8.26.2007

Walt Whitman

"And I say to any man or woman, Let your soul stand cool and compose before a million universes."
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8.21.2007

Desencontros


E é difícil para M. até hoje aceitar que N. já não era mais sua. É que ela era o oásis, a salvação, o Éden perdido de M., e isso era tão puro e bonito que a feiúra de um mundo inteiro não ofuscava os brilhos do sol que eram aqueles-dois-em-um-só. Sim, pois a metade da alma de cada uma estava no outro, "dimidium animae meae", assim eles se chamavam, metade da minha alma, e eram sinceras palavras quando ditas, ou escritas. Pois sempre existiam cartas para serem entregues e lidas, e sempre muita coisa para trocar, de beijos até as carícias mais obscenas, e nunca nem mesmo isso era mundano.

Mas eis que os ventos batem, os amantes se separam, o tempo passa.

Um dia eis que em uma rua qualquer se encontram - e os segundos que duram aquela eternidade do reconhecimento são apenas um momento - e fogem um do outro. Correm como loucos, e sentem medo, mas também sentem desejo, e aumenta a vontade de ali mesmo se entregarem ao Grande Excesso, e ficam correndo com esta contradição por dentro, parece que vão tomar coragem e enfim fazer o que deveriam ter feito.

Mas só o que conseguem é correr mais depressa e ir cada vez mais longe. Para sempre.

8.14.2007

Dívidas


Dormir o sono dos justos é uma expressão bíblica que remete ao repouso tranqüilo dos homens de bem. M. lia a Bíblia, mas não acreditava em Deus, e nos últimos tempos o seu sono era como um castigo pela impiedade do ateísmo.

E no leito M. revirava de um lado para o outro, e lá ele tinha a sua estação no inferno, mas sem espaço para qualquer tipo de poesia: cada sobressalto, cada virada para um novo lado da cama estreita era acompanhada da palavra “dívida”, que surgia em sua frente em letras garrafais, espécie de outdoor mental que se esfregava em seu pensamento tão logo fechava os olhos.

E as dívidas eram muitas, extensíssimas, e tão imensas pareciam, e tão insolúveis quando postas ao lado de sua pobreza, que muitas vezes na mente de M. os melhores caminhos seriam o crime e o suicídio. Impossível dormir sabendo que já não conseguia pagar os empréstimos que fez para pagar dívidas, dívidas que ele nem sabia ao certo como começaram: parece até que acordou um certo dia e elas já estavam lá, gordas e abundantes a zombar de sua cara. Estranho mesmo, pensava, e devemos dar um certo crédito para este homem, afinal nunca se dera grandes luxos consumistas, pode-se dizer até que anda meio mal vestido, sempre as mesmas camisas amassadas e o sapato por engraxar, mas enfim as cartas de cobrança não mentem, estavam ali empilhadas sobre a estante da sala a espera de uma solução, até lá veremos M. virando de um lado para outro na cama.

Já era tarde, e M. olhava o teto do quarto semi-iluminado. Ocupava-se em ouvir uma briga dos vizinhos do segundo andar, povo mais sem educação, deveriam deixar os outros dormirem, M. ainda guardava certos pudores, difícil encontrar isso em um homem que não janta decentemente há dois meses e que engana o estômago com chicletes, estou é me fudendo com uma úlcera, pensava rancoroso. E os gritos dos vizinhos se misturavam ao som dos carros, a rua Augusta nunca dorme, de dia são as lojas e escritórios e butiques, de noite são cinemas e prostitutas e cafetões, e sempre cheia de carros, M. nunca teve um carro, nem sabia o nome de alguns, mas naquele momento todos os carros do mundo lhe pareciam coisas estúpidas e barulhentas, que o leitor veja nisso uma certa porção de inveja.

