1.30.2008

C´est la vie

Chuva incessante, frio, roupas pesadas demais para um janeiro que mal começou e já quer terminar. Ou este mundo está fora do eixo ou Deus está querendo nos castigar com a impressão de um mais um triste carnaval.

1.21.2008

O Mercado e a Alma

Um dia de dezembro, quente e abafado. Nem bem tinha levantado da cama e o corpo completamente suado já estava. Calor maldito, disse ao por os pés no chão e sentir o contraste do piso frio com o bafo quente do quarto, mormaço que deixava os músculos preguiçosos, as pernas cheias de manha, o corpo como que surrado. Mas era preciso enfim levantar-se, depois água ao rosto para despertar, mais um pouco para a boca sedenta, então trocar de roupa e sair. Combinara com uns amigos uma ida ao Mercado Municipal para as compras da ceia de Ano Novo. Não iriam viajar, não tinham o dinheiro, e os dias de folga no trabalho eram tão exíguos quanto as suas economias. Resolveram então se reunir, comprariam tudo que as ceias em família têm, passariam uma tarde a preparar os pratos e à noite se fartariam e estourariam espumantes.

Ainda sentado na cama M. brigava com a sedutora preguiça quando o telefone tocou. Vem logo, o Mercadão hoje deve fechar cedo, era A. alertando o amigo, afinal já passava das dez da manhã e possivelmente ao meio-dia todo o comércio fecharia as portas. A necessidade fez M. vestir qualquer coisa e esquecer de qualquer higiene, foda-se, é o último dia do ano, pra quê se arrumar. Chegando ao prédio de A. tomou o elevador e olhou no espelho, a qualquer desejo de vaidade não haveria mais lugar, se estivesse ridiculamente vestido teria que suportar, e na totalidade dos desastres do mundo o que é uma desastrosa escolha de roupas, suportamos todo dia a ofensa de um relógio no pulso para lembrar que somos escravos do tempo, perto disso o olhar de gargalhadas da garota linda que passou não é nada. M. já estava papeando com A. na cozinha, ontem eu e a D. compramos algumas coisas no mercado aqui do lado, dá uma olhada nestas azeitonas chilenas, estavam baratas.
- Chama logo a D., cara. Não quero demorar muito lá.
- Vamos.

Da casa de A. até o Mercado Municipal era um caminho de uns trinta minutos em zigue-zague pelas ruas do centro da Cidade. O centro é o lugar onde se encontra a alma de qualquer cidade, a sua essência e a realização mais plena de sua forma. Isso nada mais é que um acúmulo de obviedades, certamente alguém poderá reclamar, mas o que importa é ver nisso tudo apenas o preâmbulo para vislumbrar o que, enterrado, vai no coração de M.; pois para ele o centro da Cidade encarnava também as excrescências, as deteriorações de um modelo ideal, a memória estilhaçada de um tempo que se perdeu mas presente sempre está, ao leitor atento isso certamente parecerá um equívoco, como afinal algo que se perde pode permanecer?, a pergunta é inevitável, para solucionar a questão basta que lembremos de alguém querido que morreu. M. olhava o Teatro Municipal, a Igreja da S., o Grande Viaduto, a Praça da Coisa Pública, e entre estes pontos os cortejos sem fim das gentes de todos os tipos e de todos os lugares, escadarias antes santas são agora poleiros de miseráveis pedindo esmolas, mas caçadas não se anda sem esbarrar em vendedores ambulantes e suas mercadorias eternamente suspeitas, fanáticos profetizando o fim do mundo com olhos demoníacos, putas que cheiram a perfume de oito reais sorrindo para qualquer um, senhores de caminhar lento que não se encaixam na paisagem de pura velocidade, como reminiscências de um tempo onde só se tinha pressa de vez em quando. Tudo isso, os mendigos, os ambulantes, os fanáticos, as putas e os velhos emaranhados entre indescritíveis outros tipos, são milhares, aqui só lembramos aqueles pelos quais M. mais interesse nutre. Ainda é preciso falar do cheiro que igual não há em nenhum outro lugar. Como isto era possível, claro era apenas o cheiro incomparável daquelas ruas sebentas, imaginava-se cego e de todos os cheiros do mundo os únicos que distinguiria sem sombra de dúvida era o de café, merda e o do centro. Talvez justamente o cheiro tão característico fosse a prova maior que aquela Cidade tinha uma alma, não se podem ver as almas, mas dizem que elas existem e é possível senti-las, o mesmo se dá com os cheiros, que não podem ser vistos, apenas sentidos.

