11.04.2006

Justificativa

R. estava no banheiro de seu apartamento e escovava os dentes com violência. Eram movimentos rápidos pelos caninos, pelos médios e molares, movimentos furiosos, urgentes; ele cuspia, enchia a boca com água, um bochecho veloz, um pouco mais de água, novas escovadas diretas, vigorosas; os movimentos subiam e desciam, a mão já estava cansada, um olhar para o espelho, mãos apoiadas na velha pia.

- Ainda não.

10.16.2006

O Aniversário

Lembro muito bem. Eu estava na sala quando a campainha tocou e ele foi atendido pelo meu pai. Sempre sorridente, sempre pronto para todas as brincadeiras, foi entrando na sala com aquele jeito bonachão típico das pessoas superficiais e acostumadas aos prazeres simples. Pastel com cana nas feiras dominicais, conversas sobre carros, aventuras amorosas com as meninas da rua de baixo: assim ele foi forjado, sob a tutela de divertimentos rudes, e assim ele vivia feliz aqueles novos dias, dias de entrega ao trabalho e aos cuidados com o filho recém-chegado. Vez ou outra, amigos de infância que éramos, ele escapava dos olhares ciumentos da mulher e me convidava para um passeio onde celebrávamos aquela amizade nascida anos atrás; queria liberdade, dizia, gostava e respeitava a esposa mas também queria sentir os ventos frescos da aventura soprando em seu rosto engraçado de 20 e poucos anos. Então eu saía com ele ouvindo suas histórias e novidades, ouvindo suas limitadas visões de mundo marcadas pela mesquinhez típica daqueles que nunca passaram por grandes dificuldades na vida; e como muitos iguais a ele, dedicava-se aos caminhos do vício da cocaína, a sedutora das sedutoras, isso já há anos consecutivos mas sem nunca passar por períodos críticos onde tudo parecia se transformar em agonia e caos. Posso dizer que conseguia manter-se ativo mesmo com o vício; tínhamos alguns atritos relacionados a isso, e mesmo assim éramos muito amigos, guardando em segredo um sentimento recíproco onde misturava-se a admiração e a inveja.

9.26.2006

Diálogo

- Espero que você realmente tenha algo importante pra me dizer...

- Eu ainda não abri minha boca... apenas deixe seus julgamentos para depois, me faça este favor.

- Sim, ok, mas veja, é difícil, quantos anos, diga-me, faz anos que você faz isso comigo?

- Não, não faz tanto tempo assim.

- Eu pensei que fossemos amigos.

- E somos.

- Não vejo como isso é possível. Até onde sei, entre amigos impera a sinceridade.

- Ora, você nem ao menos demonstrava um real interesse por ela. Eu via você sempre animado, saindo, bebendo e chegando cambaleante todas as noites. O telefone sempre tocava a noite, eram vozes femininas, eram casos, eram desejos... o que você queria que eu pensasse? Que tudo era brincadeira? Que no fundo você gostava dela e nutria esperanças de amor, de algo sério? Ora vamos. Nem o mais crente dos homens, o mais crédulo ser deste universo, ao sentir o aroma etílico de suas roupas, nem mesmo este ser acreditaria que em seu coração existia algum sentimento por ela.

- Sim, suas palavras são interessantes, e até penso agora que minhas atitudes estão bem distantes do usual de um coração apaixonado. Minhas ações, reprováveis, nojentas, viciosas, não importa, elas todas agora deixam de ser o que eram e tornam-se, em sua retórica, apenas argumentos. Sim, argumentos, álibis para que você encontre uma justificativa para sua traição. Ora vejamos, não é exatamente isso? Todos os meus passos são apenas elementos que justificam os seus passos. Todas as minhas faltas tornam a sua falta mais amena. No fndo, o que todos buscam é isso: erros nos outros para que os próprios se tornem mais suportáveis. Chamam a isso de aprendizado. Eu prefiro apenas enxergar um ritual humano tão tolo como qualquer outro - o que não o torna menos repugnante e, para mim, doloroso. Pois por mais que você tente não acreditar e busque em cada ação minha um indício de desprendimento, eu realmente gostava dela. Era um sentimento sincero, cheio de expectativas, não digo que existia amor, mas era algo bom e que me confortou até. Tudo o mais, as aventuras, os casos furtivos, o que era tudo aquilo? Apenas um passa-tempo prazeroso, e nem sequer uma gota de sentimento, de doce poesia.

