5.28.2010

Malditos porteños! - a nova série da UGRA


Não conheço o tanto que eu gostaria, pelo menos por enquanto, mas me aventurei com a UGRA PRESS em uma insólita armadilha: escrever sobre escritores boanarenses que foram relegados a um segundo plano pela crítica ou ofereçam ao leitor mais do que amenidades.

A idéia surgiu de forma espontânea. Desde há quase dois anos tenho lido mais e mais da literatura em língua espanhola, especialmente aquela feita por escritores de Buenos Aires, ou que tenham tido algum tipo de ligação com o clima cultural peculiar da região do Rio da Prata. Literatura tão instigante quanto diversa, essas leituras tem me proporcionado não apenas um rico prazer estético quanto reflexões profundas sobre os homens e, especialmente, sobre que droga de papel a América Latina representa para o mundo de hoje, e o que é escrever/pensar sobre literatura nessa região do planeta, amiúde tratada como quintal para experimentações políticas autoritárias, celeiro do mundo ou paraíso do turismo sexual.

Demos um nome para essa série de escritos: Malditos porteños! é esse nome, e que você morra de câncer se achou que estamos nos filiando ao estúpido nhém-nhém-nhém brasileiro que insiste em tirar sarro de argentinos, em uma espécie de bairrismo sem razão de ser. Esse "maldito" é aplicado no sentido de que terão espaço nessa coluna aqueles nomes incômodos, que não figuram nos best-sellers, que não compõe o panteão dos artistas que juntos definem os limites do bom-gosto. Não que eles não devam ser lidos e, inclusive, debatidos. Mas preferimos nos ater àqueles que espalharam através de seus escritos algo mais do que suspiros emocionados.

O primeiro maldito porteño é um dos meus prediletos, o Roberto Arlt. Deixo-vos, agora, com o link para o post que escrevi para a UGRA, na tentativa de captar sua atenção e distraí-lo do fato que quase não escrevo mais por aqui.

http://ugrapress.wordpress.com/2010/05/28/malditos-portenos/

5.17.2010

Resultado de um dia inteiro dentro de casa, tomando remédios

Um domingo é um dia de tédio, e ele se torna pior quando, após um sábado apetitoso, você acorda com a garganta arranhando e dores espalhadas pelo corpo como se um caminhão de toneladas tivesse te atropelado.

Foi isso o que aconteceu comigo esse final de semana.

Reconheço: dizer tais coisas é vazio e minha vida não é interessante. Aliás, nenhuma vida é, quando vista de muito perto. A admiração se conquista com a distância. A proximidade é boa quando desejamos conquistar sexo ou prêmios mais ordinários, mas em geral ela destrói mais do que edifica. Comigo tem sido assim, mas reconheço que a culpa é mais minha do que da proximidade. Então, não direi mais nada a não ser que tomei duas doses de Tylenol de uma vez, ou seja, quatro comprimidos ao invés de dois. Experimente você também, se você gosta de ver tudo dobrado, como se o seu astigmatismo quadruplicasse em questão de minutos.

Como já falei em outros posts, estou com um projeto chamado UGRA PRESS. Nesse último sábado trabalhamos em nosso segundo vídeo. O primeiro ilustrou o post Queime sua própria igreja. Esse novo vídeo já terá um conceito diferente, contará com personagens, cenários, etc. Gravaremos na semana que vem, após o almoço dominical. Espero que eu sobreviva até lá, não porque eu ache que vou morrer de uma gripe, mas porque gosto do sabor trágico de imaginar que, sempre, tudo está prestes a ruir e se transformar em pó.

Possivelmente, esse vídeo ficará pronto em duas semanas. Até lá, eu tenho planos de colocar aqui o Canto II da Narrativa Mitológica de Curitiba, continuar minha leitura de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e começar Cien Años de Soledad (sim, é uma vergonha não tê-lo lido ainda). Aliás, há muitos livros que nunca li e que juntos compõe um buraco em minha formação, como uma nuvem de vergonha a me acompanhar para onde quer que eu vá. E apesar de em partes concordar com Nick Hornby nesse artigo, não me sinto confortável em ver a literatura apenas como entretenimento, como algo que é feito para passar o tempo. Talvez seja uma visão demasiado carrancuda do ato de ler; mas quando vejo aquele discurso de que qualquer atividade só é válida quando nos garante "prazer", em geral esse dito prazer é apresentado como algo próximo da fanfarronice. Não preciso dizer o quanto isso me desagrada e o quanto isso se distancia da minha forma de enxergar as coisas do mundo -que se não precisam ser sempre sérias, igualmente não precisam nos fazer rir para serem importantes. Há muito mais que essa febre de hedonismo que guia a todos os corações atualmente.

