada em 2004. Procurei rememorar como a tediosa listagem das embarcações feita por Homero foi transposta para as grandes telas. Se você viu o filme, talvez se lembre de uma cena presente na primeira meia hora, que não dura mais do que poucos segundos, onde o mar Egeu aparece coalhado por milhares de embarcações. A cena é breve, mas a impressão produzida pela imagem de um mar repleto de barcos dá a dimensão da guerra que está prestes a começar.

O que podemos concluir disso? Que a sintaxe própria da linguagem do cinema, estruturada na imagem, difere da do texto épico, baseada na escrita. A escrita não tem a simultaneidade radical da tela do cinema, onde todos os barcos podem ser vistos ao mesmo tempo: é o acúmulo descritivo da lista que permite ao texto homérico criar a impressão de grandiosidade do exército que acompanha Agamêmnon.

De certo modo, a literatura força o leitor a produzir a imagem da armada gigantesca, em um esforço imagético impulsionado pela leitura. Claro que o nível de detalhamento da imagem do Egeu dominado por naus dependerá em larga medida do repertório do leitor, dos seu nível de interesse pelo texto lido e também da tradução utilizada. Mas se a leitura do texto épico proporciona este exercício mental, ou melhor, se a literatura é ela inteira um exercício de (re)criação de imagens, a transposição de textos literários para as telas do cinema anula este prazeroso desafio e nos dá as imagens prontas, acabadas. No caso específico da Ilíada, a grandiosa lista de Homero me obrigou a vencer, na primeira leitura que dela realizei, uma espécie de enfado por tão longa e tediosa descrição; contudo o efeito almejado é soberbo, e ainda terei a paciência (e o tempo, recursos escasso) para fazer um mapa com os nomes das regiões citadas (e não a lista uma espécie de atlas escrito daqueles tempos?). Já no cinema, nenhuma referência geográfica é dada: mostra-se o mar infinito tomado por barcos de todos os tipos e tamanhos. A visão é terrível, acentuada pelo movimento da câmera e pela trilha sonora; adequa-se, para citar Paul Veyne, ao nosso intenso gosto moderno, que só admite a arte como excesso, grandiosidade, estremecimento.

Neste sentido, a lista proposta por Eco não satisfaz mais. Em geral são chatas, para alguns até mesmo insuportáveis. O cinema nos fornece uma possibilidade de reproduzir a impressão de grandiosidade da lista poupando o esforço intelectivo de recriar a imagem da armada enorme. São linguagens diferentes e, claro, é preciso entendê-las tal e qual; mas as deficiências da lista como recurso literário não são abordadas por Eco na entrevista. Poderíamos levar em conta que a Ilíada é um exemplo demasiado gasto, com seus 26 séculos de idade; mas mesmo em autores recentes, como Eça de Queirós, a leitura das partes descritivas (que nada mais são do que listas) é por muitos evitada. Mesmo para os que gostam de literatura e até mesmo para aqueles que a encaram como profissão. Listas demandam cuidado, apuro, paciência. São inegavelmente um produto cultural escrito (ou mesmo falado, se pensarmos que a Ilíada e muito da tradição épica antiga são sobretudo versões escritas de poemas orais, e nisso Milman Parry é a melhor fonte a consultar).

Frente a isso, retomo certos aspectos de meu post anterior para finalizar dizendo que certamente seria muito interessante ver Eco problematizando as listas de nossa cultura (uma cultura fundada em inúmeras listas), contrapondo-a com um ambiente onde a imagem ganha mais espaço e deixa a leitura como um item necessário, porém fadado a simplificações de forma e conteúdo que, se as previsões pessimistas se confirmarem, tornará cada vez mais difícil a formação de leitores capazes de efetuar leituras em profundidade. Isso ode ser uma boa explicação para a crescente popularidade dos romances históricos, que transformam a árida matéria dos livros de História em excitantes enredos. Ou mesmo para o fenômeno Dan Brown, cujos livros recheados de informações sobre arte, literatura, arquitetura, etc são verdadeiras minas de ouro para as editoras, e os leitores em geral oferecem, ao final da leitura, uma confortável sensação de inteligência e erudição - feita de retalhos toscos, mas mesmo assim garante um certo brilho de sagacidade na mesa do bar. Nada contra a mesa do bar, mas esta sensação de conhecimento é apenas isso mesmo, uma sensação, e nada mais além disso.

11.09.2009

O romance e os novos processos de leitura


Este post é uma espécie de continuidade da idéia apenas esboçada no post anterior -de que romances com uma "sintaxe cinematográfica" poderiam ser um fator de inovação da linguagem romanesca. Embora eu não tenha encontrado uma resposta definitiva, logo após a publicação do post deparei com dois artigos que me fizeram pensar mais a respeito, ampliando o escopo do problema.

