5.30.2008

A língua de Cristo luta contra a extinção

Lí hoje no site da revista Históra Viva:

"Foi declarado pelas Nações Unidas que 2008 é o Ano Internacional das Línguas. Há tempos, a diversidade lingüística é um assunto que preocupa especialistas, já que, ao longo das próximas gerações, estima-se que mais da metade das 7 mil línguas faladas no mundo corre o risco de desaparecer. Isso significa que uma língua some a cada 15 dias.

No mapa das línguas em risco está o aramaico, aquela que foi supostamente a língua materna de Jesus Cristo, hoje falada só na região de Maalula, perto de Damasco, na Síria. Uma das línguas com maior permanência na história, com mais de 3 mil anos, que chegou a se espalhar por todo o Oriente Médio, o aramaico tornou-se um dialeto local (que não é mais escrito), falado atualmente por cerca 1.800 moradores de Maalula, segundo dados da Unesco.

Diferentemente de línguas indígenas ou africanas, que provavelmente morrerão sem deixar registros, o aramaico é bastante estudado por lingüistas e historiadores. Mas isso não a torna uma língua viva. Para tanto, ela precisa ser praticada em seu local de origem. Em Maalula, onde 25% da população é muçulmana, foi inaugurada, no ano passado, uma escola que dá aulas de aramaico. A idéia é fazer com que as crianças da cidade aprendam a falar e escrever a língua que vem dando sinais de cansaço, na cidade onde, entretanto, a missa ainda é rezada na língua de Cristo."

Preservar uma língua está muito além da simples manutenção de um idioma: trata-se de um resgate da própria história, resgate de uma outra cultura, de uma forma peculiar de ordenar o caos dos dados que a realidade fornece.

Alexander Stille, no livro A Destruição do Passado, trata exatamente disso. Para o autor, o ritmo de transformações das últimas décadas está destruindo anarquicamente milênios de história cristalizados em templos, estátuas, obras de arte, ruínas, línguas, etc. Futuramente, isso causará um vácuo na memória das sociedades; e incapazes de falar sobre seu passado, a ausência de referências sobre erros e acertos pretéritos pode contribuir para que os primeiros se repitam, porém agravados.

Não se trata de um saudosismo vazio clamando a volta de tempos passados, mas de um olhar agudo sobre o que passou e a reinvindicação legítima do patrimônio das realizações humanas. E além disso, na confusão de tantas coisas perecíveis que nos circundam hoje, coisas que já nascem predestinadas a morrer - nas artes, no cinema, nos jornais - experimentar a sensação de eternidade que emana de certas obras e lugares é algo revigorador. Não se fica impassível perante a notícia de que, ainda hoje, há missas rezadas em aramaico - ou ao menos não se deveria ficar.

Veja a matéria original aqui

5.23.2008

Sobre Literatura, Lukács e Crítica


Lendo Lukács, encontrei esta passagem:

"A literatura baseada na observação e descrição elimina sempre, em medida crescente, o intercâmbio entre a praxis e a vida interior. Talvez nunca tenha havido uma época na qual, como ocorre na nossa, ao lado da grande literatura oficial, pululasse tanta literatura de aventuras vazia e simplista. E não nos iludamos pensando que tal literatura seja lida somente por `gente inculta´ e que as elites se atenham à grande literatura moderna: comumente, dá-se o contrário. No mais das vezes, os modernos clássicos são lidos em parte por senso de dever e, em parte, pelo interesse no que concerne ao conteúdo que reflete (se bem que de modo enfraquecido e atenuado) os problemas do tempo. Para distração, entretanto, devoram-se os romances policiais" (LUKÁCS, György. Ensaios sobre Literatura, Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1965).