- Talvez eu tenha cruzado uma linha que não deveria... mas você é como eu, um homem, e que deve responder a certas situações como um homem. E assim como eu, você sabe que o desejo fervilha, que os caprichos de Vênus curvam até as estátuas, e não há como ser indiferente aos caprichos da Natureza. Você sabe o quão ela é desejável; e uma mulher assim, você acha mesmo justo que seja dádiva de um homem só?

- Eu já sei aonde este discurso libertino pretende me levar, seu canalha. A Natureza escraviza a tudo com suas vontades e é essa escravidão indecente que torna tudo tão imundo nesta agonia de vida. Sim, pois é a Natureza que faz sucumbir até mesmo paredes de grosso metal. Veja como estamos agora. A confiança, o trabalho de anos de construção, agora é apenas um cisco, um empecialho, um nada frente ao Universo. Desigualdade absoluta, entre nós e a Natureza! Graças a ela, nada vale, nada importa, tudo é vão, falido e futil. Reina absoluto o acaso, o caos, o capricho, o desejo, a voracidade e a violência de uma Vontade terrível, Vontade de rosto multiforme e de astúcia que faria inveja a Ulisses. E agora, vejo você em minha frente, e não há sinceridade alguma em suas palavras (ou talvez haja justamente sinceridade em demasia), há apenas acasos, suposições e, como sempre, justificativas. Ah, viveríamos mais se não tivéssemos que nos justificar a cada minuto. Agora, ela é sua, fique com ela, desfrute-a como quiser, pois a mim, apenas me recolho desta história; com mágoas, sim, mas talvez mais sereno e menos sorridente para futuras brincadeiras.

9.18.2006

Viagens


















São longas viagens de ônibus entre a rotina marmórea do trabalho até os sufocos reclusos de minha casa. Um trajeto que, em dias sem trânsito, não demoraria meros vinte minutos, transforma-se em uma epopéia que se arrasta vagarosa, verso após verso, por quase uma hora.

A imagem é equivocada. Epopéias têm heroísmo, vigor, um halo que sobrevive aos séculos – mesmo que nosso intenso gosto moderno boceje sobre os feitos de um Aquiles. O meu trajeto diário é mais modesto. Ele só durará a exata medida da paciência do chefe em tolerar meus atrasos. Quando ele cansar, a epopéia termina. Sem brilho, sem catarse ou reconhecimentos banhados em sangue. Apenas um carimbo na carteira, filas no RH e papeladas junto ao INSS.

Mas ainda é cedo para isso acontecer. É até preferível que eu demore um pouco mais nesse trabalho. Ficar em casa seria muito pior. Um casamento em crise somou-se a marretadas de uma nova obra. Um prédio luxuoso nasce ao lado, e a melodia das batidas quase marciais dá o tom para discussões infinitas, cobranças e lágrimas de mulher. Eu seguro as minhas pensando o quão horrível é esse barulho, o quão detestável é viver em apartamentos e o quanto seria agradável ter futuras vizinhas belas, disponíveis e que não chorem ao descobrirem que os romances acabam.

Nestas viagens diárias de ônibus, por vezes a Fortuna me brinda com um gracejo sincero e me concede um lugar para sentar e observar o mundo através da janela. A paisagem obviamente não é agradável e quase sempre a vontade que tenho é de simplesmente quebrar o vidro com murros de dor. Mas de qualquer forma é uma janela que emoldura uma paisagem, e mesmo a decadência tem seu charme. E procuro com olhos ávidos um sorriso, um gesto, uma frase pichada no sétimo andar, qualquer coisa que me faça pensar e preencher o trajeto, talvez ali encontrar um motivo para uma nova poesia ou simplesmente um comentário sarcástico; e sempre encontro um curioso elemento perdido no oceano de pessoas (uma briga entre casais, um velho andando assustado entre os carros, mendigos resmungando e rindo do tolo espetáculo do rush) que me faz pensar que eu passei em um ônibus lotado no exato momento em que aquilo acontecia, e que ninguém mais viu aquilo, e que talvez Deus quisesse que eu visse aquele acontecimento, e que nada mais era que um sinal da cólera divina brincando comigo, divertindo-se às custas do meu pensamento inútil sobre a inutilidade geral das coisas humanas.

