4.23.2012

Sempre que possível, fique em casa

 

Ontem à tarde eu tinha desistido da vida social quando amigos me chamaram para ir na exposição sobre o Angeli no Itaú Cultural. Acostumado a ter finais de semana confinados em casa, aceitei o convite. 

Apesar da disposição um pouco apertada do farto material, composto de reproduções e muitos originais, a exposição oferece um amplo panorama sobre o trabalho do cartunista, criador de míticos personagens do imaginário contracultural dos 80 e 90, como Bob Cuspe, Rê Bordosa e Os Skrotinhos. A exposição também dedicou uma sala para obras mais putanheiras, onde algumas das memoráveis fotonovelas da Chiclete com Banana podem ser vistas. Há também obras mais recentes, como a República das Bananas, cuja capacidade crítica reside na construção de tipos ideais de indivíduos cotidianamente banais. 

Entretanto, um alerta é necessário: se possível, não vá à exposição. Não se arrisque a ser um otário como meus amigos e eu fomos e ir ao Itaú Cultural no sábado  às 18h00 - a não ser que o seu objetivo seja ter um contato semi-promíscuo com outros seres humanos em um lugar ridiculamente apertado. De minha parte, gosto de contatos promíscuos desde que com pessoas que EU possa escolher. Do contrário, tudo que ocorrer será experimentado com nojo. Ainda mais em exposições e, especialmente, em  uma exposição sobre um cartunista: a quantidade de designers presentes chega a ser espantosa.

[Como eu sabia que a maioria ali era composta por designers? A resposta é simples: por puro preconceito. Cachecol, óculos de armação grossa, roupas descoladas, barba por fazer, camisetas com frases engraçadas, iPhone, cores em profusão e algumas outras características me ajudam a encontrar designers em meio à multidão.]

Seja como for, a lição que fica é: sempre que possível, veja exposições em casa. Faça de tudo para descobrir uma forma de ver online o que está nas paredes de uma galeria. Não vale a pena arriscar o conforto de seu sofá trocando-o pelo risco de ouvir comentários sobre as obras ditos por pessoas que você teria vontade de aplicar aborto retroativo. Ou pelo menos vá em horários onde poucas pessoas estarão presentes - o que é uma tarefa praticamente impossível em São Paulo. Mas morreremos tentando descobrir que horário é esse. Aí eu posto aqui. 

Ou melhor, não.

A música que resume o estado de espírito pós saída da exposição:




4.13.2012

Sobre a humildade


Captar frases soltas no transporte público, na rua ou em qualquer outro lugar onde a aglomeração de pessoas proporcione ao ouvido atento do cientista social autodidata um rico manancial para análise: um procedimento ao qual me dedico há anos, que já inspirou outros escritos nesse blog e que considero uma da melhores formas de captar a essência da realidade em seus aspectos mais interessantes. Interessantes porque escondidos nos sulcos mais profundos do discurso do homem comum, cuja vida é uma vulgaridade do despertar até a hora  do boa noite, e justamente por estarem ocultos sob uma grossa camada de tradições e hábitos têm aspecto de serem normais, naturais, benéficos até, ou mesmo males incontornáveis. Mas sabemos que discursivamente nada é normal, nem natural, nem benéfico ou maléfico em si: construções antes que dados da realidade, esses aspectos possuem significados que são transparentes para o homem comum, mas o envolvem e influenciam completamente. De modo bastante similar age a pressão atmosférica: não a vemos, mas sem parar um segundo sequer ela exerce seus poderes sobre nós.

Uma palavra que hoje ouvi em uma conversa dessas foi o adjetivo "humilde". Não sei exatamente por que exatamente essa palavra se fixou em minha mente, mas o fato é que ela foi responsável por uma série de anotações mentais que serviram de base para o que segue.