Trata-se de trecho do ensaio "Narrar ou Descrever", onde o autor examina as duas técnicas e suas implicações, para além das dimensões puramente literárias. Inicialmente comparando dois romances modernos, Naná de Zola e Ana Karênina de Tolstói, Lukács escolhe um elemento comum aos dois: a presença, em um dado momento, de uma corrida de cavalos. Enquanto Zola, com o seu rigor, descreve em minúcia cada detalhe da corrida, com uma enorme riqueza de detalhes mas sem, contudo, integrar tal descrição de modo orgânico ao romance - podendo até mesmo ser descartada para a compreensão geral da trama - em Tolstói a narração da corrida está intimamente ligada ao andamento dos fatos, e cada etapa da corrida corresponde a uma ação decisiva entre os personagens - e isto é tão fortemente marcado que, ao término da corrida, o enredo toma rumos absolutamente diferentes, com Ana confessando a Karenin, seu esposo, o envolvimento com Wronski, um dos participantes da corrida. Em outras palavras: enquanto que o descrever é puramente acessório e "se perde no inessencial", como diz Lukács mais à frente, o narrar mostra-se como o próprio vir-a-ser das personagens e das situações por eles vividas. A descrição não se preocupa com o processo: o produto lhe é suficiente. Já a narração não existe sem o processo: é pela exposição deste que ela ganha vida. Assim, a literatura que se vale da descrição é, de certa forma, conservadora, por não mostrar a própria dinâmica de formação das coisas do mundo. A narração, por ser uma elucidação das relações entre os homens e as coisas e dos homens entre si, produz um tipo de texto onde a realidade pode ser desvendada em seus fundamentos, um texto repleto de dinâmicos elementos humanos.

Muitas outras idéias são arroladas no andamento do ensaio; mas como este post não tem a pretensão de esgotá-lo, mas tão somente discutir brevemente algumas das idéias nele contida, ficarei apenas com a crítica presente no trecho acima citado, que diz respeito a uma literatura que pouco ou nada diz sobre "os problemas do tempo". Crítica que, como vejo, permanecesse atualíssima, e que podemos inclusive transplantar para o domínio de outras artes - a música, por exemplo - para nos conscientizarmos de que há a ausência total de uma arte que consiga captar os convulsos movimentos deste zeitgeist que nos envolve a todos - e que me perdoem a silepse e seu exagero, mas ela é proposital e visa marcar com cores fortes o momento.

Um pouco adiante Lukács fornece uma "fórmula" para vencermos esta esterilidade:

"A íntima poesia da vida é a poesia dos homens que lutam a poesia das relações inter-humanas, das experiências e ações reais dos homens. Sem essa íntima poesia não pode haver epopéia autêntica, não pode ser elaborada nenhuma composição épica apta a despertar interesses humanos, a fortalecê-los e avivá-los. A epopéia - e, naturalmente, também a arte do romance - consiste no descobrimento dos traços atuais e significativos da praxis social. A arte do poeta épico reside precisamente na justa distribuição dos pesos, na acentuação apropriada do essencial. A sua ação é tanto mais geral e empolgante quanto mais este elemento essencial - o homem e sua praxis social - aparece, não na forma de um rebuscado produto artificial virtuosístico, mas como algo que nasceu e cresceu naturalmente, quer dizer, como algo que não é inventado e sim, apenas, descoberto"

Desculpemos o marxismo de Lukács, ou melhor, ignoremos por completo as opções políticas deste autor e suas (nem tão secretas) vontades de instrumentalizar a literatura para as barricadas da revolução, e dele apanhemos o que nos interessa aqui, ou seja, sua arguta análise a respeito de como somente quando a literatura se vale da mais pura matéria humana esta consegue ganhar o viço que todo clássico tem; de como somente quando o escritor espreme as palavras, arquiteta as sentenças, passa horas a buscar a exata expressão, somente aí, no esmero de sua arte, é que nos vemos perante obras literárias de fato. Ou, para exemplificarmos de um modo mais específico: literatura como arte - e não literatura como entretenimento, aquele tipo de leitura que nos mantém ocupados nos fins de semana, nas rodoviárias, entre um aeroporto e outro (e cujo papel é exatamente este: fazer passar o tempo) sem nos proporcionar uma outra percepção sobre o ser.