Desisto de olhar pela janela e começo a prestar atenção nas vozes das pessoas. Existe algo de estúpido nas conversas de ônibus que me cativa ao infinito. Não paguei as contas ainda, Esperei o resultado da loto e nada, Você viu o jogo ontem, Minha mãe doente, Está um dia frio, Não entendo, Espera que em casa eu te ligo, Dá licença por favor, Um amigo me disse que, Tô cansada, Pode sentar eu desço no próximo - névoas de vozes, intensas verbalizações de futilidades vazias, cada qual brigando pela universalidade de suas queixas, como se o mundo dependesse daquelas dores, daqueles problemas. E após algumas viagens sempre no ônibus do mesmo horário, você reconhece a oratória típica de cada um dos falantes. O prolixo, o astuto, o cínico, o vaidoso, o mentiroso. Você forma tipos, você constrói histórias detalhadas para cada um deles, os amigos que ele visita nos dias de folga, os programas prediletos da TV, se gosta do trabalho que faz... Sim, é pura perda de tempo. Um exercício fútil de falsa criatividade. Mas os romanos escreveram elegias inventando uma vida de prazeres que não existiu e nunca foram criticados por isso. Eu estou apenas brincando com meus pensamentos, eles nunca serão escritos, eles nunca serão publicados; e da mesma forma que surgem, eu os amputo com volúpia e os deixo morrer cruentos assim que avisto na moldura da janela um novo motivo de reflexão.

Mas definitivamente não sou um homem visual. Prefiro sons a cores - o que me torna um desadaptado irremediável ao mundo de hoje. E volto com ouvidos agudos a buscar outras conversas, mais apetitosas que as anteriores, e ver se descubro novas deploráveis formas de existência. Isso me fez desenvolver uma opinião; e apesar do inegável egoísmo que a acompanha (e não é cada opinião particular a representação de um egoísmo?) ela me parece muito verossímil: as pessoas mais falantes pertencem a uma escala inferior. A fala não é expressão do raciocínio - ela atrapalha a organização dos pensamentos. O ordenamento saudável de relações entre neurônios fica comprometido quando abrimos a boca. No grande laboratório das ciências humanas que são as grandes cidades, eu, cientista social autodidata, descobri que o grande mal dos homens era, justamente, falar – e desde então desejo um universo de línguas decepadas e dislexias crônicas.

Um universo de homens mudos! Ah, sair na rua sem precisar dar um bom dia a quem quer que seja! Simplesmente empurrar as pessoas, ao invés de pedir licença! Apenas entrar em uma loja e comprar, sem ouvir torturantes ladainhas dos vendedores! Com dois olhares encontrar a mulher de uma noite sem precisar saber sequer o nome dela, e desmanchar-se num gozo frenético sem ouvir o pedido de um desnecessário segundo encontro! Teríamos menos problemas com certeza. Uma vida com mais tempo para gastarmos com as coisas certas. Eu não temeria chegar em casa todo dia, pois não haveria nenhuma discussão, simplesmente sentaríamos um ao lado do outro e os beijos saudosos seriam seguidos por ávidas carícias. Mas não: o universo é povoado de homens que falam, que insistem em falar nos ônibus lotados, nas casas, nas ruas, em todo lugar; foi graças ao dom da fala que hoje, ao chegar em casa, eu terei mais uma conversa sem fim, que não levará a parte alguma a não ser a gritos, a ameaças e a amontoados de ódio; foi pela fala que um romance começou, e é pela fala que ele se arrasta em um chão de cacos de vidro e faz com que eu prefira ficar eternamente nesse ônibus cheio, que fede a suor e a hálito de dentes mal escovados, ouvindo conversas que não me dizem respeito e vendo pela janela uma vida que não mais me emociona.