Como pagarei tudo isso, falava de si para si, mas é claro que era apenas uma pergunta sem resposta, assim como tantas outras, será que Deus existe, como começou o Universo, existe vida em Marte, M. virava novamente na cama e o seu drama pessoal oferecia ao mundo mais uma pergunta insolúvel. Já tinha vendido o computador, a televisão, o aparelho de DVD e alguns CDs, uma migalha após outra, mas não queria vender o seu som, afinal fora presente de uma namorada e sem música se sentiria ainda mais só, já que nem parentes próximos ele tinha e os distantes nem sabiam aonde ele estava. Sem música a vida seria um erro, essa frase não era dele mas M. a fizera sua, um erro, algo grotesco, pensava, e assim repetia toda vez que mirava o presente da ex-namorada e pensava em vendê-lo, veja até onde vai o desespero dos homens. E quando M. percebia que a noite já estava perdida, que nenhuma tentativa de adormecer seria mais válida e que o melhor seria acalmar os pensamentos, ele escolhia um CD qualquer, colocava no aparelho e ouvia baixinho, lendo as letras, às vezes cantarolando, às vezes com olhos vagos e cheios de tédio. Assim, algumas vezes, o sono até chegava a acontecer, e um pouco de repouso noturno lhe era concedido. Era como se as notas e acordes afugentassem as cifras, os juros, as cartas de cobrança, o nome sujo no SPC, a fome mascarada com chicletes, a vida que cheirava miséria. E M. fechava os olhos, imaginava as contas pagas, os credores felizes, a sua dignidade de homem renascendo. Um erro, uma vida sem música é um erro, pensava, e assim voltava para a cama, já satisfeito, já sem brigas de vizinho, já sem carros na rua para incomodar, apenas M. e sua cama mal cheirosa onde o aguardava um sono que, mesmo não sendo dos justos, lhe daria repouso antes de seu tormento retornar.

Em uma noite, sonhando com Lúcifer, Ele me disse:

"E que de hoje em diante nenhum momento seu seja feito de alegrias vãs e sentidos vazios; ocupará o seu tempo com criações, as mais belas e terríveis, e nenhum segundo de noites que se arrastam será desperdiçado com ternuras que não te querem e nem com sonhos que jamais foram seus; pois além de qualquer coisa pela qual o seu coração se incline, nenhuma será maior que o firme propósito que está aí, oculto em seu espírito, acessível apenas ao teu íntimo e a mais ninguém; pois queres a fuga de um leito bem aquecido? Ou as carícias de uma mulher que te olha como se fosse Deus? Ora, meu infante, meu doce bobinho, esqueça de uma vez por todas o que te foi ensinado e aprenda: a vida que tu queres é a vida que você mais odeia! Pois o teu Destino, aquele que pulsa desde sempre no Livro da Vida, aquele Destino da qual não se escapa, este Destino diz que a você nada mais há a não ser os seus próprios tormentos. Pois é sua sina estar para sempre apartado de tudo que é trivial, de tudo que conforta, de tudo que poderia fazer as noites mais próximas do Fabuloso. Sim, sim, sua vida é uma ânsia eterna que não se completa.

Quê? Pois isso é uma lágrima? Apague de seu rosto esta fraqueza - pois será a última. Suas noites e dias serão entregues ao confinamento em si. Estás para sempre sozinho. Quando muito, alguns caminharão ao seu lado por tempos. Mas eles irão embora, como todos sempre vão, até mesmo os amigos eternos, lembre-se apenas de quantas amizades você disse que eram para sempre e hoje são apenas fotos colocadas em caixas velhas. Nada mais sensato que aceitar a total dissolução de tudo que vive, e regozijar-se em caminhar breves passadas ao lado de quem lhe é caro - pois apenas passos vocês darão juntos e no final todos estão imutavelmente sós. E todo cansaço físico das noites a fio trancados em seu quarto - o seu único e verdadeiro mundo - jamais será recompensado, se por recompensa você desejar qualquer coisa que não seja conhecimento. Sim, pois conhecimento é o que lhe ofereço, conhecimento de si mesmo e de tudo que a ti se relaciona. Queres paz? Paixão? Felicidade? Pois tudo isso não são conceitos, invenções de homens que vivem febres como as tuas, desejos de aniquilamento como os teus? Nada há para você admirar que não seja a disciplina dos antigos sábios, a sede de Absoluto dos fanáticos, o impulso corajoso dos grandes heróis. Nada fora isso merece teu respeito. Crie, crie sem parar, até que sem forças adormeça, até que o sol volte a aparecer, até que todas as lembranças do passado cessem, até que os anjos venham em coro cantar para embalar seus sonhos, que serão adocicados e cheios de vida - a vida que não tens, a vida que nunca teves, a vida que jamais terás."