Lendo Lukács, encontrei esta passagem:
"A literatura baseada na observação e descrição elimina sempre, em medida crescente, o intercâmbio entre a praxis e a vida interior. Talvez nunca tenha havido uma época na qual, como ocorre na nossa, ao lado da grande literatura oficial, pululasse tanta literatura de aventuras vazia e simplista. E não nos iludamos pensando que tal literatura seja lida somente por `gente inculta´ e que as elites se atenham à grande literatura moderna: comumente, dá-se o contrário. No mais das vezes, os modernos clássicos são lidos em parte por senso de dever e, em parte, pelo interesse no que concerne ao conteúdo que reflete (se bem que de modo enfraquecido e atenuado) os problemas do tempo. Para distração, entretanto, devoram-se os romances policiais" (LUKÁCS, György. Ensaios sobre Literatura, Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1965).
Trata-se de trecho do ensaio "Narrar ou Descrever", onde o autor examina as duas técnicas e suas implicações, para além das dimensões puramente literárias. Inicialmente comparando dois romances modernos, Naná de Zola e Ana Karênina de Tolstói, Lukács escolhe um elemento comum aos dois: a presença, em um dado momento, de uma corrida de cavalos. Enquanto Zola, com o seu rigor, descreve em minúcia cada detalhe da corrida, com uma enorme riqueza de detalhes mas sem, contudo, integrar tal descrição de modo orgânico ao romance - podendo até mesmo ser descartada para a compreensão geral da trama - em Tolstói a narração da corrida está intimamente ligada ao andamento dos fatos, e cada etapa da corrida corresponde a uma ação decisiva entre os personagens - e isto é tão fortemente marcado que, ao término da corrida, o enredo toma rumos absolutamente diferentes, com Ana confessando a Karenin, seu esposo, o envolvimento com Wronski, um dos participantes da corrida. Em outras palavras: enquanto que o descrever é puramente acessório e "se perde no inessencial", como diz Lukács mais à frente, o narrar mostra-se como o próprio vir-a-ser das personagens e das situações por eles vividas. A descrição não se preocupa com o processo: o produto lhe é suficiente. Já a narração não existe sem o processo: é pela exposição deste que ela ganha vida. Assim, a literatura que se vale da descrição é, de certa forma, conservadora, por não mostrar a própria dinâmica de formação das coisas do mundo. A narração, por ser uma elucidação das relações entre os homens e as coisas e dos homens entre si, produz um tipo de texto onde a realidade pode ser desvendada em seus fundamentos, um texto repleto de dinâmicos elementos humanos.
Muitas outras idéias são arroladas no andamento do ensaio; mas como este post não tem a pretensão de esgotá-lo, mas tão somente discutir brevemente algumas das idéias nele contida, ficarei apenas com a crítica presente no trecho acima citado, que diz respeito a uma literatura que pouco ou nada diz sobre "os problemas do tempo". Crítica que, como vejo, permanecesse atualíssima, e que podemos inclusive transplantar para o domínio de outras artes - a música, por exemplo - para nos conscientizarmos de que há a ausência total de uma arte que consiga captar os convulsos movimentos deste zeitgeist que nos envolve a todos - e que me perdoem a silepse e seu exagero, mas ela é proposital e visa marcar com cores fortes o momento.
Um pouco adiante Lukács fornece uma "fórmula" para vencermos esta esterilidade:
"A íntima poesia da vida é a poesia dos homens que lutam a poesia das relações inter-humanas, das experiências e ações reais dos homens. Sem essa íntima poesia não pode haver epopéia autêntica, não pode ser elaborada nenhuma composição épica apta a despertar interesses humanos, a fortalecê-los e avivá-los. A epopéia - e, naturalmente, também a arte do romance - consiste no descobrimento dos traços atuais e significativos da praxis social. A arte do poeta épico reside precisamente na justa distribuição dos pesos, na acentuação apropriada do essencial. A sua ação é tanto mais geral e empolgante quanto mais este elemento essencial - o homem e sua praxis social - aparece, não na forma de um rebuscado produto artificial virtuosístico, mas como algo que nasceu e cresceu naturalmente, quer dizer, como algo que não é inventado e sim, apenas, descoberto"
Desculpemos o marxismo de Lukács, ou melhor, ignoremos por completo as opções políticas deste autor e suas (nem tão secretas) vontades de instrumentalizar a literatura para as barricadas da revolução, e dele apanhemos o que nos interessa aqui, ou seja, sua arguta análise a respeito de como somente quando a literatura se vale da mais pura matéria humana esta consegue ganhar o viço que todo clássico tem; de como somente quando o escritor espreme as palavras, arquiteta as sentenças, passa horas a buscar a exata expressão, somente aí, no esmero de sua arte, é que nos vemos perante obras literárias de fato. Ou, para exemplificarmos de um modo mais específico: literatura como arte - e não literatura como entretenimento, aquele tipo de leitura que nos mantém ocupados nos fins de semana, nas rodoviárias, entre um aeroporto e outro (e cujo papel é exatamente este: fazer passar o tempo) sem nos proporcionar uma outra percepção sobre o ser.
Perante tudo isso, pergunto: que artistas, hoje em dia, estão à altura desta missão? Que mentes, iluminadas por uma audaciosa chama, têm forças para definir as novas fronteiras da conveniência, empurrando para o esquecimento os conceitos gastos que determinam nossa visão da vida? Uma arte tal, como creio e Lukács aponta, necessita, de modo a obter a matéria bruta necessária, vincular-se de modo umbilical à relações inter-humanas. Mais do que isso: precisa ter em si uma disposição de elevar estas relações a um patamar renovado, para longe do círculo da mediocridade atual; e aqui retomo a distinção entre narrar e descrever de Lukács, comentando que a representação da vida cotidiana em toda a sua miséria, por si só, nada tem de potencialmente transgressor. Pode servir, no máximo, como um retrato da decadência, muitas vezes digna das lágrimas dos bem-afortunados ou da simpatia das almas filantrópicas que julgam a si mesmas como socialmente ativas, mas cujas existências nada mais fazem que reproduzir ipsis litteris tudo aquilo que dizem repudiar. Contudo, incapazes de absorver a essência mesma da vida cotidiana, se apegam em sua camada mais superficial. Esta literatura nada mais faz que descrever, como um porco jornal policial, sem ir para além dos fatos, sem colocar a "íntima poesia da vida" em evidência.
que bonitinho. tô trabalhando muito agora, fica mais complicado. mas façamos assim: ligo no teu celular. hehe
ResponderExcluire lúkács é bacana né? eu li alguma coisa quando estudava Gargantua. animal.
beijo
...parabéns, é o que penso sobre livros,poesia, artes em geral.As vezes não entedo os "rabiscos" e cortes na historia e como as cores, que ainda se mostram ás mesmas, no cenario da natureza, conseguem tomar tons represntando, aos meus olhos, absurdas árvores e desconhecidas flores.E meus ouvidos não captam sons de melodia, e sim ruidos que busco entender o sentido.Abraço
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. E a imagem que utilizaste, além de bela, explica bem o meu sentimento e, em certa medida, o argumento do Lukács. Não sei quem foi, não me lembro agora, mas já li em algum lugar que a obra de arte moderna é, necessariamente, uma obra complexa. Por detrás da aparente simplicidade formal de certos contos, melodias e cores há referências e muito trabalho intelectual. Penso em certos contos de Cortázar, ou na simplicidade das melodias de grupos como Death in June: simplicidade e "avant engarde" em um mesmo momento.
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