Coisas

Este pequeno trecho de "O Ano da Morte de Ricardo Reis", do Saramago, diz mais coisas sobre espelhos... e talvez as palavras do escritor português ajudem a aumentar a significação do espelho no conto "Sílvio". Sim, eu tenho uma fixação pelo tema, e sei que como tantas outras fixações essa não vai morrer assim tão cedo.

"O espelho, este e todos, porque sempre devolve uma aparência, está protegido contra o homem, diante dele não somos mais que estarmos, ou termos estado, como alguém que antes de partir para a guerra de mil novecentos e caatorze se admirou no uniforme que vestia, mais do que a si mesmo se olhou, sem saber que neste espelho não tornará a olhar-se, também é isto a vaidade, o que não tem duração. Assim é o espelho, suporta, mas, podendo ser, rejeita. Ricardo Reis desviou os olhos, muda de lugar, vai, rejeitador ele, ou rejeitado, virar-lhe as costas. Porventura rejeitador porque espelho também."




9.14.2006

Sílvio

Quando mobiliou este apartamento Sílvio não imaginou cores, nem formas, nem nada. Agiu por instinto. Amontoou em caixas seus livros, desmontou o computador, empilhou os cd´s e chamou um amigo para ajudá-lo na mudança. Estava deixando a casa paterna depois de ** anos, rompendo o cordão umbilical de uma vez por todas. Sabia que teria sono e comprou uma cama; lembrou-se das camisetas e calças e trouxe um guarda-roupas; às vezes sentia fome e achou melhor também ter uma geladeira (foi por pouco que não comprou um fogão. Não se trata de esquecimento, pois imaginou que poderia comer tudo frio e viver bem; contudo lembrou-se que gostava muito de pão com mussarela derretida. Sem um fogão estaria privado de seu prato preferido e achou melhor ter um, mesmo a contragosto). Outras pessoas estariam assustadas frente aos desafios de morar sozinho; Sílvio, porém, era um pleno nirvana. Não lhe assustavam as contas, as horas intermináveis em companhia de paredes mudas, a rotina de acordar sozinho e ir dormir sozinho. Sílvio não se importava com nada disso. O seu único tormento era que, custasse quanto custasse, teria que ter um grande espelho e só mudaria para seu novo lar com o espelho devidamente instalado. Pensava que nada pode ser mais incômodo do que uma casa sem espelhos.

Esta idéia surge para nós como um comportamento excêntrico de Sílvio. Podemos até considerá-la ridícula. Mas não é um simples acesso consumista de um jovem que se vê na excitante aventura de morar sozinho e quer mobiliar sua nova casa com ares arrojados. Podemos ver que ele não estava em nenhum momento preocupado com isso. Achou supérfluo até a aquisição de um fogão. E nada pode ser mais usual do que um espelho. Nada há de inovador neles, nem num Sílvio que usava calça jeans velha e assistia corridas de Fórmula 1 pela televisão. Explicar o tormento de Sílvio chamando-o de excêntrico é um erro. Este curioso caso de amor tem outra natureza e - mesmo turvado por muitas nuvens - um olhar no passado talvez possa nos aproximar das razões secretas que o alimentam.

Quando criança Sílvio preferia ficar correndo seus carrinhos pela superfície do espelho do banheiro a misturar-se com outros meninos. Claro que muitíssimas vezes o víamos junto aos demais, correndo como menino, gritando como menino, suando e rindo aos montes como qualquer outro menino. A maior parte do tempo era gasta justamente nessas brincadeiras com seus amiguinhos; como hoje, nada os diferenciava dos demais. Não percebemos absolutamente nenhuma característica bizarra naquele Sílvio correndo atrás de uma bola em companhia de outros meninos. Era feliz quando assim brincava e o era completamente. Mas é impossível negar que suas horas prediletas passavam ali, na frente do espelho.