5.12.2010

Kali


Essa noite sonhei com Kali e ela agitava seus muitos braços enquanto dizia coisas que eu não entendia. Talvez falasse em devanagari, talvez na estranha língua dos deuses, que não nos permitem conhecer aquilo que são. Só sei que acordei cuspindo sangue e penso em Kali o tempo todo.

5.09.2010

Mediocridade

A mediocridade me enoja e principalmente aquela que vem de mim.

Fiz um juramento de não mais ser medíocre, mas sei que desde o início ele seria um juramento vazio.

Imerso em minha diminuta mentalidade, repleta de preconceitos (de maus preconceitos, porque há aqueles que são bons) passo os dias nada fazendo a não ser multiplicando meus males, meus sofrimentos, minha nulidade feita de pó, lembranças, arrependimentos e vícios vazios.

Tudo o que aprendi estou lentamente desaprendendo. Como um ciclo, chego na metade de minha vida com vácuos na mente e na alma.

Tudo o que eu deveria fazer está muito bem desenhado na minha frente, como um desenho detalhado e repleto de minúcias. Contudo, esqueço dele, fecho os olhos, arremesso a Grande Obra para um canto qualquer e depois lamento.

Ouço o choro da criança que não tive, anos atrás. Um fantasma abortado, uma existência que eu não suportaria porque a minha, já bastante pesada, ocupa-me 24 horas por dia com inúmeras dores.

Será o choro de um fantasma? Eu acredito neles. Os mortos são mais reais do que muita gente de carne e osso. Reais por sua presença sentimental. E são os sentimentos o que importa. Tudo o mais é invenção, ou problema.

Esse choro, de onde vem, afinal? A vontade é esmagá-lo, a vontade é calar a boca da criança que chora com um murro que esfacela dentes, ossos e transforma aquela linda cabecinha de infante em um amontoado de sangue.

Engula esse choro, criança, engula-o.

5.06.2010

Cidade Orgia


No noticiário daquela manhã S. viu que uma terrível onda de calor assolava as cidades do Nordeste. Na TV as mesmas imagens dos bois magros, dos poços vazios, das famílias de Fabianos famintos e humilhados. Parecendo se alimentar do Sol, a imensa caatinga crescia como um invencível monstro de aridez que ria da desgraça dos homens. E entrando no elevador para ir embora o calor nauseante fez com que se lembrasse das imagens vistas pela manhã e que aqui, mais ao sul, os tempos vividos eram também tempos de seca: chegava ao final mais uma semana de trabalho, a noite de sexta-feira era deslumbrante e fazia um mês, doze dias e só-o-diabo-sabe-quantas-horas que S. não fodia.

Isso às vezes ocorre com um cara. Uma espécie de piada de mau gosto (de péssimo gosto, diria S.) que a Natureza reserva aos seus filhos, mesmo que eles estejam em forma, bem vestidos, com barba aparada e escorrendo testosterona. Vai a bares, shows, baladas, festas e volta para casa tão sozinho quanto antes; reativa contatos com amigos; liga para um caso antigo e descobre que a desgraçada casou; e com exceção das velhas querendo lugar no metrô, para todas as demais mulheres do planeta o sujeito tem certeza que se tornou invisível ou desnecessário, como se ali, no espaço ocupado pelo corpo de um homem em apuros, só existisse algo cujo destino é ser ignorado (o necessitado é, antes de tudo, um exagerado).

S. saiu do elevador e em dois passos já estava nas ruas. A sexta-feira tinha sido muito quente. Já fazia quase uma hora que o sol sumira atrás dos imensos prédios, mas sua incandescente presença permanecia nos decotes generosos, nas saias que balançavam ao ritmo de coxas firmes, nas sandálias de salto alto que eram como altares para pezinhos suculentos. E se para um homem que passou a noite anterior transando até às quatro da madrugada o efeito desta moda provocativa é considerável, que o leitor tente sentir (e a leitora faça um esforço para imaginar) como um infeliz na condição de S. (um mês, doze dias, só-o-diabo-sabe-quantas-horas) sofria ao ver aquele cortejo de decotes, saias e sandálias de salto alto.

