4.14.2014

Caderninho de ódio, ou as origens de "Seis horas no inferno" (e uma reflexão no meio de tanta poeira)



Trabalhei com telemarketing uma boa parcela da minha vida. Não nascendo em uma família rica, e contando apenas com a formação da escola pública, tive que me virar em uma série de trabalhos ruins na transição para a vida adulta: o primeiro foi um estágio em eletroeletrônica, onde fazia manutenção em máquinas de solda em diversas empresas do ABC e região; depois desse trabalho entrei no estoque de uma farmácia; depois de lá trabalhei por um curto espaço de tempo no IBGE; em seguida, uma tentativa frustrante de vender cursos de inglês. Logo depois disso, me vi sentado em uma operação de telemarketing. Cobranças enérgicas por tempo de atendimento. Metas de vendas nunca alcançadas. Horários humilhantes. Sábados maravilhosos da primeira juventude ouvindo gritos histéricos. O sabor da derrota experimentado dia após dia.


Sabor que tornou-se tão familiar, tão próximo, que me parecia natural a opção pelo comodismo. Aceitar a humilhação de seis horas no inferno seis vezes por semana. Humilhação que, na época, fez-me escrever essa letra para a banda que eu tocava. Eu trabalhava na Telefônica, no atendimento de reclamações de defeito - por aí você já pode entender o nível de felicidade das pessoas que eu ouvia todos os dias:


Chego sento, o atraso é marcado, computado

 3% do salário descontado por seus constantes atrasos

Sendo avaliado, medido
minha linha está com prazo de religamento vencido
por favor senhor queira aguardar
que em 24 horas um técnico vai até o lugar
para sua linha normalizar
15 minutos é tudo que tenho para comer alguma coisa
enfim, relaxar
gritos rasgando a parede auditiva
minha linha está muda há mais de três dias
eu não vou pagar esta conta abusiva!

Senhora: eu queria que telefone fosse de graça
todos usando e não pagando nada
meus dias, então, seriam tranqüilos
e seus escrotos gritos não teriam sentido
não sou eu quem decide o valor de um DDD
nem quantos telefones públicos uma rua pode ter
sou apenas mais um otário assim como você. 

A música, "Seis horas no inferno" pode ser ouvida aqui a partir dos 8:41 https://www.youtube.com/watch?v=78PX7aM-F6g


Nunca gostei de reclamar da vida. Sempre preferi fazer algo que pudesse me livrar dos apuros. Mas naquele momento não tinha como simplesmente apertar o botão do "Foda-se". Era um dinheiro necessário para ajudar a manutenção das contas de casa (sempre tive inveja dos jovens que trabalhavam apenas para custear apenas os próprios prazeres, ou para ajudar nos gastos com a faculdade). Entretanto, conforme os dias passavam, o cansaço de ontem somava-se ao cansaço de hoje, e o futuro não era nada mais do que um headset, um login e a odiosa voz de pessoas com as quais não me importava.

Acho que foi ali, no exercício de uma função tão humilhante e desumana, que a minha inaptidão pelo convívio social tornou-se mais aguda. E junto com isso, um importante aprendizado: após ouvir tantas pessoas diferentes, hoje não hesito nunca em julgar alguém pelo tom de voz. Basta apenas uma palavra pronunciada para que eu possa identificar - com cristalina clareza  - todos os traços de personalidade de um ser humano. A diversidade é algo erroneamente valorizado. Somos animais bastante reduzidos e podemos classificar a humanidade toda em algumas poucas classes, todo o mais é acessório.

