6.15.2012

In hoc signo vinces - Paul Veyne e o cristianismo


satanismo popular-fudido

29 de outubro do ano 312: na Ponte Mílvia, a cerca de 15 quilômetros de Roma, o exército do general Constantino enfrenta os soldados de Maxêncio pelo controle da metade ocidental do Império. Constantino estava em defasagem numérica: algumas fontes indicam que para cada homem de seu exército, Maxêncio contava com quinze. Mesmo assim, Constantino empreende o ataque – e vence. Sagra-se Imperador de Roma e atribui a vitória não ao valor de seus homens, não a um golpe de sorte, mas a um único e grandioso motivo: a vontade de Deus. É nesse momento que nasce o Cristianismo.

Afirmar que o cristianismo nasce em 29 de outubro de 312 d.C. parece ser um erro conceitual: passados já quase três séculos desde a morte de Jesus, não existiam milhões de cristãos em todo o Império? A Igreja já não era uma instituição respeitada, com homens poderosos em suas fileiras? Os deuses do paganismo não eram encarados, e isso desde Virgílio, como simples mitologia esvaziada de qualquer realidade? Ao menos era mais ou menos isso o que eu sempre tinha ouvido: o cristianismo, evoluindo lentamente, minou as reservas espirituais do paganismo e tornou-se a religião oficial do Império Romano e, por conseqüência, virtualmente de todo o mundo. É justamente essa tese que o historiador francês Paul Veyne contesta e maciçamente destrói no livro “Quando o nosso mundo se tornou cristão”. Esse post é uma tentativa mais do que modesta de comentar alguns pontos da obra lançada em 2007 (tenho a tradução em português de Portugal de 2009).

A tese de Veyne é, em certa medida, bem simples: sem Constantino, o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda. O Império estava repleto de outras crenças e, nos tempos da batalha da Ponte Mílvia, as perseguições aos cristãos não aconteciam mais.  Ao mesmo tempo, é enganoso imaginar que o cristianismo estava minando as crenças pagãs: em 312 d.C., apenas 5% do território romano estava cristianizado. Contudo, 80 anos depois, o cristianismo tornou-se a religião oficial de todo o Império. Como explicar uma expansão assustadoramente rápida?  

Os fatores são variadíssimos, mas um ponto chave na tese de Veyne é que, com Constantino, o cristianismo não era a religião do Império, mas a religião do imperador: sabendo-se senhor de massas amplamente pagãs (e como todas as massas, contrárias a mudanças bruscas em sua meia vida de homens-gado) o imperador soube usar de sua influência para, gradativamente, ir dotando de cada vez mais poder no sistema imperial a instituição mais longeva de todos os tempos – a Igreja Católica. Apesar de não excluir os pagãos de seu séquito de conselheiros e oficiais, Constantino contava com muitos cristãos para as funções mais importantes dentro das hierarquias imperiais. Em seus (numerosíssimos) éditos, fazia questão de afirmar as vantagens de sua crença e, ainda que indiretamente, instituía mudanças que preparavam o advento do cristianismo como religião de todos. Por exemplo, em 312 ele impôs ao Império a criação do descanso dominical: a vida ainda era pagã, a moral pública e privada ainda era a da Roma vetusta, mas com essa simples instituição de um dia dedicado ao descanso – e simbolicamente o domingo, o Dominus, dia do Senhor – Constantino colocou certo ritmo cristão a um cotidiano que ainda não o era (e pensar que, até hoje, o domingo é o dia do descanso oficial para bilhões de seres humanos, chega a ser espantoso). Constantino parece agir com um espírito engenhoso, visionário até, em sua preparação algo silenciosa de condições para a futura hegemonia cristã.


Mas não foi apenas Constantino o responsável pela vitória do cristianismo: a crença em si mesma possui certas “qualidades competitivas” em relação ao paganismo.  A primeira é a sua atualidade histórica: as histórias de Cristo e seus seguidores eram recentes, eventos passados há cem, duzentos anos. Os mitos do paganismo estavam distantes no tempo, nenhum homem era contemporâneo das façanhas que os deuses desempenhavam em suas visitas ao mundo dos homens, que não aconteciam mais há séculos. Já o cristianismo tinha seus mártires, os milagres de homens santos, o testemunho dos perseguidos que viram maravilhas. Há também a relação amorosa e próxima do cristão com o divino: não basta se dizer cristão, mas é vital proclamar o amor que se tem a Deus, que sempre é um amor em retribuição ao que Ele ofereceu a todos os homens: um pagão poderia muito bem ser um fervoroso adepto de Marte sem nunca dizer que o amava, pelo simples fato de que isso era impensável no paganismo.  E muito menos havia no paganismo a universalidade cristã: o paganismo nunca foi igualitário, e mantinha ritos específicos para aristocratas e outros para a plebe; já o cristianismo tinha o conceito de conversão: todos os que aceitam o Deus Vivo serão salvos. Mas a vantagem competitiva que me parece a mais forte (Veyne também a salienta) é a transcendentalidade para além da narrativa mitológica: o cristão é um indivíduo convicto de que a vida eterna, a Salvação, é uma realidade tão forte quanto o seu próprio corpo. Citando Veyne, com o cristianismo “a nossa existência sobre a terra já não apresentava o absurdo de uma breve passagem entre dois nadas”; na época de Constantino, o debate sobre o que existia após a morte era o grande debate, e nada no paganismo se assemelhava à idéia cristã da “salvação”. Os deuses pagãos pareciam completamente distantes: quando muito favoreciam uma colheita, faziam vencer uma guerra, curavam uma doença; o Deus dos cristãos ouvia as preces de todos, confortava os corações, prometia uma vida de eterno deleite ao seu lado após a morte. Para alguém que estivesse em apuros, desiludido de tudo e todos, ir a uma igreja parecia uma alternativa melhor do que sacrificar uma pomba a Júpiter; na igreja, em comunhão com outros cristãos, todos seus irmãos, suportar o mundo de repente se tornava mais fácil.