Como aquela noite estava quente e a avenida Paulista tomada de carros, S. desistiu do ônibus e confiou a volta para casa aos seus sapatos. Poderia assim desfrutar do agradável calor por um caminho que não era muito longo. E com tantas pessoas pelas ruas e, principalmente, com tantas mulheres (decotes, saias, sandálias) que também voltavam para casa, a andança seria um ótimo passeio e –quem sabe– poderia reservar algumas surpresas, oportunidades e aventuras (o necessitado é, antes de tudo, um esperançoso).

A avenida Paulista estende-se em uma linha reta por sete estações de metrô, dois shopping centers, dois museus, cinco livrarias e incontáveis prédios de ambos os lados. Estes se elevam do chão aos céus às dezenas como longuíssimos falos, rijos e sedentos caralhos apontados para o alto, para a enorme bunda de Deus, sentado lá nas nuvens a observar o mundo horrível que criou. A Mãe Terra salpicada de falos que apontam para o céu, eis uma ironia terrível, uma mãe com falos, hermafroditismo curioso que a obsessiva mente de S. poderia muito bem criar se já não estivesse ocupada com outra analogia inesperada, que brotou quanto viu entrando, no túnel que fica no final da Paulista, um enorme caminhão pipa; o gigantesco veículo lentamente cruzava a entrada do túnel, quase encostando em seu teto com sua volumosa e roliça carcaça metálica. Isso ainda me bota doente, pensou, mas a sugestão da imagem nem por isso deixou de persegui-lo; reviveu em flashes lembranças de fêminas ancas, levantadas em posição canina, com ondulações apetitosas, suculentas, e lembrou-se como suas mãos se encaixam naquelas curvas, o contato das peles suadas, os gemidos que o túnel não dá, os jorros espasmódicos que ao caminhão não são permitidos, e S. calculou se talvez não estivesse a um passo de se tornar um maníaco (o necessitado é, antes de tudo, um desconfiado).

S. continuou caminhando de volta para casa e (nem é preciso dizer), sempre em alerta a qualquer movimento feito por qualquer mulher em um raio de vinte metros. (um mês, doze dias, pergunte-ao-filho-da-puta-do-diabo). Seus olhos vivazes flanavam entre camisetas delineando seios perfeitos, frentes únicas exibindo costas macias e calcinhas levemente à mostra que S. tinha certeza que eram ridiculamente pequenas, expediente que segundo ele era utilizado de forma deliberada e com o único intuito de provocar. E devido ao seu estado excepcional, S. cometia com uma freqüência maior um equívoco que todo homem já cometeu: a captação de flertes até mesmo onde não tem. Pois se é possível reconhecer alguma habilidade em um homem necessitado, essa está em uma imaginação sem limites que entende um simples olhar como convite a um ménage.

Foi algo parecido o que aconteceu com S. na esquina da avenida Paulista com a rua Augusta: lá estava ele misturado entre muitos outros pedestres parados no farol vermelho, esperando uma chance de atravessar, um rebanho de animais cansados querendo voltar para casa em uma sexta-feira quente; após um tempo de espera o farol ficou verde, o rebanho estoura, os animais se cruzam; só isso e nada mais, apenas pedestres que se cruzam em um farol, todavia S. acreditou que uma ruiva peituda vindo na direção contrária lançou sobre ele um olhar diferente. Obviamente que se trata de algo absurdo e que a suspeita de S. é claramente fruto de seu estado, mas mesmo assim ele quis voltar e puxar conversa com a ruiva de alguma forma (o leitor sabe que conversas desse tipo necessariamente não precisam de assunto: fala-se apenas, intercalam-se futilidades com restos de estupidez, permite-se que o nada construa a sintaxe do discurso; a “eficácia” de uma conversa dessas, cujo objetivo é obter sexo, é tão maior quanto menor for o conteúdo da conversa). Após algumas palavras arriscaria convidá-la para ir até a sua casa; inacreditavelmente ela aceitaria, excitada com a irresponsável aventura; não demoraria muito e estariam nus na cama de S., esfregando-se como bichos, lambendo-se como bichos; descontrolados, entregues a uma animalidade de fluídos corporais, para aqueles dois pouco importaria que não se conheciam - tanto melhor assim, o anonimato permitiria todas as obscenidades. Foderiam com uma intensidade primitiva, ofegantes e malcheirosos após um dia de trabalho, e para S. seria algo realmente fantástico aquela mulher gemendo embaixo dele e pedindo mais, pedindo mais para um estranho qualquer que teve a ousadia de segui-la e propor sexo com palavras completamente vulgares, e que após uma conversa vazia se apresentou dizendo seu nome, nome que ela já tinha esquecido e isso não fazia mais a mínima importância agora que S. se espalhava dentro dela de uma forma quente, densa e viscosa.


