10.21.2007

Saudade é a 7ª palavra mais difícil de traduzir


Navegando por acaso, eis que me deparo com este artigo. Ele é de 2004, velhinho, mas fala sobre as dificuldades de tradução de certas palavras, inclusive a nossa luso-brasileiríssima "saudade" - sentimento que devora corações e almas desde os tempos dos trovadores medievais.

Saudade "é a 7ª palavra mais difícil de traduzir"
da BBC, em Londres

Uma lista compilada por uma empresa britânica com as opiniões de mil tradutores profissionais coloca a palavra "saudade", em português, como a sétima mais difícil do mundo para se traduzir.

A relação da empresa Today Translations é encabeçada por uma palavra do idioma africano Tshiluba, falando no sudoeste da República Democrática do Congo: "ilunga".

"Ilunga" significa "uma pessoa que está disposta a perdoar quaisquer maus-tratos pela primeira vez, a tolerar o mesmo pela segunda vez, mas nunca pela terceira vez".

Em segundo lugar ficou a palavra "shlimazi", em ídiche (língua germânica falada por judeus, especialmente na Europa central e oriental), que significa "uma pessoa cronicamente azarada"; e em terceiro, "radioukacz", em polonês, que significa "uma pessoa que trabalhou como telegrafista para os movimentos de resistência ao domínio soviético nos países da antiga Cortina de Ferro".

Contexto cultural

Segundo a diretora da Today Translations, Jurga Ziliskiene, embora as definições acima sejam aparentemente precisas, o problema para o tradutor é refletir, com outras palavras, as referências à cultura local que os vocábulos originais carregam.

"Provavelmente você pode olhar no dicionário e [...] encontrar o significado", disse. "Mas, mais importante que isso, são as experiências culturais [...] e a ênfase cultural das palavras."

Veja a lista completa das dez palavras consideradas de mais difícil tradução:

1. "Ilunga" (tshiluba) - uma pessoa que está disposta a perdoar quaisquer maus-tratos pela primeira vez, a tolerar o mesmo pela segunda vez, mas nunca pela terceira vez.

2. "Shlimazl" (ídiche) - uma pessoa cronicamente azarada.

3. "Radioukacz" (polonês) - pessoa que trabalhou como telegrafista para os movimentos de resistência o domínio soviético nos países da antiga Cortina de Ferro.

4. "Naa" (japonês) - palavra usada apenas em uma região do país para enfatizar declarações ou concordar com alguém.

5. "Altahmam" (árabe) - um tipo de tristeza profunda.

6. "Gezellig" (holandês) - aconchegante.

7. Saudade (português)

8. "Selathirupavar" (tâmil, língua falada no sul da Índia) - palavra usada para definir um certo tipo de ausência não-autorizada frente a deveres.

9. "Pochemuchka" (russo) - uma pessoa que faz perguntas demais.

10. "Klloshar" (albanês) - perdedor.




Veja matéria original publicada na Folha aqui

10.17.2007

Cachos negros

Dela M. apenas guardara o sorriso e a maneira cheia de sutilezas de arrumar os abundantes cabelos. Era uma forma tão graciosa de passar os dedos pelos cachos negros, e conduzi-los quase que por encanto para cima, para baixo, que M. esquece que está em plena Avenida P. dos carros famintos por asfalto. E se continuasse ali na calçada, contemplativo naquela paixão matinal, a esbarrar nas gentes que ali passavam, chegaria tarde no trabalho - e nenhum patrão no mundo, nem mesmo aquele que se dá ares de poeta, gosta de funcionários que atrasam 15 minutos por contemplar musas.

E então M. segue em frente, farol fechado paras as bestas a gasolina, e lá se foram os cachos negros em direção que não se sabe, a multidão na P. é um ultraje à libido, sequer podemos seguir com os olhos um belo par de pernas por mais de 20 segundos. No caso de M. os cachos negros eram bem mais que pensamentos sexuais, eram uma paixão mesmo, daquelas que fazem estragos, que deixam ruínas e de cujos efeitos muitos não se recuperam. Encontrava uma garota na rua, três olhares depois ela já se transformava na mulher de sua vida, se não fosse um recluso faria um convite simpático para um café perto do Parque T., lá conversariam, se reconheceriam, não demoraria muito e já estariam cheios de afagos e afetos, trocando cartinhas, trocando confidências: assim imaginava M. detalhes de cada relação com cada garota desconhecida que subitamente lhe inspirava paixão.