O primeiro foi um artigo publicado no The New York Times, que comenta sobre "Level 26: dark origins", o novo romance de Anthony Zilker, criador da série CSI. O romance, lançado em setembro, está disponível, além da versão impressa, em formato e-book, áudio livro e também para iPhones. Mas não é só isso: os leitores do romance são encorajados a visitar um site com vídeos baseados em passagens do livro.

O NYT chama livros como "Level 26" de "hybrid books" ou, de forma ainda mais ousada, de "vooks" (neologismo de gosto duvidoso, sem dúvida). Ainda neste artigo, Judith Curr, editora da Atria Book, diz que "você não pode mais ser linear com o seu texto" e que "todo mundo está tentando pensar em como livros e informação [multimídia] ficarão melhor combinados no século 21". Esta combinação do livro com vídeos e sites, diz-se, proporcionarão uma interação maior do leitor com a obra, em uma experiência cognitiva que não se limitará mais a leitura do que está no papel.

Além da interação leitor-obra, as redes sociais e os blogs poderão ser meios de criar/potencializar um tipo de interação que nos anos passados era muito mais difícil (e na maioria dos casos impossível): a interação autor e leitor. Através destas ferramentas, o autor pode escrever um livro online e, mediante os comentários recebidos, promover (ou não) alterações. Susan Katz, editora da Harper Collins Children´s Books, aposta que no futuro será mesmo muito comum que "o autor seja visto como um líder de um grande grupo e escolherá a dedo a partir destas sugestões [dos leitores]". Isso, aliás, já está acontecendo: Kevin Kelly, desde 2004, está escrevendo um livro que conta com a participação de muitos de seus leitores. Cada post é discutido por uma série de pessoas em todo o mundo, e o próprio Kelly incentiva a prática neste texto onde explica suas motivações colaborativas.

O processo de leitura é de natureza linear. Formamos palavras através de letras, orações através de palavras e enfim textos com a (co)ordenação de tudo isso. E essa linearidade típica da leitura ocorre essencialmente no tempo. Os elementos discursivos são como que somados, colocados um na "frente" do outro, e daí se produzem os sentidos. Agora, com todas as possibilidades de interação promovidas por vídeos e redes sociais nos processos de leitura, ocorre como que uma quebra neste percurso linear. Romances como "Level 26" pretendem ampliar a experiência cognitiva, conferindo-lhe aspectos de simultaneidade. O texto "salta" do papel de uma forma muito mais concreta do que apenas na imaginação do leitor.

Esssa mescla do visual com o romance é algo ruim? Nenhuma resposta convincente pode ser dada a esta pergunta, pelo menos por enquanto. Considero até mesmo a minha pergunta um absurdo: juízos de valor sobre fatos culturais em geral deformam nossa visão sobre o fato. E o fato é que o romance, gênero literário essencialmente problemático (pois produto do zeitgeist da modernidade), está sofrendo abalos consideráveis em um contexto onde a imagem ganha espaço cada vez maior. Já em 1974 o alemão Adorno tinha dito que

"Assim como a pintura perdeu muitas de suas funções tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indústria cultural, sobretudo para o cinema."

E mais isso aqui:

"Noções como a de 'sentar-se e ler um livro' são arcaicas. Isso não se deve meramente à falta de concentração dos leitores, mas sim à matéria comunicada e à sua forma." (as duas citações extraídas de Notas de Literatura I, página 56, Duas Cidades/Editora 34, 2008)

As partes grifadas corroboram meu ponto de vista: a forma do romance está aquém de nosso tempo. Sua forma não corresponde mais totalmente aos anseios do homem atual. Isso já está sendo discutido há tanto tempo que me sinto idiota ao ler o que escrevi (digo isso como um alerta, para que o leitor não pense que descobri isso sozinho; sou de um convencimento absurdo, mas para certas coisas é preciso ter modéstia); e apenas para lembrar uma experiência radical de questionamento da linguagem romanesca, eu cito "Memórias sentimentais de João Miramar", de Oswald de Andrade, romance devastador que empurra os limites expressivos do romance para um pouco mais além das linhas estabelecidas naquele Brasil de 1924.