Mas nada disso aconteceu a não ser na imaginativa mente de S. Ele continuou seguindo em frente, e a ruiva também. Ficará no leitor a dúvida se o olhar dela guardava algo de mundano ou se os pensamentos de S. afinal são produtos de uma mente acostumada a ver filmes da Buttman. Não importa discutirmos isso: dados menos de dez passos, S. não mais se lembrava da ruiva. É que a capacidade de encontrar flertes onde não tem possui um sistema de defesa contra as decepções, que faz com que o pretensioso conquistador se esqueça de todas as suas fantasiosas quase-conquistas tão logo elas se transformem no que sempre foram - isto é, nada. Salvam-se assim de tristezas e desilusões por todas as mulheres perdidas ao longo da vida, mulheres que são apenas frações de pensamentos subconscientes e das quais não guardam a menor porção de lembrança (o necessitado é, antes de tudo, um inescrupuloso).


Chegou ao Parque Trianon, lugar onde sempre encontramos casais sentados nos bancos trocando carinhos, beijando-se ao lado de árvores centenárias, testemunhas mudas de afagos libidinosos, de confissões dolorosas, de promessas de amor eterno que o tempo tratou de provar que eram falsas. Talvez pelas condições cruelmente impostas a S. (um mês, doze dias, blá blá blá) a ele parecia que os casais ali se beijando estavam especialmente atrevidos naquela noite; vítimas dos calores tropicais, seus beijos pareciam arder de tanta volúpia; e eram tantos casais ali se beijando que na imaginação de S. o Parque Trianon estava prestes a ser palco de uma orgia onde a qualquer momento centenas de Cupidos gorduchos lançariam suas flechas naqueles amantes indecentes. Inflamadas até os ossos com os mitológicos dardos as mulheres empurrariam seus homens para a grama; já completamente loucas de desejo arrancariam as próprias roupas, despindo-se com a sensualidade das feras; fariam o mesmo com seus machos, distribuindo calorosos beijos ao longo dos másculos corpos com generosidade; e no gramado do Parque Trianon veríamos mulheres nuas movimentando-se ritmicamente sobre corpos de homens deitados; mãos hábeis e deslizantes percorreriam depravadamente cada contorno de seio, cada pedaço daquelas bundas macias que, movimentando-se com delícia, pareciam implorar por novos tapas; e os gemidos seriam muitos, de todos os tipos, seriam ofegantes e maravilhosos, compondo uma libidinosa orquestra de sons sexuais, orquestra que faria os Cupidos gargalharem de satisfação e lançarem mais e mais flechas em todas as direções até que aquelas bacantes modernas, suadas e cansadas, saciassem a sede de suas bocas secas com os sucos revigorantes de seus machos agradecidos.

S. continuou seu caminho deixando lá nos bancos do Parque Trianon os enamorados, sem saber se haveria orgia ou não. Andou um pouco mais e chegou ao edifício Kanavikós. Na suntuosa fachada desse prédio, que abriga o principal jornal da cidade, há uma escadaria que muitos usufruem para descansar. Era exatamente esse o ponto da avenida que S. mais gostava. Sempre era possível observar dali a movimentação dos muitos bares, livrarias e cafés das redondezas, como também acompanhar discretamente as mulheres que por ali passavam. Sentou lá pela altura do décimo degrau da larga escadaria, acendeu um cigarro e começou o exercício mental que sempre fazia quando estava por ali: escolher aleatoriamente uma garota que passava e descobrir de que forma ela mais gostava de foder. Morena alta de saia curta e blusa branca, de quatro; loira de cabelo curto e cara de sono, de lado; ninfetinha de calça apertada e regata do Ramones, topa tudo; cabeluda com shorts azul e salto alto, por cima; gordelícia de cabelo curto e bunda grande, dá o cú na primeira – era mais ou menos assim que a lista funcionava. Terminou o cigarro, fez uma rápida retrospectiva da lista recém elaborada e continuou o caminho pensando que, entre todas as garotas da lista, a gordelícia merecia o topo com louvor, não tanto pelo fato de dar o cú de primeira, vantagem competitiva que quase todas as gordelícias oferecem segundo as sofisticadas teorias sexuais de S., mas pelas formas a la Botticelli com suculentas e mordiscáveis curvas, aparato perfeito para que as mãos se encaixassem, para que a boca se demorasse em chupadas doloridas e para outras finalidades que não elencaremos aqui, posto que a lista de S. já é demasiado explícita (o necessitado é, antes de tudo, um inconveniente).