E era uma verdadeira paixão. A ponto de M. ficar triste quando, calado, observava a desconhecida tão sua indo embora para nunca mais. Pois a Cidade é imensa, e imensos caminhos a cruzam, e cada vez que os percorremos, parece que eles já não mais são os mesmos, ou talvez somos nós os que estão em mutação, o ovo ou a galinha, certas questões nascem para ser eternas. Mesmo assim, mesmo sabendo que apartado estava para sempre de cada uma de suas paixões instantâneas, M. cultivava a possibilidade de novamente encontrá-las, e em questão de segundos suas paixões o reconhecerem com um largo sorriso, eu lembro de você aquele dia em tal lugar, lembra de mim, te procurei tanto. Desce em direção a Alameda S. com a certeza de que ali, na esquina com a Rua A., aquela loirinha de brincos de argola estaria como naquela última quinta-feira. Sacola de compras na mão, e tão indiferente ao mundo ela parecia que M. acreditou que jamais se apaixonaria de novo, era tão somente ela e nenhuma outra, ali estava a companheira definitiva para as viagens e bebedeiras e contas atrasadas e noites de sexo. Mas as esperanças são apenas brinquedinhos que Deus fez para nós, brinquedinhos Dele, gastarmos o tempo tão pouco que aqui temos - e M. não encontrou sua loirinha de brincos de argola, assim como jamais encontrará os negros cachos novamente.

Obviamente ele não pensa estas coisas. Está muito atarefado em desviar dos caudalosos rios humanos que infectam as ruas dos Jardins. Mas no íntimo sofre a perda de suas paixões. E quando o leitor se depara com o verbo sofrer, deve se recordar das vezes que sentiu dor por alguém, e saber que é uma dor como esta que aflige M., e não acusá-lo de leviandade e de superficialidade de sentimentos. Pois é muito razoável que alguns vejam em M. tão somente um aventureiro; se assim o fosse, estaria ele imaginando tórridas cenas sexuais com os cachos negros, e não uma sala confortável com filhos e filhas a brincar no cantinho. Sim, ele a quis nua, os lábios dela desejou, os contornos que transbordavam volúpia, imaginou um perfume e um nome até - Juliana ela chamaria. Mas no momento do êxtase, sobre ela ele se estenderia com fúria, até que cachos negros ficasse quietinha, na semi-imobilidade que sucede o Excesso, e envolvendo-a em um abraço, diria Juliana, eu te amo, e seria o mais verdadeiro dos homens ao fazer isso.

Vinte minutos de atraso quando, finalmente, M. liga o computador no escritório. Felizmente, seu chefe ainda não tinha chegado. Ninguém perceberia seu atraso. Vai tomando um copinho de café enquanto vê a rua pela janela. Quantas ainda amarei até te encontrar, pensa, e naquele momento ele é triste e cheio de vida. Já não lembra mais de cachos negros e nem dos seus dedos sibilinos a balançar os fios para cima e para baixo. Aquela paixão, tão subitamente nasceu, tão subitamente foi embora. A multidão, porém, continua a mesma na Avenida P., produzindo desencontros, engolindo paixões e de todos nós embaralhando o Destino.

10.10.2007

Sobre Tchekhov


Enquanto termino a redação de mais dois novos textos (e isso não é blefe) coloco aqui um texto que li hoje na Folha Online sobre Tchekhov. Vou fuçar mais tarde nos sebos do Centro em busca do texto em questão - que parece interessantíssimo, por sinal.

Para assinantes UOL , o link da matéria está aqui


Ninguém é inocente
"Platonov", peça escrita por Tchekhov em 1878, já anunciava a desilusão dos dias atuais
TCHEKHOV escreveu "Platonov" (ou "Peça sem Nome", como é conhecida no repertório do teatro Mali, de São Petersburgo, dirigido por Lev Dodin) em 1878, quando tinha apenas 18 anos e estudava no liceu de Taganrog, no sul da Rússia. Foi deixado para trás pela família (que partiu para Moscou depois da falência do pai), para terminar os estudos. Numa carta datada do mesmo ano, o irmão mais velho critica o texto e se refere a ele por um neologismo (possivelmente o título original da peça) que quer dizer algo como "a ausência dos pais". Tudo em "Platonov" se resume à perda e ao fracasso. O manuscrito, dedicado à atriz Maria Nicoláievna Ermolova, e por ela rejeitado, só foi descoberto em 1920. Publicado três anos mais tarde, o texto foi considerado impróprio para a encenação, por ser incoerente, caótico e, sobretudo, muito longo.

