9.18.2006

Viagens


















São longas viagens de ônibus entre a rotina marmórea do trabalho até os sufocos reclusos de minha casa. Um trajeto que, em dias sem trânsito, não demoraria meros vinte minutos, transforma-se em uma epopéia que se arrasta vagarosa, verso após verso, por quase uma hora.

A imagem é equivocada. Epopéias têm heroísmo, vigor, um halo que sobrevive aos séculos – mesmo que nosso intenso gosto moderno boceje sobre os feitos de um Aquiles. O meu trajeto diário é mais modesto. Ele só durará a exata medida da paciência do chefe em tolerar meus atrasos. Quando ele cansar, a epopéia termina. Sem brilho, sem catarse ou reconhecimentos banhados em sangue. Apenas um carimbo na carteira, filas no RH e papeladas junto ao INSS.

Mas ainda é cedo para isso acontecer. É até preferível que eu demore um pouco mais nesse trabalho. Ficar em casa seria muito pior. Um casamento em crise somou-se a marretadas de uma nova obra. Um prédio luxuoso nasce ao lado, e a melodia das batidas quase marciais dá o tom para discussões infinitas, cobranças e lágrimas de mulher. Eu seguro as minhas pensando o quão horrível é esse barulho, o quão detestável é viver em apartamentos e o quanto seria agradável ter futuras vizinhas belas, disponíveis e que não chorem ao descobrirem que os romances acabam.

Nestas viagens diárias de ônibus, por vezes a Fortuna me brinda com um gracejo sincero e me concede um lugar para sentar e observar o mundo através da janela. A paisagem obviamente não é agradável e quase sempre a vontade que tenho é de simplesmente quebrar o vidro com murros de dor. Mas de qualquer forma é uma janela que emoldura uma paisagem, e mesmo a decadência tem seu charme. E procuro com olhos ávidos um sorriso, um gesto, uma frase pichada no sétimo andar, qualquer coisa que me faça pensar e preencher o trajeto, talvez ali encontrar um motivo para uma nova poesia ou simplesmente um comentário sarcástico; e sempre encontro um curioso elemento perdido no oceano de pessoas (uma briga entre casais, um velho andando assustado entre os carros, mendigos resmungando e rindo do tolo espetáculo do rush) que me faz pensar que eu passei em um ônibus lotado no exato momento em que aquilo acontecia, e que ninguém mais viu aquilo, e que talvez Deus quisesse que eu visse aquele acontecimento, e que nada mais era que um sinal da cólera divina brincando comigo, divertindo-se às custas do meu pensamento inútil sobre a inutilidade geral das coisas humanas.

Desisto de olhar pela janela e começo a prestar atenção nas vozes das pessoas. Existe algo de estúpido nas conversas de ônibus que me cativa ao infinito. Não paguei as contas ainda, Esperei o resultado da loto e nada, Você viu o jogo ontem, Minha mãe doente, Está um dia frio, Não entendo, Espera que em casa eu te ligo, Dá licença por favor, Um amigo me disse que, Tô cansada, Pode sentar eu desço no próximo - névoas de vozes, intensas verbalizações de futilidades vazias, cada qual brigando pela universalidade de suas queixas, como se o mundo dependesse daquelas dores, daqueles problemas. E após algumas viagens sempre no ônibus do mesmo horário, você reconhece a oratória típica de cada um dos falantes. O prolixo, o astuto, o cínico, o vaidoso, o mentiroso. Você forma tipos, você constrói histórias detalhadas para cada um deles, os amigos que ele visita nos dias de folga, os programas prediletos da TV, se gosta do trabalho que faz... Sim, é pura perda de tempo. Um exercício fútil de falsa criatividade. Mas os romanos escreveram elegias inventando uma vida de prazeres que não existiu e nunca foram criticados por isso. Eu estou apenas brincando com meus pensamentos, eles nunca serão escritos, eles nunca serão publicados; e da mesma forma que surgem, eu os amputo com volúpia e os deixo morrer cruentos assim que avisto na moldura da janela um novo motivo de reflexão.

Mas definitivamente não sou um homem visual. Prefiro sons a cores - o que me torna um desadaptado irremediável ao mundo de hoje. E volto com ouvidos agudos a buscar outras conversas, mais apetitosas que as anteriores, e ver se descubro novas deploráveis formas de existência. Isso me fez desenvolver uma opinião; e apesar do inegável egoísmo que a acompanha (e não é cada opinião particular a representação de um egoísmo?) ela me parece muito verossímil: as pessoas mais falantes pertencem a uma escala inferior. A fala não é expressão do raciocínio - ela atrapalha a organização dos pensamentos. O ordenamento saudável de relações entre neurônios fica comprometido quando abrimos a boca. No grande laboratório das ciências humanas que são as grandes cidades, eu, cientista social autodidata, descobri que o grande mal dos homens era, justamente, falar – e desde então desejo um universo de línguas decepadas e dislexias crônicas.

Um universo de homens mudos! Ah, sair na rua sem precisar dar um bom dia a quem quer que seja! Simplesmente empurrar as pessoas, ao invés de pedir licença! Apenas entrar em uma loja e comprar, sem ouvir torturantes ladainhas dos vendedores! Com dois olhares encontrar a mulher de uma noite sem precisar saber sequer o nome dela, e desmanchar-se num gozo frenético sem ouvir o pedido de um desnecessário segundo encontro! Teríamos menos problemas com certeza. Uma vida com mais tempo para gastarmos com as coisas certas. Eu não temeria chegar em casa todo dia, pois não haveria nenhuma discussão, simplesmente sentaríamos um ao lado do outro e os beijos saudosos seriam seguidos por ávidas carícias. Mas não: o universo é povoado de homens que falam, que insistem em falar nos ônibus lotados, nas casas, nas ruas, em todo lugar; foi graças ao dom da fala que hoje, ao chegar em casa, eu terei mais uma conversa sem fim, que não levará a parte alguma a não ser a gritos, a ameaças e a amontoados de ódio; foi pela fala que um romance começou, e é pela fala que ele se arrasta em um chão de cacos de vidro e faz com que eu prefira ficar eternamente nesse ônibus cheio, que fede a suor e a hálito de dentes mal escovados, ouvindo conversas que não me dizem respeito e vendo pela janela uma vida que não mais me emociona.

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