Recentemente encontrei uma agenda de telefones que utilizava na época do telemarketing (naqueles longínquos anos, ter um celular era ainda algo bem caro). Em diversas páginas, intercalados aos números de parentes e amigos, números de telefones com nomes de pessoas que atendi e que, de alguma forma, me trataram mal. Nomes e mais nomes com telefones (em alguns, cheguei a anotar o endereço), com promessas de retaliação (trotes, pixações de muro, cartas ameaçadoras). Não cumpri nenhuma delas até hoje e não consigo me recordar de nenhuma das situações listadas. É um testamento estéril de um passado remoto (a aceleração do tempo produz essa sensação de que tudo se passou há séculos, mas na verdade foram quinze anos), um arremedo de vingança, uma obra de recalque de um rato. De qualquer modo, o ódio que ali existe, em cada uma das páginas do diminuto caderninho - como aquele ódio é pungente! Penso que, mediante os sortilégios corretos, aquele ódio poderia se materializar na forma de um pequeno golem, viscoso e irritadiço, que perseguiria cada uma daquelas pessoas arrancando-lhes gritos de pavor; o golenzinho não apenas amedrontaria os desconhecidos nomes do caderninho, como eventualmente me traria presentes dessas pessoas: um dente arrancado a força, pontinhas de unhas cortadas, fios de cabelo coletados no banheiro, pedaços de pele recolhidos na base da estiletada; juntos colocaríamos todas esses souvenires do sofrimento alheio em um altar em frente ao caderninho de endereços, como forma de incrementar seu poder; faríamos músicas para louvar o poder do Ódio ali presente, cozinhando os pedaços de pele com os dentes e fios de cabelo em uma grande panela, até tornar essa mistura uma espécie de sopa; comeríamos alegres, eu e o golenzinho viscoso e irritadiço, que cresceria em fúria e tamanho a cada prato esvaziado; planejaríamos cada vez mais e mais coisas ruins, celebrações cotidianas de vingança contra todas aquelas pessoas ali reunidas, pessoas que eram somente nomes esquecidos, nomes que nasceram em uma ligação qualquer onde apenas eu guardava alguma vaga lembrança, enquanto que para aqueles animais eu nada tinha sido a não ser uma voz de atendente de telemarketing, tão descartável quanto qualquer outra.

E me sinto um imbecil ao lembrar daqueles nomes agora, quando o tempo desgastou tudo e tornou amareladas as páginas desse caderninho. Nenhum golenzinho viscoso e irritadiço para me acompanhar nesses vãos sonhos de poder, nenhuma vingança concretizada mesmo que fosse através de uma mentirinha inofensiva. Não reconheço os nomes daqueles que me ofenderam. E não sem um pouco de espanto, nas páginas desse caderninho encontro outros nomes, que não estão grafados com a mesma letra nervosa pelo afã de vingança, mas sim com a minha letra normal, junto ao nome de amigos e parentes; são, portanto, nomes de pessoas conhecidas; mas da mesma forma que os outros, não me recordo delas. Esforço-me, busco no fundo da memória, nada encontro. Um vácuo. Um chão limpo, sem poeira. Uma sala sem móveis nem quadros, e com janelas de onde se pode ver o Nada. As palavras, assim como as pessoas, fogem em revoada com o vento abrasivo do Tempo.


3.16.2014

"A voz do fogo", de Alan Moore


Eu estava comprando uma pilha de livros com a Ugra Press que já consumiria uma soma considerável de dinheiro quando vi que eles também estavam distribuindo o romance "A voz do fogo", de Alan Moore - e então entrei naquele looping de contas e avaliações, de perguntar a mim mesmo se deveria fazer a extravagância, já repetida tantas vezes, de comprar mais livros do que seria o razoável, posto que há uma coleção deles aqui em casa esperando a chance de serem lidos (e agora parece que ouço os resmungos chorosos desses livros de páginas virgens, ainda não devidamente percorridos, alvo apenas de um breve folhear breve, e parece que estão pedindo, quase implorando, para serem retirados das estantes e enfim compartilharem seus segredos). E depois de dois amigos me recomendarem entusiasticamente a leitura, não houve como agir de modo diferente e agregar, a um pedido já bastante volumoso, esse primeiro romance do Alan Moore, publicado em 1995, e que o público brasileiro pode conhecer graças à editora Veneta, em tradução lançada em 2012.  [Errata: eu tinha dito aqui que a Veneta foi a primeira a lançar o livro em território brasileiro. Um amigo me alertou que isso estava incorreto: foi a Conrad que, em 2002, lançou o livro por aqui, chegando a duas edições. Essa da Veneta, então, é a terceira edição da obra no Brasil.]

Alan Moore é um inglês nascido em 1953 na cidade de Northamptonshire, e que ficou mundialmente conhecido por sua prolífica produção de quadrinhos, principalmente com "V de Vingança", "Watchmen" e "Constantine". Um relato breve e consistente de sua trajetória pode ser lido nesse link. Moore também é um bruxo, e seu primeiro romance, objeto desse post, só pode ser compreendido/degustado tendo como plano de fundo essa sua afiliação ao universo da magia e dos quadrinhos. Explicações mais consistentes sobre isso virão a seguir,


