Lembro muito bem. Eu estava na sala quando a campainha tocou e ele foi atendido pelo meu pai. Sempre sorridente, sempre pronto para todas as brincadeiras, foi entrando na sala com aquele jeito bonachão típico das pessoas superficiais e acostumadas aos prazeres simples. Pastel com cana nas feiras dominicais, conversas sobre carros, aventuras amorosas com as meninas da rua de baixo: assim ele foi forjado, sob a tutela de divertimentos rudes, e assim ele vivia feliz aqueles novos dias, dias de entrega ao trabalho e aos cuidados com o filho recém-chegado. Vez ou outra, amigos de infância que éramos, ele escapava dos olhares ciumentos da mulher e me convidava para um passeio onde celebrávamos aquela amizade nascida anos atrás; queria liberdade, dizia, gostava e respeitava a esposa mas também queria sentir os ventos frescos da aventura soprando em seu rosto engraçado de 20 e poucos anos. Então eu saía com ele ouvindo suas histórias e novidades, ouvindo suas limitadas visões de mundo marcadas pela mesquinhez típica daqueles que nunca passaram por grandes dificuldades na vida; e como muitos iguais a ele, dedicava-se aos caminhos do vício da cocaína, a sedutora das sedutoras, isso já há anos consecutivos mas sem nunca passar por períodos críticos onde tudo parecia se transformar em agonia e caos. Posso dizer que conseguia manter-se ativo mesmo com o vício; tínhamos alguns atritos relacionados a isso, e mesmo assim éramos muito amigos, guardando em segredo um sentimento recíproco onde misturava-se a admiração e a inveja.
Então ele entrou na sala e sentou no sofá, como tantas vezes já tinha feito. Contudo, algo estava definitivamente fora do lugar ali. Certas coisas amigos não precisam sequer dizer: basta um gesto desconexo ou uma palavra dita fora de hora para compreendermos tudo, até mesmo os detalhes. E eu compreendi que algo estava errado ali, e na hora mirei minha atenção naqueles olhos (antes) tão vivos: pupilas de pura angústia, um tremor quase imperceptível nos lábios e uma expressão facial tentando porcamente fingir serenidade. Estava claro que ele precisava intensamente de sua dose de cocaína e veio até a mim pedir ajuda – e ajuda neste caso significava dinheiro emprestado. Outras vezes, ele havia feito exatamente isso. Assim foi meu primeiro pensamento que, depois, conclui estar errado.
Trinta reais consegue uma razoável quantidade de cocaína de primeira. Saquinhos pequenos artesanalmente amarrados que fazem delícias com seu cérebro. Quando muito são vinte minutos de sensações indizíveis onde se mesclam o terror de sentir o nariz e a boca transformados em vidro, adormecidos, dentes que parecem trincar a cada nova abertura da boca, a garganta amarrada, euforia, adrenalina, 150 ou mais batimentos cardíacos por minuto, um semideus, herói indestrutível e imortal, delírio tão intenso quanto breve, tão delicioso quanto danoso: a cor da pasta de cocaína, matéria prima do pó vendido nas esquinas de qualquer canto do país, é um amarelo meio leitoso; quanto mais próxima do amarelo mais pura é a cocaína; um quilo de cocaína pura pode se transformar em até seis, sete quilos de cocaína pronta para venda - e a magia que transforma um em sete é macabra: mistura-se éter, solvente ou cândida com a coca, e também algumas outras impurezas como mármore moído, remédios triturados, gesso, cal, pó de vidro, etc. Tudo para que aquele mero quilograma se multiplique. A mistura toda é processada e enfim temos o pó, tão branco e fino que enfeitiça, cuja cor alva oculta a imundície que leva aos paraísos artificiais que somente os viciados conhecem e onde lentamente vão deixando suas vidas.
E vidas têm preços assim como qualquer outra coisa. E a dele estava valendo quinhentos reais. Uma dívida obtida sem ao menos perceber, naquelas brincadeiras de cheirar uma, duas gramas e pagar depois. Brincadeiras, quem não gosta delas? Lambuzar-se com nossas guloseimas, querer mais brinquedos, mais beijos, mais lambidas no pescoço, mais uma foda antes de ir embora para casa, insaciáveis, mais uma cheirada, mais um pouco de veneno nas narinas, uma sinusite prolongada, noites insones tendo visões de ratos monstruosos correndo pelos cantos da casa. O salário tinha ido todo embora, um cheque pré-datado para cair na segunda-feira; e se amanhã não tivesse quinhentos reais na mão, mais uma jovem viúva estaria chorando nas ruelas tristes do cemitério. Aquela muralha que ele sempre tinha sido para mim, inabalável, tão seguro de si, sempre tão gentil para com todos, esgotou-se na minha frente quando desesperado explode um choro histérico, sofrido até o limite. Aquele homem de traços viris em prantos como um frágil bebê, pedindo ajuda, jurado de morte por traficantes que ontem mesmo almoçavam em sua casa, aquela triste figura com barba mal feita e cabelos desgrenhados, um pouco mais magro, amargamente gritando maldições para o mundo e para si, aquele homem estava rendido ao seu destino. Morreria em breve, restavam-lhe poucas horas de existência. Tudo então misturou-se, as lembranças, os apuros passados nas aventuras juvenis, provas da amizade que os anos me mostraram ser verdadeira, o choro descontrolado ritmando o silêncio do ambiente quente.