E no Mercado o cheiro-alma da Cidade ficava ainda mais forte e misturava-se ao odor das frutas da estação,das verduras, das carnes, das pessoas que amassavam na quase orgia dos corredores estreitos. Prove uma uvinha, mais doce aqui não há, disse o vendedor orgulhoso de tão gordo, e entre os dedinhos espertos deixa escapulir um punhado de róseas uvas para as mãos de A. Quantos dias eu conseguiria viver apenas comendo as frutas dadas como amostra, M. perguntou a si mesmo. Viver naquela cidade era caro demais, fizera planos de gastar menos no ano que chegava, quem sabe as economias ajudassem a comprar um carro, mas um empecilho de ferro a piorar o trânsito da cidade.

Começou a ver todas aquelas pessoas se fartando de frutas cristalizadas, de ameixas, de tremoços, de queijos, eram famílias inteiras a compartilhar risos e sacolas. Todos pareciam felizes, e isto fez M. colocar em cheque sua felicidade, sua satisfação para com o mundo, com sua vida. Pois era um ano pesado o que embora ia, estranho atribuir uma massa física ao ano, mas é como se 2007 lhe pesasse nos ombros. Enquanto isso o vendedor gordo generosamente distribuía suas uvas, e era tão satisfeito que enojava. A. e D. logo adiante inspecionavam uns provolones, e mais gente chegava suada de tão apressada. Sei lá por que diabos uma ternura brotou no coração de M. enquanto ali parado estava, atrapalhando com seu imobilismo o livre trânsito das pessoas e suas sacolas, de-tudo-expectador, a pensar nos quitutes que comeria naquela noite e em quais novas paixões e desastres se envolveria no ano que nascia.

1.20.2008

Literatura e Filosofia


Inspirado pelo post anterior sobre Deleuze, andei a pensar nestes dias a respeito das relações existentes entre literatura e filosofia, ou melhor dizendo, da literatura e seus "personagens filosóficos".

Aqui, obviamente, é impossível não lembrarmos de alguns nomes. E em minha lista, Raskholnikov ocupa o topo, pela sua fúria destruidora de mundos, cujos questionamentos não pouparam sequer a si mesmo. Mas apenas ele não basta, e também podemos colocar aqui Herman Hesse, Álvaro de Campos, Saramago, Kundera... (se alguém estranhar que comecei com um personagem e continuei a lista apenas com autores, aviso que para mim Raskholnikov é tão real quanto eles, e até mais vivo que muita gente que anda por aí, cheia de saúde).

Eu tinha 17 anos quando li Crime e Castigo. Hoje, 12 anos e muitos outros romances depois, posso dizer que os que mais gostei foram aqueles que mais filosofia me trouxeram. É por isso que "Seara Vermelha" me causa tédio: ali há enredo, há personagens, há situações, há cenários, mas me falta o choque de idéias e questionamentos que encontro ao ler "Crônica da Casa Assassinada". O que os separa não é apenas a opção política, Jorge Amado o comunista, Lúcio Cardoso o católico liberal, mas a amplitude das questões que afetam as personagens e o próprio narrador. Tampouco isso se determina pelo comunismo chato de Jorge Amado, já que Saramago é um vermelho de carteirinha e me fez chorar e destruir uns dois conceitos antiquados sobre a vida com "O Ano da Morte de Ricardo Reis".

Imagino que romances Cioran escreveria, se tivesse estômago para criar um mundo e nele colocar personagens. Aspirante que era a ser um eterno objeto, certamente consideraria a tarefa desonesta demais. Este texto ainda não acabou e certamente escreverei mais a respeito do diálogo sempre fecundo entre literatura e filosofia.

1.10.2008

O ABCD de Deleuze

Um amigo que adora estragar shows musicais me forneceu este interessante link com uma longa entrevista com Gilles Deleuze. Para cada letra do alfabeto, um tema é proposto para discussão (A de animal, B de beber, etc), ponto de partida para que o filósofo do desejo nos presenteie com saborosíssimos pontos de vista, plenos de espirituosidade.

Ainda não terminei de ler. Fui até a letra D. Mas foi o suficiente para me apaixonar e, se você ler, vai entender por que eu disse isso.