Voltemos ao mundo dos processos de leitura e das inovações promovidas por vooks e redes sociais. Neste artigo interessantíssimo do site The Frontal Cortex, discute-se como a leitura pelo computador se relaciona com os processos neurais. O que me chamou a atenção não foi saber que a dificuldade e incômodo que muitos expressam ao ler pelo computador é, neurologicamente falando, o mesmo que nos afeta ao ler um texto impresso com fonte não amigável (por exemplo, a letra gótica medieval), e que a prática contínua da leitura online elimina o desconforto da mesma forma que nos acostumamos com fontes indecifráveis (é incrível como a minha namorada, que é mais nova do que eu, lê com muita naturalidade no computador, e isso me faz pensar que há uma questão geracional ainda não devidamente estudada sobre por que as pessoas reclamam que não gostam de ler no computador). O que me suscitou interesse nesse artigo foram as palavras da neurocientista Maryanne Wolf, que acenou para a necessidade de estudar, até mesmo fisiologicamente, os processos cognitivos das novas gerações, submetidas que estão a vídeos, fotos e gifs animados que interferem no processo de leitura. Nunca se produziu tanto conhecimento e livros como hoje em dia, mas frente a tantas distrações , segundo ela será cada vez mais difícil a formação de leitores capazes de imersão profunda em textos longos e complexos.

Cortázar disse que o romance não tem leis, "a não ser a de impedir que a lei da gravidade entre em ação e o livro caia das mãos do leitor." Hoje a literatura ocorre além das páginas dos livros e se funde com vídeos, música, discussões em redes sociais. Muitas vezes, o romance que cai das mãos do leitor só faz isso para deixá-las livres e assim investigar um site onde o personagem conta detalhes da trama apenas sugerida nas páginas de papel. Se isso não é uma reconfiguração das leis do romance, então não sei o que pode ser.

11.04.2009

"Miguel e os demônios", do Mutarelli

Este mês faz um ano que li "A arte de produzir efeito sem causa", o primeiro romance de Mutarelli lançado pela Companhia das Letras. Lembro que ganhei o livro na sexta-feira à noite, durante minha festa de aniversário; a festa acabou, todos foram embora; antes de ir para a cama, lá por volta das 2h00 da manhã, peguei o livro e só o larguei pela manhã, varando a madrugada na leitura, até chegar ao final. Foi um de meus melhores aniversários.

Na última sexta-feira comprei o novo romance do Mutarelli, "Miguel e os demônios, ou Nas delícias da desgraça". E da mesma forma que em seu último romance, as 115 páginas foram lidas em apenas algumas horas. Tem tudo: tortura, sexo sujo, pedofilia, satanismo (a constante presença das moscas ao longo do romance me parece ser uma alusão a Belzebu, demônio cujo nome significa "senhor das moscas") e coisas ainda mais bizarras. O estilo do velho Muta está, neste novo trabalho, mais direto, mais seco. Tentei ver arestas e sobras relendo algumas páginas antes de começar a escrever este post - mas nada encontrei. A precisão e a secura de seu estilo, burilados desde os tempos do insuperável "Transubstanciação" (e será sempre uma pena que ele não desenhe mais), parecem ter alcançado em "Miguel e os demônios" um patamar superior, com recursos narrativos que flertam com a linguagem do cinema, como no trecho:

- Pelo cheiro, o presunto está aí há uns três dias - diz Pedro,
Miguel concorda, com a cabeça. Examina o cadáver. Parece em transe. Pedro vai para a viatura e aciona a central pelo rádio.

Sépia.
Terreno baldio. Imagem borrada, luz difusa. Lembrança.
Um menino solitário brinca com um graveto. Miguel, menino. Detalhe da mão do menino erguendo o graveto para o céu. O graveto acompanha o percurso de aviões que passam. Esquadrilha da Fumaça. O menino tropeça em algo e cai. Percebe um cão vira-latas morto a seus pés. O menino se levanta e com o graveto cutuca, levemente, o cão.

- Miguel!
Miguel retorna do transe e percebe que faz o mesmo com a carcaça do homem. O plástico derretido encapa as mãos e a cabeça. (...)


Se isso é experimentalismo do Muta ou o romance foi composto pensando na telona pouco importa: o resultado é um texto que joga responsabilidades para o leitor. Forçosamente, o leitor recria as imagens sugeridas pelo texto, baseado em seu repertório imagético.

Daí é possível entender por que a Companhia das Letras chamou o novo livro de "antirromance" na contracapa. Confesso que ao ler "Neste antirromance policial do autor de O cheiro do ralo..." eu desconfiei de imediato do tom marqueteiro. Mas de certa forma pode-se dar o mérito ao texto do Muta pela mescla radical com a linguagem cinematográfica. Afinal hoje, apesar da decadência cultural como um todo, lê-se muito mais do que antes; e apesar disso, é inegável que vivemos em tempos intensamente visuais (a maioria esmagadora de meus amigos são designers ou de alguma forma ganham a vida trabalhando com imagens). Frente a isso, uma pergunta que eu ainda não respondi: um romance como "Miguel e os demônios", cuja leitura é também um exercício prático de criação de imagens (de imagens cinematográficas, vale lembrar) pode ser considerado um precursor da renovação da linguagem romanesca?

Ainda não tenho a resposta. Se você achar alguma, me conta. Enquanto isso, vá ler "Miguel e os demônios" e deixa de perder tempo com este blog. Fade.