6.30.2015

A inveja dos deuses



Abrir-se demais ao outro é visto, por muitos, como um sinal de fraqueza. Parece que é preciso guardar no mais secreto de nossos esconderijos sentimentais quais são as nossas fragilidades, quais as nossas vontades indizíveis. É assim desde a Queda: foi a inveja de Caim, guardada no zelo de seu coração amargurado, que marcou a História com o primeiro fratricídio. Caim poderia ter se aberto com o irmão, ou então com Eva ou seu pai, compartilhando suas dores invejosas – e talvez seu coração tivesse se tornado menos duro, mais tranquilo, e assim nenhum crime seria cometido. Mas também assim não teríamos o mito Caim, nem o seu oposto adocicado que é a figura de Abel. 

A força de Caim vem do seu silêncio. Não diz nada, não comunga com ninguém: deixa o Athanor do ódio esquentando, lentamente, até que a temperatura se eleve ao máximo que um coração possa suportar e termine por enfim transformar-se na fúria do crime. Força como silêncio, silêncio como prova de valor. 

Ficar calado e nada dizer sobre as dores e temores, enfrentando-os orgulhosamente – isto parece ser o caminho óbvio da superação. E é, em vários sentidos. Do mesmo modo que os praticantes sérios de musculação não buscam aplausos a cada nova anilha colocada no supino [por “sérios” automaticamente excluo marombeiros que mais treinam a língua que os músculos, quem frequenta academias sabe do que estou falando], a força parece ser o resultado do esforço calado, sereno, sem comemorações efusivas a cada nova cicatriz que se fecha. É você contra você mesmo e nenhuma biblioteca de livros de autoajuda irá ajudar. É possível sempre partilhar mapas, ver como outros se aventuraram pelos labirintos da solidão e da dor, até mesmo pegar emprestado uma bússola – mas chega uma hora que os mapas se perdem, as paredes do labirinto mudam de lugar e o ponteiro que apontava para o Norte gira tão rápido que nem sabemos onde estamos mais. Mais uma vez, então, estamos sozinhos e apenas por nós mesmos, tendo como trilha sonora somente o som das batidas do coração.

Entendo o poder do silêncio e considero um dos maiores males do mundo de hoje justamente o vozerio incessante. Verborragia deveria ser tipificada como crime, aqueles que gritam ao invés de falar deveriam ter suas amígdalas arrancadas. Entretanto, irromper em gritos e deixar o líquido oculto do Athanor íntimo jorrar como uma explosão de verdades caladas pode não apenas ser libertador mas, também, um modo de criar laços profundos com aquele que nos ouve. Baixar a guarda, nesse caso, não nos deixa vulneráveis, prontos para sermos devastados por um direto no queixo, mas leva a uma aproximação sentimental de rara beleza. Se é horrível o choro lamuriento dos fracos, que ficam a lamentar-se o tempo todo de tudo, igualmente é desprezível o manter-se sempre calado como uma estátua – que agora passo a ver também como uma espécie de covardia, isto é, como um medo de arriscar-se a parecer ridículo, medo de não mais ser visto como uma montanha de força que a tudo vencerá, que esmagará até mesmo legiões de demônios com a sua frieza implacável. Mesmo Caim, após cometer seu abominável crime, derramou suas lágrimas, tornou-se tão pequeno e frágil quanto o angelical Abel. Talvez o ideal seja termos em nós o estoicismo capaz de suportar friamente até o limite de nossos extremos (mais 5 kg de cada lado no supino, um quilômetro a mais sem nenhum mapa) mas sempre alertas para, frente a uma alma digna, de onde recebemos um real e verdadeiro amor, sermos corajosos o suficiente para desabarmos em franco e puro desespero, liberando catarticamente as forças da amargura que preenchem os cantos obscuros de nossos segredos. 

E choraremos tanto, e choraremos com tanta força, que os deuses terão mais uma vez inveja de nós, humanos: nós que não sabemos o que é o tédio de ser eterno, nós que podemos nos dar ao luxo da Fragilidade.