Os pais observavam intrigados a estranha mania do filhinho sem reprovação nem censura. Não os culpemos. Foram ótimos para Sílvio em tudo. Educaram-no com presteza, amáveis e enérgicos na medida correta. Preferiam ignorar a insólita atitude tanto quanto possível, pois não tinham queixas a respeito do filho, que já passava dos doze anos e crescia como um menino exemplar. Contudo, a estranha paixão não atenuara. Largara os carrinhos e, agora, ficava longas horas se observando no espelho em seu quarto. Se alguém entrasse nestes momentos de contemplação, levantava sem emitir sequer um som e saía. Nunca se irritou em ser interrompido nas suas autocontemplações, mas era claro que ficava aborrecido. Às vezes comia em frente ao espelho também (mas só quando tinha certeza de que não seria interrompido). A mãe um dia sugeriu ao pai que procurassem “alguém entendido” para conversar, expor o caso, saber se era saudável um garoto ficar tanto tempo frente ao espelho. O pai lembrou das notas impecáveis de Sílvio, dos bons amigos que tinha e que ao contrário de muitos meninos da mesma idade, nunca se metera em briga alguma. “É um garoto normal, mas tem lá suas manias, como todo mundo” disse, e gesticulou como dando o assunto por encerrado. Não entendia a preocupação da esposa. Ela ficou mais tranqüila. Sílvio era nota 8,5 em Matemática e lembrar disso a encheu de orgulho. Uma colega de classe de Sílvio era nota 9,5 e foi apontada como destaque na última reunião de pais; esta nova lembrança nem por isso tirou o brilho da nota de seu filhinho. Aos seus olhos não poderia haver aluno melhor em Matemática do que Sílvio. Imaginava um futuro brilhante para o filho, emocionava-se com suas conquistas, um mundo formidável o aguardava. Isso era importante, ter boas notas, falava para si mesma. Os espelhos não importam. Nunca mais tocou no assunto com o marido e nem consigo mesma.

É importante sabermos destes detalhes fugazes da vida de Sílvio. Eles nos mostram que não estamos tratando de um celerado. Em geral causava nas pessoas a impressão de ser um jovem calmo e calado. Alguns julgavam-no sombrio – o que é até comum em pessoas muito quietas e tímidas – mas nunca chamaram Sílvio de “esquisito”. Tinha (poucos) amigos e namorou também. Bebeu nos bares, assistiu aos shows, foi aos cinemas. Uma vida simples, sem mágoas ou ódios. As namoradas gostavam dos ombros largos de Sílvio assim como elogiavam suas pernas fortes. No sexo também teve felizes momentos com suas amantes. Elas apenas queixavam-se de que Sílvio copulava olhando para o espelho o tempo todo. No início a garota julgava ser uma fantasia, mas era incômodo depois de algumas vezes. Queria sentir mais a presença dele e não apenas a de seu membro. Pedia então para que Sílvio a olhasse durante o ato. Ele dizia que era impossível, sem mais nenhuma explicação. No geral esta conversa era seguida de uma discussão entre o casal onde a alma de Sílvio surgia como um mistério impenetrável. Sentia-se ofendido com facilidade e em resposta dava o silêncio. O namoro terminava passados alguns dias. O mais duradouro deles durara três meses. A seu modo, Sílvio lamentava o rompimento e por algumas dessas garotas chegou a sentir verdadeira afeição. Consolava-se em seu quarto olhando para o espelho e tocando-o por vezes, em estado de profunda reflexão.