Quinhentos reais é o valor de uma vida. Um valor alto para mim, que ganho pouco e me atolo em faturas. Sei que isso iria me render uma desagradável dor de cabeça e um tardio arrependimento, mas dei o dinheiro, deixando claro que o ajudaria somente aquela vez. Nunca mais coloque um grão de cocaína no nariz. Reflita sobre os dias atuais. E mude de vida. Se isso acontecer de novo eu não chorarei no seu velório. Dei para ele aquilo que dizem ser "sermão”, tal como um pai faz com o filho pequeno que cometeu uma travessura. Fiz ele se acalmar depois, servi um chá. Ele prometeu parar com tudo (na verdade não cheiro nada faz dois dias, disse), então tentei fazer ele sorrir novamente. Conversamos sobre futilidades para desanuviar o ambiente, na tentativa de reviver os bons velhos tempos; lembrávamos das brincadeiras e das baladas que tínhamos feito, e em meio à nostalgia, ele disse: "hey, foi meu aniversário ontem! Me dá os parabéns, porra!".
Pedi mil desculpas por minha falta de memória. Acho imperdoável que esqueçam meu aniversário e fico muito puto quando esqueço o de alguém. Dei um abraço antes dele ir embora; iria de minha casa direto rumo à casa do traficante, para quitar a dívida da sua vida. Não tenho esperança que ele mude, tampouco que me pague o dinheiro emprestado (repetia incontáveis vezes que iria me pagar “o quanto antes”). Sei que fingiu ouvir minhas recomendações de parar com isso, de deixar de cheirar e blá blá blá. Ouviu tudo tão nitidamente quanto Charlie Brown ouve sua professora chata. Viciados são assim mesmo. Talvez eu sinta falta dele, não posso negar.
Pessoas escolhem seus próprios destinos, elas se afundam nas suas confusões assim como eu me afundo nas minhas – e saber isso me basta. Só não quero lembrar do choro horrível, daquele atestado de fraqueza tão tolo que chegava a ser cômico, e que me fez perceber que não existia nele nada mais que eu pudesse invejar e admirar. Era um animal que estava ali, rastejando por vida, e tudo o que fiz foi jogar algum alimento para ele prolongar suas desgraças. Aquele animal não faria mais nenhum aniversário e definitivamente não estou triste por isso.
Então ele entrou na sala e sentou no sofá, como tantas vezes já tinha feito. Contudo, algo estava definitivamente fora do lugar ali. Certas coisas amigos não precisam sequer dizer: basta um gesto desconexo ou uma palavra dita fora de hora para compreendermos tudo, até mesmo os detalhes. E eu compreendi que algo estava errado ali, e na hora mirei minha atenção naqueles olhos (antes) tão vivos: pupilas de pura angústia, um tremor quase imperceptível nos lábios e uma expressão facial tentando porcamente fingir serenidade. Estava claro que ele precisava intensamente de sua dose de cocaína e veio até a mim pedir ajuda – e ajuda neste caso significava dinheiro emprestado. Outras vezes, ele havia feito exatamente isso. Assim foi meu primeiro pensamento que, depois, conclui estar errado.
Trinta reais consegue uma razoável quantidade de cocaína de primeira. Saquinhos pequenos artesanalmente amarrados que fazem delícias com seu cérebro. Quando muito são vinte minutos de sensações indizíveis onde se mesclam o terror de sentir o nariz e a boca transformados em vidro, adormecidos, dentes que parecem trincar a cada nova abertura da boca, a garganta amarrada, euforia, adrenalina, 150 ou mais batimentos cardíacos por minuto, um semideus, herói indestrutível e imortal, delírio tão intenso quanto breve, tão delicioso quanto danoso: a cor da pasta de cocaína, matéria prima do pó vendido nas esquinas de qualquer canto do país, é um amarelo meio leitoso; quanto mais próxima do amarelo mais pura é a cocaína; um quilo de cocaína pura pode se transformar em até seis, sete quilos de cocaína pronta para venda - e a magia que transforma um em sete é macabra: mistura-se éter, solvente ou cândida com a coca, e também algumas outras impurezas como mármore moído, remédios triturados, gesso, cal, pó de vidro, etc. Tudo para que aquele mero quilograma se multiplique. A mistura toda é processada e enfim temos o pó, tão branco e fino que enfeitiça, cuja cor alva oculta a imundície que leva aos paraísos artificiais que somente os viciados conhecem e onde lentamente vão deixando suas vidas.