Ainda hoje, no teatro Mali, quando as luzes se acendem, no intervalo, e o público ovaciona os atores ausentes do palco, depois de quase duas horas de espetáculo, alguns espectadores desavisados (além dos que simplesmente não podem suportar mais duas horas de uma peça que gira em torno do vazio) se levantam, pegam seus casacos e vão embora, intrigados talvez com a idiossincrasia (ou a modernidade) de intérpretes que não voltam para agradecer os aplausos da platéia.

À parte alguns efeitos cênicos (o palco está separado do público por uma piscina, que representa um rio, diante de uma propriedade rural, e na qual os atores se jogam, vestidos ou não, ao longo da peça), não há nada especialmente moderno ou inovador na montagem de Lev Dodin. Ao contrário, a encenação e a interpretação têm um ar ligeiramente ultrapassado, que alguns espectadores mais radicais podem considerar tolo ou insípido, mas que garante grande parte do charme e da nostalgia. A montagem, criada há dez anos, hoje faz parte do repertório do teatro Mali. É apresentada em alternância com a mais recente encenação do diretor, a adaptação do romance caudaloso de Vassili Grossman, "Vida e Destino", por muito tempo proibido pelo regime soviético.

Sendo um texto de juventude, muito do que aparece em germe em "Platonov" anuncia o que voltará mais tarde, nas peças maduras de Tchekhov, como uma das características mais marcantes e inovadoras do dramaturgo. "A Gaivota" foi vaiada na estréia, no teatro Alexandrinski, de São Petersburgo, porque nada acontecia em cena. "Platonov" ainda se ergue sobre um modelo de melodrama. Mas um melodrama no qual a ação revela apenas a incoerência e o vazio de tudo. Se acontece alguma coisa, é só para tornar ainda mais ostensiva a ausência de acontecimentos, o tédio e a derrocada de todas as promessas.

À peça não falta apenas um título, mas um personagem principal. Mais do que herói ou anti-herói, Platonov é um agente catalisador da falta que está no ar, revelador de uma época de incertezas e desilusões. É o herói onde já não pode haver nenhum. Ao mesmo tempo, a peça não pode existir sem ele. Começa pouco antes de ele entrar em cena (reaparece casado, depois de anos, para rever seus amores e amizades de juventude, na propriedade rural de uma senhora falida) e termina com a sua morte. Todos amam Platonov (ou a lembrança do que ele foi na juventude) e ele ama todos, mas seu fracasso (o jovem rebelde romântico foi reduzido a professor rural, casado com a mais desinteressante das mulheres) limita sua ação à sedução vazia e ao engano. Na falta das velhas certezas e promessas, convertidas em ilusão, todos querem se deixar seduzir e enganar por Platonov, pelo sonho que um dia ele representou e do qual agora não é mais do que uma paródia. É como se a morte conspirasse por trás de um mundo de exaltações, desejos e alegrias fugazes.

É claro que esse tempo de desilusão pode também ser o nosso. Mas há um aspecto especificamente russo. Uma jovem que encontrei em São Petersburgo, e que já tinha descido aos infernos nos seus 30 e poucos anos, me corrigiu quando falei de um mundo terrível: "O mundo não é terrível. É o que é. Já está na hora de você perder um pouco da sua inocência". Realmente, basta assistir ao filme mais recente de Sokurov ("Alexandra", exibido no Festival de Cannes e atualmente em cartaz em Paris, sobre uma avó que vai visitar o neto, soldado russo na Tchetchênia) para entender que, talvez em qualquer lugar, mas na Rússia com certeza, não há inocência possível. E esse é um mundo que Tchekhov já anunciava na sua primeira peça "incoerente e caótica" de juventude.
(Bernardo Carvalho)

10.09.2007

Poesia

DE PROFUNDIS

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom;ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer

Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.

Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.

(TRAKL, Georg. De Profundis. Tradução de Claudia Cavalcanti, Iluminuras, São Paulo, 1994.)

Leia mais sobre Georg Trakl.