Por hora eu me calo. Agora, vá até a página e comece sua leitura.

Zumbis!

83%

Não há absolutamente sentido algum neste post, mas convido você a fazer o teste acima e saber quais são suas probabilidades de sobrevivência se, de repente, sua cidade for invadida por zumbis.

Sim, eu amo Madrugada dos Mortos e daria tudo para viver naquele filme por ao menos uma hora (e devidamente armado de uma AK47, é claro).

Não, eu não fui e não irei JAMAIS ao Zombie Walk e acho que quem foi merece tanto desprezo quanto qualquer jogador de RPG.

1.03.2008

O sonho de uma mulher desesperada

Deitada sobre colchas amarrotadas ela dorme. O quarto é o de sempre, o quarto dos brinquedos de outrora, o quarto com as cores do aconchego familiar, o universal quarto que nos sempre vem à mente quando sentimos o cheiro de lençóis limpos. E tudo nele é feminino e delicado, permita o leitor que eu dê um palpite e chame aquele quarto de mimoso, o adjetivo cabe perfeitamente, basta percorrer com o olhar de uma parede até a outra para perceber isso: os móveis leves, de cores suaves, aqui um detalhe de rosa, ali um ursinho, logo embaixo a bonequinha preferida, agora deixada aos cuidados do pó e da Memória, uma caixinha para os brincos, ao lado pulseiras, uma negra e brilhante corrente de Swarovski, perfumes em frascos detalhados, uns livros descansando em uma prateleira pequena, no lado oposto o guarda-roupa, ali estão roupas de todas as fases, há até oculto os sapatinhos dela ainda um bebê de meses, bonita lembrança do passado, mais ainda se pensarmos o quão pequenos eram os pezinhos de S., não que hoje ainda não sejam, mas mesmo assim a comparação entre o ontem e o agora causa um certo espanto.

(“Saiba você pois que há mulheres que conseguem ser maravilhosas até mesmo quando um certo desleixo as afeta. Elas conseguem provocar suspiros de paixão não pelo salto alto ou pela ousadia de um decote, mas principalmente pela insolência de um cabelo despenteado, pelo olhar de nojo endereçado a tudo, pela petulância ao acender um cigarro e baforar a fumaça como quem diz ‘eu simplesmente não suporto nenhum de vocês’. Todo homem se depara com uma mulher dessas, e acredite, elas sabem como proporcionar muita diversão.”)

E delicado não é apenas o quarto, mas também a maneira sem cuidados dela ali deitar Olhando-a assim, enquanto ela dorme, com o corpo desajeitado e semicoberto por fino lençol, percebe-se o seu sono tranqüilo, a frieza de um sono que não se atormenta por nada – ou melhor, a aparência de um sono que não se atormenta por nada. Pois se possível fosse vasculhar os sonhos de outrem, a S. atribuiríamos um sono cheio de tormentos, um sono que não descansa o corpo mas o mutila por mil imagens que se repetem, por mil vibrações oníricas que o abalam.

(“A minha eu conheci faz alguns anos. Pois bem: tudo que ela me trouxe, no dia em que foi embora a desgraçada levou em dobro. Eu podia ter lá meus problemas, todo mundo tem, mas sério, eu ainda conseguia manter uma certa dignidade; sempre achei os românticos idiotas, sempre achei os que sofriam por amor dignos de pena, mas graças a ela eu me vi perdido. E eu acho que para sempre.”)

Ela suspira mais fundo, lentamente começa a se movimentar na cama, até que se vira por completo e deita de bruços, todo o movimento realizado como se cada músculo pesasse toneladas, e mesmo assim é inegável a harmonia toda deste balé de adormecida. Mas neste momento, onde o mexer-se na cama parece fruto da arte, não há nada de equilíbrio nos sonhos de S.: ela está correndo, parece ser em uma floresta, está nua, suja e apavorada, há pessoas acampadas em barracas próximas, com horrendas deformidades, ela grita por socorro mas ninguém a ajuda, apenas a observam e ficam a rir, e ela continua a correr. Qual o significado deste sonho, S. perguntou a si quando o teve pela primeira vez, não encontrou resposta e continuou sonhando. São quatro meses e as mesmas imagens se repetem, existe mensagens escondidas nele, uma amiga com tendências esotéricas sentenciou, mas isso não foi o bastante para que o oculto sentido se manifestasse e muito menos para que, na noite seguinte, o tormento de S. não se repetisse.