"A voz do fogo" é um romance cujo personagem central não é uma pessoa, mas sim uma cidade - Northamptonshire. Não bastasse o inusitado de ter a cidade como personagem central, a história que se desenrola em suas 335 páginas compreende o período histórico de 4.000 a.C. até os dias atuais, em 1.995. Cada um dos doze capítulos, narrados em primeira pessoa, possui um tom particular, e de certa forma podem ser considerados narrativas independentes - o que parece um paradoxo, em se tratando de um romance. E é justamente nesse paradoxo que está um dos aspectos mais legais do livro: qualquer capítulo pode ser lido de modo independente (com exceção do último, por suas características meta-narrativas) e o leitor não terá nenhuma dificuldade de compreendê-lo; entretanto, para que a estrutura se aflore e perceba-se que o personagem é, na verdade, Northampton, é necessário percorrer o livro do início ao fim e perceber certas sutilezas, que se repetem ao longo do livro: o bruxo tatuado do primeiro capítulo, em 4.000 a.C., com seu adorno de galhos e terríveis pinturas corporais, surge nos sonhos do homem louco do capítulo 11, que se passa em 1.841 d.C.; a ponte sobre a qual surge o cadáver que incriminará Ulin, no segundo capítulo, é testemunha de diversos outros acontecimentos ao longo do livro; os shagfoals, cães de olhos flamejantes, aparecem desde o primeiro capítulo e incessantemente até o final, com configurações bastante distintas - e esses são apenas três exemplos de diversas outras sutilezas intertextuais que percorrem toda a narrativa que, quando percebidas, são saborosíssimas, e um dos elementos que tornam a leitura de "A voz do fogo" uma experiência estética fantástica. Mais do que isso: as intertextualidades mostram que a cidade, as suas ruelas e montes, suas esquinas e pontes, seus moradores e histórias, tudo isso se funde em um amálgama que nos desafia, que coloca em cheque as certezas da praticidade e da razão, e mostram que há vozes incessantes, longínquas, cristalizadas até mesmo na memória viva das paredes que julgamos apenas um amontoado de tijolos envelhecidos. É o próprio Moore que fala sobre isso no fantástico capítulo final, explicando sobre do que trata o livro:


"É sobre a mensagem vital que os lábios rijos de homens decapitados ainda exprimem. O testemunho de cães pretos e espectrais escritos com xixi em nossos pesadelos. É sobre ressuscitar os mortos para que nos contem o que sabem. É uma ponte, uma passagem, um ponto gasto na cortina entre o nosso mundo e o submundo, entre a argamassa e o mito, o fato e a ficção. Uma gaze puída mais fina que uma página. É sobre a capacidade sobrenatural das bruxas de falar línguas desconhecidas e a sua revisão mágica dos textos nos quais vivemos. Nada disso é exprimível em palavras."(página 321)
Índice dos capítulos

Um homem ocidental, se chegasse ao Ártico, enxergaria uma vasta paisagem branca que se repetiria tediosa para todos os lados, enquanto que um esquimó é capaz de reconhecer mais de trinta tonalidades de neve, o que é vital para sua sobrevivência naquelas condições extremas. As pesquisas mais recentes da neurociência já conseguiram mostrar, por exemplo, como o cérebro não faz simplesmente o registro do que é captado pelo globo ocular, mas sim cria a imagem. Há muito tempo que a "verdade objetiva" e o "discurso isento" deixou de ser levado a sério.  Moore sabe disso, sabe que a Realidade com r maiúsculo é só mais uma invenção, que Maya e seus véus nos enganam cotidianamente e atrás deles há mundos ainda mais fantásticos, e que a ficção, a arte romanesca, é uma forma de criar realidades (posto que é um discurso, e portanto palavra, e toda magia nasce de um Verbo).  "A voz do fogo" é um romance que assume a dimensão mágica do discurso e busca, através da ficção, romper "aqueles pontos fracos nos limites entre o fato e invenção, onde o véu entre o que é e o que não é se rasga facilmente" (página 325).



Outro ponto que gostaria de comentar e que é marcante em todo o livro: as descrições extremamente vivazes de Moore. Percorrer as páginas de "A cabeça de Diocleciano", por exemplo, não permite apenas que o leitor consiga visualizar, com riqueza de detalhes, as tavernas repletas de saxões bêbados olhando com ódio e desdém o romano invasor, mas também que chegue a imaginar o odor que emana daqueles ambientes infectos. Em vários momentos mergulhei tão profundamente na riqueza das descrições que o mundo exterior parece ter se transformando em um vago borrão. Esse trecho, o final do terceiro capítulo, parece suficientemente ilustrativo:

"A escuridão invade o quarto. Não posso suportar essas trevas, que encobrem qualquer tentativa de definição. Levanto e cambaleio, tal como num sonho, primeiro descendo as escadas. Depois, atordoado, erro pelas ruas. As celebrações já estão começando, as ruas carregadas do fedor de uma vida brutal. Eles mijam nas entradas das casas, dão com remos nas cabeças uns dos outros, e riem, e se ajoelham no próprio vômito. Fornicam pelos muros dos becos feito prisioneiros. Peidam e gritam, são tudo que resta, tudo que existirá. Com movimentos lentos, escapo de seus empurrões obscenos. Um jarro de cerveja é colocado com força em minha mão. Com sorrisos vis, me pegam pelo braço, beijam meu rosto marcado pelas lágrimas e me atraem para que eu me junte a eles." (página 158)

Antes de terminar esse post, impossível não destacar o primeiro capítulo, "O porco do bruxo". No ano de 4.000 a.C., um adolescente que pertence a uma tribo nômade vê sua mãe doente morrer. Considerado pelos demais um estorvo, é expulso da tribo, e então começa sua saga em busca de comida; depois de dias caminhando, encontra abrigo junto à cabana de um bruxo, sendo mantido ali em segredo pela jovem garota que servia ao misterioso homem. Entretanto, não é a história em si que merece destaque, mas à forma adotada por Moore: o capítulo todo é narrado praticamente com verbos não flexionados e períodos com poucas conjunções, na tentativa de emular a voz de um contemporâneo do Neolítico. Algumas ações e objetos não são representados pelos termos que conhecemos (e você só consegue descobrir do que se trata pelo contexto). Assim, por exemplo, a ação de pensar é representada pelo verbo "juntar" ("o meu pensamento" aparece no texto como "o juntar de eu", na linguagem do menino); o órgão sexual masculino é denominado "vontade" ou "osso". Uma construção narrativa ímpar, de onde destaco o trecho abaixo, que é magnífico ao retratar poeticamente o momento em que o adolescente tem o primeiro orgasmo de sua vida, após ser masturbado pela menina:

"Ela é faz inclinar, e encosta cabeça ela que comprido cabelo brilhante de ela é cai como cordas-de-árvores lá todo por vontade de eu. Agora em mão ela é pega um comprido e grosso de cabelo de ela, para enrolar em dedo de ela por osso quente de eu. Oh, ela é esfrega eu com cabelo ela, todo para cima e para baixo, todo rápido e forte que é puxa como para machucar cabeça ela, mas não faz ela um barulho, mas só esfrega e esfrega, e esfregar de isso é bom, juntar isso é mais bom ainda, cabelo ela assim macio e brilhante com sol, forte de ele mexe para cima de osso de eu, devagar como minhoca de costas-de-cabana, de traseiro, por grosso de vontade para ponta onde é espetar bom. Agora é fica uma pequena roda de leite-de-barriga em ele, como olhos de chuva que fica em grama enquanto é primeiro brilho, ela é esfrega mais rápido, mais forte, eu é junto que esse não é esfregar de cabelo em mão, mas esfregar de cabelo por toda fêmea de ela, e, oh, e juntar isso é vai rápido descendo barriga de eu, subindo vontade de eu e, oh, e menina é segura mais forte ainda, para parar leite-de-barriga de eu, mas é agora, e agora, e agora, um fio de leite cai em rosto de ela, em cabelo, e molha em pele de boi-de-pelo de cabeça ela, e mais, e mais, em pernas de eu e baixo de dedos ela, molhado em grama e branco em olho sangrento de flores e, oh, e Mãe. Mãe." (páginas 54/55)


Leitura das mais deliciosas dos últimos tempos, "A voz do fogo" é um livro que nos convida a ver a realidade como ficção e ficção, como real, para mostrar que no final das contas essa divisão é apenas uma pegadinha que fizeram conosco. Fãs antigos irão se apaixonar pelo livro, e quem nunca leu nada de Alan Moore (pecado imperdoável, mas ninguém é perfeito) será conquistado pelos sortilégios do bruxo de Northampton.

"Somos todos, cada um de nós, os fragmentos sangrentos e pungentes de um Deus que foi rasgado em pedaços pelo choro de nascimento da Eternidade. Quando todos os dias se acabarem, Ela que é Noiva e Mãe de todos nós juntará cada migalha de ser espalhado num só lugar, onde voltaremos a saber o que sabíamos no início das coisas, antes da terrível divisão. Todos os seres se dividem entre aqueles que são e aqueles que não são. Entre eles, o segundo tipo é o maior, e tem mais importância. Conhecer o pensamento é estar em outra terra. Tudo é verdadeiro. Tudo." (página 254)