Perante tudo isso, pergunto: que artistas, hoje em dia, estão à altura desta missão? Que mentes, iluminadas por uma audaciosa chama, têm forças para definir as novas fronteiras da conveniência, empurrando para o esquecimento os conceitos gastos que determinam nossa visão da vida? Uma arte tal, como creio e Lukács aponta, necessita, de modo a obter a matéria bruta necessária, vincular-se de modo umbilical à relações inter-humanas. Mais do que isso: precisa ter em si uma disposição de elevar estas relações a um patamar renovado, para longe do círculo da mediocridade atual; e aqui retomo a distinção entre narrar e descrever de Lukács, comentando que a representação da vida cotidiana em toda a sua miséria, por si só, nada tem de potencialmente transgressor. Pode servir, no máximo, como um retrato da decadência, muitas vezes digna das lágrimas dos bem-afortunados ou da simpatia das almas filantrópicas que julgam a si mesmas como socialmente ativas, mas cujas existências nada mais fazem que reproduzir ipsis litteris tudo aquilo que dizem repudiar. Contudo, incapazes de absorver a essência mesma da vida cotidiana, se apegam em sua camada mais superficial. Esta literatura nada mais faz que descrever, como um porco jornal policial, sem ir para além dos fatos, sem colocar a "íntima poesia da vida" em evidência.

5.14.2008

Meio-dia

"Quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à liberdade da razão, não pode sentir-se sobre a Terra senão como andarilho - embora não como viajante em direção a um alvo último: pois este não há. Mas bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender seu coração com demasiada firmeza a nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança e na transitoriedade. Sem dúvida sobrevêm a um tal homem noites más, em que ele está cansado e encontra fechada a porta da cidade que deveria oferecer-lhe pousada; talvez além disso, como no Oriente, o deserto chegue até a porta, os animais de presa uivem ora mais longe, ora mais perto, um vento mais forte se levante, ladrões lhe levem embora seus animais de tiro. É então que cai sobre ele a noite pavorosa, como um segundo deserto sobre o deserto, e seu coração se cansa de andança. Se então surge o sol da manhã, incandescente como uma divindade da ira, se a cidade se abre, ele vê, nos rostos dos que aqui moram, talvez ainda mais deserto, sujeira, engano, insegurança, do que fora das portas - e o dia é quase pior do que a noite. Bem pode ser que isso aconteça às vezes ao andarilho; mas então vêm, como recompensa, as manhãs deliciosas de outras regiões e dias, em que já ao alvorecer da luz ele vê, nas névoas da montanha, os enxames de musas passarem dançando perto de si, em que mais tarde, quando ele, tranqüilo, no equilíbrio da alma antes do meio-dia, passeia entre árvores, lhe são atiradas de suas frondes e dos recessos de folhagem somente coisas boas e claras, os presentes de todos aqueles espíritos livres, que iguais a ele, em sua maneira ora gaiata, ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nascidos dos segredos da manhã, meditam sobre como pode o dia, entre a décima e a décima segunda badalada, ter um rosto tão puro, translúcido, transfiguradamente sereno: - buscam a filosofia de antes do meio dia."
(F. Nietzsche - Humano, Demasiado Humano, parágrafo 638)

5.13.2008

Madrugadas de Maio

"Tu levaste-me além de mim, para aquelas nebulosas paragens de si mesmo que todos nós temos e que raramente ousamos desbravar. Só em você encontrei um mundo como o meu, feito da ambição sem limites de conhecer a tudo, de entender as razões fundantes das coisas, o que se esconde nas tessituras íntimas dos conceitos secretos. Só o exercício dos anos me possibilitou aclarar no intelecto essas idéias, e já não sei ao certo se passou dois ou três desde quando te conheci; mas que importa o tempo, afinal? Tu conheces mais de minha alma do que toda a gente, até mesmo aquilo que não desejo saber você adivinha; nas nossas cartas sem fim apenas um detalhe, um adjetivo, ou mesmo um mal empregado singular é suficiente para que você, com a agudeza de julgamento que é apenas sua, me leia em profundidade.