Cruzou a esquina com a avenida Desperado, ponto onde começava a parte mais bonita da avenida Paulista: ali estavam as cervejarias Taavesh e Rio Grande, as livrarias Martins Fontes e La Hermosa, as lojas onde S. preferia comprar suas roupas, o teatro Cia do Absurdo, a Casa das Rosas, a Praça Lins, os antiquários, etc. Era nessa região que em geral S. fazia o desjejum aos domingos, gozando da calma tranqüilidade dos cafés e das muitas árvores que ofereciam àquele ponto da avenida uma serenidade que dificilmente se encontrava na Grande Cidade.

Mas naquele momento não havia nada da calma tranqüilidade das manhãs dominicais: ainda era sexta-feira, uma quente e abafadamente lasciva noite de sexta-feira (um mês, doze dias, deixemos-o-diabo-em-paz). Taavesh e Rio Grande com todas as mesas lotadas de fiéis trabalhadores buscando o relaxamento merecido após cinco dias de escravidão assalariada. Bebendo, gesticulando e rindo em uma confusa melodia de happy hour, homens e mulheres formavam grupos de configurações bem variadas e nem é preciso dizer que S. prestava muito mais atenção nas mesas onde só havia mulheres: estavam rindo e certamente falando indecências, certamente contando para as amigas como que foi com fulano, e todas se deliciando naquela espécie de irmandade que o ato de beber oferece quando feito em conjunto. Quais não serão os segredos das conversas entre as fêmeas, das conversas depravadas das fêmeas que em nada devem aos homens em matéria de obscenidades e safadezas. Mas da calçada S. só consegue ver as bocas se mexendo, uma pena não ouvir o que aquelas mulheres dizem (loira de decote, por cima; amiga de cabelo tingido, de quatro; morena magrinha, de quatro também). No fundo é melhor que S. e todos nós sejamos privados destes segredos, que nem são tão segredos assim, mas como gostamos de jogos e ilusões é divertido assim imaginá-los, indizíveis e para sempre ocultos.


S. estava chegando em casa. Passou pela larga ponte que cruzava pelo alto a avenida XXIII e, lá de cima, viu ao longe o Obelisco. A Mãe Terra salpicada de falos que apontam para o céu. Andou um pouco mais e chegou ao entroncamento da Paulista com a rua Vittoria, onde S. morava. Parado no farol, esperando o sinal verde, S. viu do outro lado da rua, perto da entrada do metrô Paraíso, uma obra da prefeitura fazendo um enorme buraco na calçada. Um trabalhador segurava uma britadeira que castigava o solo, em um sobe e desce rápido que não deixou de produzir em S. uma outra analogia, uma outra seqüência de flashes pornográficos que mesclavam fodas de outrora, Buttman e a gordelícia de Botticelli, a ereção veio como um foguete, impossível evitá-la e afinal evitá-la para quê, olhasse para baixo e encontrasse seu pau duro mal encoberto pela calça quem quisesse. O farol ficou verde, atravessou a rua e desta vez não houve trocas de olhares, só um velho vindo no sentido contrário. Olhou de novo o buraco na calçada e cantarolou em pensamentos trechos de uma música (when I dig a hole in the ground, I got erection), e realmente sentiu que estava entrando em apuros, que a aridez do Nordeste estava matando gente às pencas e que a sua seca poderia matá-lo também, no limite transformá-lo em um maníaco (um mês, doze dias, muitas-horas-para-o-diabo-contar), que talvez melhor do que voltar para casa seria voltar para as mesas do Taavesh ou do Rio Grande, sentar em uma mesa, pedir uma Eisenbahn Pale Ale e sorvê-la como se deve, buscar os olhares das fêmeas, torcer para o Cupido ser um gordinho legal e alvejar algumas com suas flechas, e elas então corresponderiam aos olhares de S., motivadas pelas flechas míticas; o sinal do acasalamento estaria dado, o álcool levaria as pernas de S. até a mesa daquela que tivesse o decote mais indecente, mais Eisenbahn Pale Ale, a sexta-feira fervilha o sangue nas mesas do Taavesh e Rio Grande, o pau dele pulsando ao ritmo da horrível música que tocava, entre conversas vazias já estariam próximos o suficiente para S. sentir o perfume dela e fazer os mesmos batidos elogios que sempre funcionam, mais Eisenbahn Pale Ale, mais elogios, mais palavras maliciosas, risadas já altas e tudo seria uma questão de paciência para que os tempos áridos que S. vivia chegassem ao fim.