E agora, no novo lar pobremente mobiliado, Sílvio sentia-se um adulto de verdade. Agora tudo estava em suas mãos. Se chegasse atrasado ao trabalho, se deixasse a luz acesa ao sair de casa, se a comida queimasse etc não existia outro culpado a não ser ele próprio. Morar sozinho implica não só a mudança de endereço (do lar paterno para o apartamento pequeno no caso de Sílvio), mas também a de comportamento e, conseqüentemente, elos mais resistentes nos aprisionando à vida e suas armadilhas. Ganha-se em troca uma liberdade de escopo mais amplo, as delícias de não ter horário para chegar em casa, de não prestar contas a mais ninguém, de deixar a louça suja na pia, cada noite trazer uma garota diferente para trepar no sofá, ouvir a música que quiser, se vestir quando quiser e quantos mais quando-quiser escolhermos colocar aqui. Abre-se um leque de possibilidades, as escolhas se multiplicam, a vida parece borbulhar. Sílvio coloca o espelho enorme na parede em frente aos pés de sua cama, chega do trabalho e fica ali horas, observando-se, estático. Parece esperar que algo aconteça do outro lado, parece estar espionando aquele estranho mundo invertido, procurando um sinal ou algo semelhante, tal como um louco – é o que a primeira vista parece e, sem dúvida, existe muita razão para acreditarmos nisso. Mas é uma opinião obtusa. Precisamos ir além, fazer justiça a este rapaz e seu hábito exótico, ver através de seus olhos e escutar os ecos do seu coração (tarefa difícil, sendo Sílvio tão tímido). O homem naquele quarto pobremente mobiliado que se observa no espelho não é um Narciso enamorado pela sua beleza, envaidecido de si mesmo, enaltecendo a si mesmo. Na verdade o que ele buscava durante toda a vida e que finalmente agora conseguia era privacidade. Um lugar para ficar a sós consigo, o seu próprio habitat, o seu reino feito a sua imagem e semelhança. A imagem refletida garantia-lhe este porto seguro, a calmaria de um exílio voluntário do caos das relações humanas. Já dissemos que Sílvio tinha poucos amigos e achava cansativo ter relacionamentos. O humano lhe trazia desconforto e em frente ao espelho ele se isolava ao mesmo tempo da humanidade dos outros e de sua própria humanidade. Mergulhado na sua privacidade, agora total e livre de interrupções, por horas em frente ao espelho, Sílvio protegido e deliciando-se com este sentimento, a sós consigo mesmo, livre de sua humanidade, agora esquecida, apenas um reflexo disforme, sequer uma lembrança, a vida borbulhando naquele apartamento, Sílvio estático em frente ao espelho.

9.12.2006

Telefone























O telefone tocou. Sabia: naquele horário ninguém a não ser ela. Somente ela. Julgava que até o som da campainha era diferente (obviamente não acreditaremos nisso, mas o fato é curioso e convém assinalar). Teve cansaço enorme, o monofone ganhava peso infinito, esforço demasiado para mim pensava.

É o segundo toque e, agora, ele tem certeza que é ela (o som da campainha denuncia). Mais mil toneladas somam-se a massa de um telefone multifreqüencial com capacidade de armazenar até dez números para discagem direta, basta pressionar um botão e pronto, a eletrônica faz maravilhas, puta coisa bacana (claro que ele nunca usou esta facilidade). Terceiro toque: talvez ela canse e desligue, talvez sinta que não quero atender, talvez isso, talvez aquilo, talvez... Suposições. Conjecturas. Um telefone pesado e um homem cheio de receios, uma mulher tentando falar com ele – não há eletrônica que os salve.

É necessário fazer algo, mas o quê? Ele poderia simplesmente retirar o fone da tomada e não pensar mais no assunto. Outra opção seria baixar o volume da campainha, aquele som horrível denunciando a existência dela. Até parece que o único som existente é o da campainha do telefone: não há mais sirenes de polícia, não há mais música, repórteres mudos na televisão, carros deslizando no asfalto como se fosse gelo, portas batendo e você nem percebe que um copo caiu no chão e virou caquinhos diminutos de vidro moído – só a campainha do telefone que toca, a campainha fazendo o som dela. Fora isso o silêncio é universal, faminto, impiedoso. Mas e se fosse outra pessoa? Todo esse consumir-se poderia ser em vão. Sim, bem poderia ser algum daqueles amigos que ligam sempre na hora errada. Começou a imaginar uma lista de prováveis nomes. Não pode deixar de sentir-se ridículo. Um homem de vinte e ... anos com medo de atender um telefone. Não havia dificuldade alguma, era só levantar o monofone e dizer alô. Se fosse algum amigo falaria sobre futilidades e após uns quinze minutos de conversa sentiria-se bem. Mas e se fosse realmente ela, como os indícios denunciam (a hora, o som da campainha)? Tudo tão característico. Impossível ser outra pessoa. A dúvida esfumaça-se, a certeza é total, ela grita e o grito é o som do quarto toque da campainha.

Fica gelado de medo. Puro e virginal medo. Criaturas horrendas escondidas debaixo da cama, no escuro, nas teclas engorduradas de um telefone multifreqüencial. Imagina-se atendendo o telefone: faces rubras, a voz rachando na garganta seca, vomitaria um alô qualquer, cheio de farpas e remendos, já visualizando o tédio da conversa.