Emprega-se em geral para salientar uma qualidade positiva de um indivíduo perante os demais: diz-se que alguém é humilde por apresentar um misto de amabilidade, educação, cortesia, etc. Mas não é só isso: o humilde é também alguém que, em determinadas situações, tende a mostrar-se como ligeiramente inferior. Todavia, isso não ocorre de modo negativo ou fatalista - o humilde considera-se menor mas com um certo orgulho, em uma captação da benevolência alheia feita com sorrisos que chegam a ser rastejantes.

Há na atitude do humilde muito da etimologia da palavra: o adjetivo vem do latim humus, que significa "terra", "chão", "solo". De humus derivou-se então o adjetivo latino humilis que possuía, para o romano do Período Clássico (séculos II a.C a II d.C.), significados como estes:

  • de estatura baixa, rasteiro;
  • que é de condição baixa;
  • que tem sentimentos baixos;
  • abatido, desanimado;
  • covarde, fraco, mesquinho, vil.
 [acepções retiradas do Novíssimo Dicionário Latino-Português de F.R. dos Santos Saraiva, editado pela Livraria Garnier]


Há inúmeros registros na literatura clássica comprovando que, antes do cristianismo se transformar na religião oficial do Império, em 391 d.C com Teodósio I, a noção de humilis tinha uma carga altamente negativa, no sentido de descrever características contrárias ao ethos romano de virilidade, força e vontade afirmativa perante a vida: Cícero fala de humili animo ferre ("resistir com fraqueza"), Plínio o Jovem de humiles curae ("cuidados mesquinhos"). Com a expansão da religião cristã  principalmente nas classes baixas (o cristianismo sempre foi uma crença "plebéia", no sentido de oferecer aos desgraçados de toda sorte, sem distinção de classe, a idéia da "salvação", conceito praticamente inexistente no paganismo, que tinha cultos diferentes para cada porção da sociedade) o termo foi perdendo esse significado inicial para ganhar aspectos mais positivos. O humilde torna-se, então, um novo paradigma de felicidade e grandeza. Fundamental e termômetro dessa mudança é o Sermão da Montanha, no evangelho de São Mateus capítulo 5, onde Cristo começa dizendo isso:

Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.

A mudança de acepção do termo é fácil de entender: o termo humilis era comumente empregado para, justamente, fazer referência a essas classes baixas, onde o cristianismo inicialmente se propagou. A mudança de significado é a vitória, no campo semântico, da moral de escravo nietzscheana sobre a dura ética romana da Antigüidade.

De certo modo, o humilde de hoje carrega, na tessitura mais profunda, essa carga de significados inicial que, mesmo após o cristianismo, ele jamais perdeu: o humilde é aquele "que se prostra perante o altar", que "cai de joelhos" defronte Deus, que ajuda os demais em uma atitude totalmente desinteressada onde descuida até mesmo de si. Tudo isso é ser humilde, mas não é só isso: o humilde é, também, um tipo que olha com desconfiança para qualquer altura com um misto de nojo e reprovação. Incapaz de alçar vôos para além de sua "natureza terrena", impregnado de um humus cultural que enxerga valor apenas no que é contingente e facilmente digerível, o humilde é um tipo que acredita na validade da arte apenas quando ela está à serviço do povo ou de uma causa. Conceituando o artista (seja escritor, músico, pintor, cineasta, etc) como um tipo social que deve estar em "conexão com o social", todos os que não se encaixam na regra lhe são tediosos, desnecessários, dignos de seu ódio. Ao mesmo tempo idealiza povo e o alcance de sua arte: o humilde opta por ter uma visão duplamente cega ao invés de uma cegueira simples. 

