6.08.2007

As coisas que os amantes dizem


E no sonoro toque do celular de M. existia, desde a viagem, algo que arremessava aquele homem na tensão de uma alegria quase indecente. Sim, pois agora bastava o celular tocar para que os olhos de M. se abrissem mais que tudo, retinas feitas de expectativa, a mirar o minúsculo aparelho - e se ali encontrasse o número que sempre esperava, M. chegava perto daquela tola felicidade que todos sentimos na infância e que os anos acabam por tornar apenas uma lembrança.

Tudo isso soa ridículo. Mas assim são todas as histórias dos casais separados, elas só são belas para quem as vive, os olhos que de fora olham apenas podem julgar estes excessos de sentimentalismo como tolice de folhetim, peço licença para lembrar desta bonita palavra, tolice de folhetim, hoje não existem mais folhetins, temos ao nosso lado as novelas das oito, e das sete, e das seis, e outras que passam bem tarde, e tanta repetição de histórias perfumadas de enamorados, e tantas contas para pagar, e tantas Paulistas e Farias Limas paradas, e tantos metrôs infectados de gente que só lembramos de afetos quando topamos com anúncios de dia dos namorados, eis aí um efeito curioso da propaganda, até mesmo os mais truculentos mandam flores para suas companheiras nos 12 de junho, e talvez ensaiem alguma espécie de carinho naquela face agradecida, um leve e sem jeito roçar de dedos na bochecha, gesto que M. fez na face dela antes da despedida fatal, ela talvez não se lembre mas para M. aquele foi o último toque, o último sentir perto aquela presença já tão distante, e preservava aquela migalha de tempo com o cuidado e respeito que só merecem as divindades.

Será uma separação definitiva - assim M. dizia de si para si, como uma afirmação, será para sempre, e às vezes a afirmação era repetida como pergunta, será uma separação definitiva, incrível como a voz pode produzir a certeza e a dúvida usando as mesmas palavras. Para M. oscilar entre as duas era mais que um inferno, afinal S. fora para muito longe, não sei quando, e nem se volto, ela disse. Se M. pudesse a trancaria em seu quarto para nunca mais saírem de lá, já tinha falado disso certa vez, ela tomara como uma brincadeira, mas agora M. sentiu uma fisgadinha de arrependimento, deveria tê-la apenas raptado, maníaco, louco, todos diriam, mas livre da incerteza. Mas nem ele mesmo levava a sério este plano, o que mais admirava em S. logo após as curvas e o sabor semidemoníacos de seu corpo era a liberdade de espírito, o desejo de alçar vôos longe da terra natal e no distante além fazer uma nova vida. Incentivara e apoiara cada centímetro daquela viagem, foram até juntos comprar as malas, duas malas grandes e cheias de insolência, levarei S. para longe de você, pareciam dizer. Juntos eles colocaram nas abusadas malas blusas, camisetas e calças, dobradas uma por uma, entre conversas que nunca terminavam, não posso esquecer minha maquiagem, S. sempre tão preocupada com miudezas. Ele quis dizer coisas bonitas, ir além daquelas bobagens todas que os namorados se falam quando estão sós e nus estendidos e suados na cama, mas apenas repetiu as bobagens mais repetidas e bobas, e até sentiu vergonha de não saber versos, vergonha deveria ter sentido de dizer em sussurros o que todos os casais sempre dizem.

Egoísmo sem fim seria se colocasse moleza nos gestos, ou se distante ouvisse os medos de S. perante a viagem, M. queria era que tudo desse certo e no fim foi isso que aconteceu. Tanto que quando aquele coração de mulher tremia na incerteza, M. também quebrava completamente, mas arremessava a sua voz como pura confiança, a custo da morte do pessimista que vivia lá em seu íntimo. Sim, era uma mentira, algum mais apressado diria, mas ele nunca inventara facilidades e paisagens cor-de-rosa, só queria preparar a fúria que S. para ele sempre teve, e que jazia adormecida, apenas a esperar os desafios que a vida ingratamente distribui para despertar. Assim no aeroporto a abraçara mais forte do que jamais tinha abraçado e entre despedidas disse "Força!", era uma palavra horrível de se dizer - dissesse eu te amo, ou te adoro, morrerei de saudades, mas não força, alegaria um poeta da pieguice, mas para M. nenhuma palavra outra valeria a pena ser dita, queria ver S. voar ainda mais alto, mesmo que para longe de sua vista, mesmo que nunca mais possa cingi-la pela cintura e levantá-la e assim ir caminhando para o quarto, para onde você tá me levando, ela sempre perguntava rindo com sabor de malícia. Dizer força assim, em uma despedida que não se quer, onde dois que eram um são feitos dois novamente e jogados para longe um do outro, era para S. algo mesmo incompreensível, mas nas primeiras dificuldades no novo cotidiano ela soube, repentinamente, tudo o que M. quis significar quando pronunciou aquela palavra esquisita, e achou que seria bom tê-lo por perto novamente, senti-lo quente e com uma intensidade quase violenta, S. chegou a suspirar ao pensar nisso, e desejou aquelas longas conversas, aquele adormecer juntos sem a pressa de um vôo, apenas perder-se entre cobertores que cheiram sono, e quis então ela e M. livres, absolutamente livres, distantes da crueldade das grandes partidas, de toques de celular que amedrontam os corações, de qualquer coisa que faça em pedaços aqueles dias que não saem da sua memória e que jamais deveriam acabar.