(“Sabe o que eu desejei então? Que a maldita jamais tivesse paz. Isso mesmo. Paz, você nunca terá, eu disse. Na cara dela, no dia que ela foi embora. Falei isso e ri, ri de satisfação, ri inebriado de vingança, entorpecido de vingança. Nunca mais a vi, desde então. Melhor assim.”)

Agora ela não se mexe, mas solta um gemido. Nas pessoas que dormem, um gemido significa desejo de despertar motivado pelo medo daquilo que se sonha. S. sente medo, mas não consegue acordar, e segue correndo desesperada em seu sonho, ainda na floresta, mas agora passando no meio das barracas, que se multiplicaram, e os aleijados mal-cheirosos riem ainda mais alto, e para onde quer que ela olhe só há floresta e aleijados que riem sem parar, e S. geme ainda mais alto, principalmente quando percebe que as centenas de aleijados que a cercam têm o mesmo rosto, rosto de um homem que ela não consegue distinguir bem, mas que lhe é familiar, no mundo dos sonhos não há limites precisos para nada, e podemos desconfiar de S. quanto a esta familiaridade, já que mesmo acordado cometemos equívocos e tomamos por x o que na verdade é y. De qualquer modo, a impressão dos rostos iguais é profunda o suficiente para que os gemidos fiquem longos, doloridos. Estranho que gemidos ocorram tanto em momentos de medo e dor quanto de prazer, isso faz supor que até mesmo as imagens horríveis que S. suporta sejam no fundo motivos de delícia, mesmo que inconfessáveis. A cabecinha se agita um pouco, como se quisesse enfim se levantar e despertar, mas isso ainda não ocorre e tudo que vemos é um novo movimento do que chamamos logo antes de balé, já não há nada da graça de outrora, mas um alvoroçado mudar de posição, neste ponto a delicadeza de S. diminui e fica presente a mulher-voraz, a mulher que no auge do clímax grita e se movimenta em espasmos, não que S. esteja tendo um orgasmo, mas as pernas se movimentando rápido sugerem o gozo.

(“Hoje eu acho que deveria ter ido além. Sabe, uns tapas bem dados pra ela saber o que deve e o que não deve fazer com um homem que a ama. Mas eu só a peguei pelo braço e dei uns belos chacoalhões, maldizendo cada segundo da vida dela. Talvez dar os tapas não mudasse nada, ela iria embora uma hora ou outra mesmo, mas eu ficaria muito mais satisfeito. Só sei que, quando a agarrei e gritei, eu pude ver o medo que ela tinha de mim. Só aí eu me dei conta que já não havia mais nenhum amor nela, que nenhum esforço de reconquista seria possível. O melhor era deixá-la ir, já que na verdade há muito tempo ela não estava mais perto de mim.”)

No sonho, ela continua correndo, e há milhares de aleijados sufocando-a, ela pula por cima deles, dos que se arrastam, mas há outros que sustentados por pernas ossificadas se esfregam nela, e riem sem parar, ela cai e levanta, mãos tentam segurá-la, nem as lágrimas comovem os atrevidos, na verdade é isso que os deve excitar. Um dos monstros a pega pelo braço, arrasta-a para perto do rosto contorcido e grita, S. então finalmente distingue a face tão familiar, ela não pode acreditar no que enfim vê, e seu choro é intenso e desesperado, as mãozinhas agarram os lençóis, puxam-no para si, já está com as costas empapadas de suor, e tão presente é o medo que de seus olhos vemos escorrer lágrimas, balbucia algumas palavras, mas não é possível entender nada, entrecortada que estava a fala pelo gemido e pelo sono. Logo em seguida ela desperta, repletos de lágrimas os olhos, o choro que ainda não terminou, a expressão de confusão e medo nada se assemelha ao delicado semblante de antes. Já sabia que sonharia aquilo tudo novamente, exatamente igual, no dia seguinte. E a surpresa de reconhecer o rosto dele naquelas faces e corpos abomináveis a tomava por completo e produzia uma sensação desagradável. Pois era estranho logo ele assim surgir, como parte deste pesadelo tão incomum, e ao mesmo tempo tão real, mesmo que absolutamente improvável. Não conseguiu voltar a dormir e chegou a temer que não voltasse nunca mais.