Outro ponto onde Veyne investe em polêmica: certo discurso coloca o cristianismo como uma religião monoteísta e, portanto, superior ao politeísmo, colocado como algo mais “arcaico”, menos “civilizado”. Nada mais equivocado: vale lembrar que o Deus Uno cristão é, ao mesmo tempo, três (Pai, Filho e Espírito Santo); que a figura dos santos é imensamente forte no catolicismo, e certas devoções os colocam no mesmo patamar dos pequenos deuses do paganismo; que Maria, mãe de Jesus, que nos evangelhos tem um papel não mais que secundário, ocupando algumas poucas páginas, no catolicismo ganha o epíteto de Mãe de Todos os Homens, em uma espécie de re-significação do culto à Grande Mãe de eras ainda mais afastadas. Não é, portanto, por seu pretenso “monoteísmo” que o cristianismo vence, mas pelos demais elencados. Apesar disso, é certo que a religião de um deus único é, em comparação com a miríade de deuses do paganismo, uma “religião mais forte”. Devido a isso, certa crítica de esquerda coloca o monoteísmo como algo menos “democrático” que o politeísmo; Veyne rebate isso muito bem, ao dizer que “não é o monoteísmo que pode tornar ameaçadora uma religião, mas o imperialismo de sua verdade” (grifo meu). E é aí que está a diferença essencial entre o “monoteísmo cristão” e o paganismo: enquanto que, em um debate qualquer, um devoto de Júpiter poderia falar para um devoto de Vênus que “o meu deus é muito mais poderoso que o seu”, um cristão falaria de modo sutilmente diferente que “o meu Deus é o verdadeiro, e os seus são superstições”. Em uma palavra: no paganismo não se colocava em cheque a existência de outros deuses: todos eram válidos, até mesmo os dos inimigos, e no máximo o que se colocava era uma questão de poder e glória; com o cristianismo, há uma desqualificação da crença do outro, colocada em um patamar de irrealidade, de mentira, e que seus adoradores estão enganados.

Esse imperialismo de crença motivou as ações de Constantino e seus sucessores, até que em 8 de novembro de 392, Teodósio proclama o cristianismo como religião oficial do Império e torna todos os cultos pagãos ilegais. A motivação para isso não foi nada religiosa: era uma foram de esmagar um golpe de Estado orquestrado pela ala pagã resistente nas entranhas do poder. Mas passado isso, essa ala não se levantará mais. O cristianismo tinha se tornado a religião do Império e formada estava uma dinastia que o levava no coração e na alma. O “mundo” já era cristão e as massas, principalmente nas regiões mais urbanizadas, estava nas mãos da estrutura hierárquica da Igreja. Demoraria ainda alguns séculos para todos os resquícios do paganismo serem extintos completamente, principalmente no Oriente, que não vivenciou uma ampla cultura eclesiástica e beata como no lado ocidental do Império.


Paul Veyne, sensualizando
Paul Veyne, nascido em 1930 em um meio popular que ele gosta de definir como “inculto”, é um historiador afeiçoado a teses polêmicas e com certeza o homem mais feio do mundo. Especializado em Roma Antiga, formado pelo Collège de France e atuando lá até hoje como professor honorário, suas obras são amplamente traduzidas no mundo todo.

Compre Quando o nosso mundo se tornou cristão

p.s.: a foto que ilustra o post é o grafite mais genial que já pude ver na minha vida, e é obra do Urso Morto

6.11.2012

Interpretação de sonhos


Dormir no sofá = ter sonhos estranhos. No último que experimentei, eu estava em um hotel antigo, com suas portas pesadas e piso de madeira lustroso, espelhando o andar dos seus poucos hóspedes. Em um determinado momento, tenho que fugir de lá. Ignoro o motivo, apenas tenho a certeza que devo sair daquele hotel o mais rápido possível. Na fuga encontro uma caixa e, em seu interior, um livro: tem encadernação artesanal e muitas páginas marcadas pelo tempo. De repente, me vejo rodeado de muitíssimos outros livros, e tenho que carregar a todos; como são muitos, desisto da tarefa que atrapalharia minha fuga (pois precisava dali fugir, mesmo não ficando claro o motivo) e pego apenas o livro velho que encontrei dentro da caixa. Caminho apressado pelo largos corredores do hotel antigo, que vão ficando mais e mais labirínticos. E sem me recordar de detalhes percebo que carrego, além do livro, um pesado porrete de ferro, e que ao meu lado também corre agora uma pequena menina japonesa aleijada. Chego a uma sala apertada e vazia, aperto o botão de uma máquina estranha e uma quantidade absurda de balas de hortelã são despejadas no chão.Entro em um elevador carregando o livro, o porrete e algumas balas. Aperto o botão para subir para um andar superior, não me recordo qual. No canto do elevador, me observando, a Daniela Cicarelli.

Pergunta: se eu estava fugindo, por que então subi mais andares?