E se muitas vezes a critiquei por seu comportamento tempestuoso, hoje eu sei que ele se deve a um extremo de sinceridade que não tolera o mínimo desvio. Tal rigor, muito mais forte que todos os vícios do mundo, te edifica a uma nobreza a qual jamais vi. Não é a nobreza fácil, aquela dos hipócritas, feita de tudo que é artificial e ostentador: é algo que está em cada gesto seu, na ausência completa de egoísmo, na sua recusa a todas as podridões que a turba venera, no seu elitismo que com nada se importa a não ser a retidão aos seus próprios desígnios. E essa nobreza ganha no marmóreo branco de sua pele ­– e eu me lembro de cada detalhe dessa pele – uma tal beleza que faz você surgir como escultura, exemplo de perfeição em arte, contudo sempre humana, demasiada humana, uma Überfrau que fumava comigo vaporosos cigarros nas madrugadas frias. Conhecê-la no íntimo oculto, na sua mais sensual verdade, e ver desabrochar em flor o suave perfume de seu sexo quente me fez experimentar o gozo como a pequena morte que ele é, para depois ressuscitar, suado e ofegante, no delicado gesto de seus braços a envolver meu pescoço, puxando-me mais uma vez para si, no silêncio cúmplice de tudo que é sublime – e então nasceu o desejo de permanecer naquele torpor para todo o sempre, alheios ao mundo, surdos para a sinfonia de seus sons perturbadores. Eu seria então seu eterno adorador, eternamente prostrado aos pés de seu altar úmido, a alcova seria o templo onde você, magnífica, reinaria como uma violenta deidade, cheia de feminis caprichos, aqueles dengos que fazem das mulheres seres tão curiosos e que em você encontro em estado ideal. Festas sem fim eu suportaria, homenagens, rituais de devoção que exigem penumbra e velas e sacrifícios, ali estaria eu, tudo fazendo para sua felicidade divina e para meu gozo viril.

Por desígnios para sempre ocultos - o Destino, sabemos, é mudo - agora tu és uma deusa que deixou sua cidade para conquistar outros domínios. E no coração deste seu adorador, embora esteja mais do que presente a certeza que seus divinais planos alcançarão a glória, há um vazio feito de saudade que eu esqueço sempre quando tu acenas através de suas cartas. Desde os antigos que se diz que as cartas são como conversas onde, pela força sibilina da palavra escrita, os distantes se fazem próximos, mesmo que no curto espaço da leitura de duas folhas de papel. É sempre uma juvenil felicidade aquela que se apossa de mim ao ver mais uma delas chegando com notícias suas, trazendo novidades que preenchem os intervalos entre meus afazeres diários com mil reflexões e vontade de, mais uma vez, celebrar ao seu lado os ritos do desejo, em nossa alcova, seu templo. Templo no qual ainda existe seu cheiro, a sua marca, os seus traços. Templo no qual reinamos absolutos, você e eu, na união entre o humano e o divino, entre as potencialidades da vida e do além-da-vida, nos espasmos que meu corpo fez sobre o seu e tudo que lembro são violências prazerosas, são ímpetos imprevisíveis, são vontades de permanecer, eternos e saciados, naquela esfera luminosa que toma conta de nós no clímax sacrificial.

Hoje é dia 12. Ainda é tão cedo que é possível ver muitas estrelas. Um vento delicioso está soprando e deixando tudo ainda mais gélido. Não há sequer uma nuvem no céu, só o éter azul cobrindo o orbe de um lado a outro. O Sol, tímido ainda, está se levantando lentamente na linha do horizonte. Você tem razão: maio é o mais lindo dos meses.”