Alô.

Oi... demorou pra atender... atrapalho, né?

Não, imagina, que isso, pode falar (cordialidade nunca faltou entre eles e assim era ministrada, em doses teatrais).

Apenas queria ouvir sua voz. Saber como você está. Os dias estão tristes. 

É, os meus também...

Sabia que se atendesse teria uma conversa como essa e nada, absolutamente nada, ficaria resolvido completamente. Alimentariam suas mágoas, vampirizariam-se, quem sabe até relembrar dias felizes - fotos bonitas sempre consolam. O telefone monolítico aumentaria de peso, tanta vontade de desligar, adeus, me esqueça, tome três doses de realidade por dia e vá embora, nós não somos mais um só, nós acabamos, passar bem, o próximo por favor: era comum ele imaginar diálogos como estes e prometer a si mesmo falar tudo – mesmo este “tudo” representando uma verdade que ele não queria admitir. Preparava então o discurso final começando com frieza e calculismo, terminando na aspereza e pouca simpatia; a insultava, fazia de meros flashes cotidianos epopéias de rancor; treinava gestos e pausas no discurso para garantir maior dramaticidade; incubava a guerrilha por dias a fio, compunha o texto nos detalhes; mas antes que o levante verborrágico se efetivasse, seu lado protetor eclipsava tais ímpetos, ficava manso, e pensava em poesia.

Quinto toque. Se conversas com ela não representavam a mínima novidade, os adornos feitos com retalhos do cotidiano o aborreciam muito mais (não consigo viver sem você, hoje almocei com o pessoal do trabalho, estou triste e só penso em seus beijos, assistiu ao jornal das oito, volte pra mim eu te amo tanto, greve de ônibus amanhã). Então fingia estar ouvindo: levava a alma para longe daqueles lamentos, respondendo com um sim ou não de acordo com a entonação da voz dela. Agia assim pois temia machucá-la, mas também não era capaz de dar-lhe atenção: já julgava fazer muito emprestando o ouvido e mais do que isso não suportaria. Poderia facilmente fazer aquela mulher muito feliz, a conhecia demais, até sabia os efeitos que cada palavra causava naquele espírito. Pensava neste poder com orgulho e desgosto: tinha nas mãos uma mulher sem dúvida especial, mas da qual já estava cansado. E não tinha forças para, simplesmente, dizer a verdade até o fim – seja lá o que isso significasse. Sempre a enxergou como um vasinho frágil que deveria ser cercado de cuidados e colherinhas na boca. Cobria-a de dengos e meiguices porque não conseguia imaginar outra forma de amar aquele passarinho; quis vê-la alçar vôo, ganhar os céus e, com sorrisos gordos, ir embora para longe dele com suas penugens já bem formadas. Mas só crescia a vontade do passarinho em ficar no ninho, pedindo mais brinquedos e doces que ele não queria mais dar. Então restou ficar ouvindo a campainha tocar, mais confuso do que poderia perceber, procurando uma explicação caída no chão da sua alma em fragmentos.

Initium


"(E a chuva cai...) Meu Deus! Que insuportável Mundo!
Vivalma! (O vento geme...) O que farão os mais?
Senhor! A Vida não é um rápido segundo:
Que longas horas estas horas! Que profundo
Spleen mortal o destas noites imortais!"
(Antônio Nobre, poeta português)

Para um início, penso, os versos de A. Nobre são exemplares e darão a tônica do que estará por vir. As minhas conversas cá comigo, antes mudas tentativas de comunicação, agora estarão aqui, plenas, servidas aos olhos de algum interessado.

Um exercício futil, sem dúvida. Um maneirismo dos mais estéticos, uma brincadeira com ar de literatura. Somente isso, para muitos. Para mim, é mais uma estratégia de fuga, um esconderijo - e ele é delicioso.

A peridiocidade de meus escritos aqui será tão regular quanto às tempestades que devastam minha vida vez por outra - em outras palavras, a minha presença aqui obedecerá ao signo do Caos. Só sei escrever tomado pela emoção. Isso certamente me torna um escritor menor. A almejada arte, em seu sentido antigo, nunca foi minha amiga fiel.