O vírus da humildade não está apenas presente nos artistas que buscam o "povo": até mesmo em um tipo de arte mais elitizada e que ocupa os salões de exposição freqüentados por branquelos bem-nascidos ele promove seus estragos, sobre a onipresente criação de "instalações interativas". O discurso que está por trás dessas bobagens é essencialmente o mesmo: o artista se nega o papel de mediador cultural definitivo e devolve para as mãos do público a própria construção da obra. Assim, em algumas o artista apenas coloca um, sei lá, amontoado de giz de cêra no chão e pede para que o público rabisque uma parede branca e então pluft!: nasceu a obra de arte, perfeitamente antenada com os tempos "democráticos" e "colaborativos" que vivemos. Não se trata mais de termos artistas que se dediquem a criar um conceito, e a partir dele passem dias em um esforço para transformá-lo em realidade, seja um quadro que instigue intelectualmente o observador, uma escultura que lhe faça reavaliar um dado da realidade ou que simplesmente proporcione um prazer estético que induza a fusão entre fruição estética e reflexão. Tudo isso que dissemos, de certa maneira, pede que tanto artista como público elevem-se a si mesmos para além da mediocridade diária. Difere sensivelmente de uma arte impregnada do senso do humilde, que tenta a todo custo puxar para o solo.

É assim que, tanto nas artes como em outros campos da vida, o humilde atua: pela força rastejante de mediar os homens e suas ações pelo princípio do humus, pela nivelação por baixo. Força afirmativa, desejos de grandeza, impulso para criar e ir além das limitações, medos e bloqueios: nada disso faz parte do espírito humilde. Ele é amigo do status quo, das tradições burras, do cotidiano miserável que mantém milhões em uma existência que pouco tem a ver com Vida - ou seja, da vida entendida não apenas como impulsos orgânicos mas sim realização, luta e superação de si mesmo. 

4.05.2012

Lista de ódios


Sujeita a inclusões - mas jamais a exclusões - de itens:
  • pessoas que ficam em bares todos os dias da semana;
  • crentes;
  • góticos;
  • pessoas que entregam folhetos na rua;
  • cabelos alisados com métodos pouco eficazes;
  • jovens de vinte e poucos anos fã de Beatles;
  • pessoas que andam na rua cantando;
  • pessoas que andam na rua sorrindo;
  • mulheres carregando bolsas enormes;
  • pessoas lentas;
  • pessoas apressadas;
  • carros;
  • crianças mal educadas que falam alto, que correm e esbarram nos outros sem pedir desculpas;
  • pais que batem em filhos mal educados em público, tratando de modo ainda mais errado o erro que colocaram no mundo;
  • escadas rolantes;
  • pessoas que param do lado esquerdo nas escadas rolantes;
  • vozes estridentes;
  • vozes insuportavelmente baixas;
  • vozes lentas e monótonas;
  • pessoas jovens que vivem reclamando de dores e que sempre estão doentes;
  • pessoas gordas que só comem doces e ficam tristes por serem gordas;
  • novelas;
  • entusiastas do futebol e outros esportes coletivos;
  • livrarias com áreas para crianças, que funcionam mais como um irradiador de barulho e confusão em um ambiente que, a princípio, deveria prezar o silêncio;
  • auto-ajuda;
  • pessoas que discutem com seriedade reality shows, novelas, programas de auditório e qualquer outro lixo televisivo;
  • ruas Oscar Freire, Augusta e Teodoro Sampaio;
  • pessoas desconhecidas que puxam papo;
  • pessoas que conversam encostando;
  • telefones celulares;
  • pessoas que ouvem música sem fone no telefone celular;
  • Greenpeace;
  • velhos que insistem em parecer jovens;
  • óculos de armação grossa;
  • combinação de terno com tênis;
  • combinação calça jeans e chinelo;
  • mulheres que vivem falando que nenhum homem presta;
  • axé, samba, pagode, funk, forró, rap, dance music, rock, hardcore melódico, heavy melódico, punk estadunidense e outras bobagens correlatas;
  • hiper-organização;
  • lugares sujos;
  • usuários de cocaína que falam sem parar;
  • mosquitos;
  • favoráveis a pena de morte que são contra o aborto;
  • férias em Miami e Nova York;
  • jeitinho brasileiro;
  • covardia;