E vidas têm preços assim como qualquer outra coisa. E a dele estava valendo quinhentos reais. Uma dívida obtida sem ao menos perceber, naquelas brincadeiras de cheirar uma, duas gramas e pagar depois. Brincadeiras, quem não gosta delas? Lambuzar-se com nossas guloseimas, querer mais brinquedos, mais beijos, mais lambidas no pescoço, mais uma foda antes de ir embora para casa, insaciáveis, mais uma cheirada, mais um pouco de veneno nas narinas, uma sinusite prolongada, noites insones tendo visões de ratos monstruosos correndo pelos cantos da casa. O salário tinha ido todo embora, um cheque pré-datado para cair na segunda-feira; e se amanhã não tivesse quinhentos reais na mão, mais uma jovem viúva estaria chorando nas ruelas tristes do cemitério. Aquela muralha que ele sempre tinha sido para mim, inabalável, tão seguro de si, sempre tão gentil para com todos, esgotou-se na minha frente quando desesperado explode um choro histérico, sofrido até o limite. Aquele homem de traços viris em prantos como um frágil bebê, pedindo ajuda, jurado de morte por traficantes que ontem mesmo almoçavam em sua casa, aquela triste figura com barba mal feita e cabelos desgrenhados, um pouco mais magro, amargamente gritando maldições para o mundo e para si, aquele homem estava rendido ao seu destino. Morreria em breve, restavam-lhe poucas horas de existência. Tudo então misturou-se, as lembranças, os apuros passados nas aventuras juvenis, provas da amizade que os anos me mostraram ser verdadeira, o choro descontrolado ritmando o silêncio do ambiente quente.
Quinhentos reais é o valor de uma vida. Um valor alto para mim, que ganho pouco e me atolo em faturas. Sei que isso iria me render uma desagradável dor de cabeça e um tardio arrependimento, mas dei o dinheiro, deixando claro que o ajudaria somente aquela vez. Nunca mais coloque um grão de cocaína no nariz. Reflita sobre os dias atuais. E mude de vida. Se isso acontecer de novo eu não chorarei no seu velório. Dei para ele aquilo que dizem ser "sermão”, tal como um pai faz com o filho pequeno que cometeu uma travessura. Fiz ele se acalmar depois, servi um chá. Ele prometeu parar com tudo (na verdade não cheiro nada faz dois dias, disse), então tentei fazer ele sorrir novamente. Conversamos sobre futilidades para desanuviar o ambiente, na tentativa de reviver os bons velhos tempos; lembrávamos das brincadeiras e das baladas que tínhamos feito, e em meio à nostalgia, ele disse: "hey, foi meu aniversário ontem! Me dá os parabéns, porra!".
Pedi mil desculpas por minha falta de memória. Acho imperdoável que esqueçam meu aniversário e fico muito puto quando esqueço o de alguém. Dei um abraço antes dele ir embora; iria de minha casa direto rumo à casa do traficante, para quitar a dívida da sua vida. Não tenho esperança que ele mude, tampouco que me pague o dinheiro emprestado (repetia incontáveis vezes que iria me pagar “o quanto antes”). Sei que fingiu ouvir minhas recomendações de parar com isso, de deixar de cheirar e blá blá blá. Ouviu tudo tão nitidamente quanto Charlie Brown ouve sua professora chata. Viciados são assim mesmo. Talvez eu sinta falta dele, não posso negar.
Pessoas escolhem seus próprios destinos, elas se afundam nas suas confusões assim como eu me afundo nas minhas – e saber isso me basta. Só não quero lembrar do choro horrível, daquele atestado de fraqueza tão tolo que chegava a ser cômico, e que me fez perceber que não existia nele nada mais que eu pudesse invejar e admirar. Era um animal que estava ali, rastejando por vida, e tudo o que fiz foi jogar algum alimento para ele prolongar suas desgraças. Aquele animal não faria mais nenhum aniversário e definitivamente não estou triste por isso.
Quando muito são vinte minutos de sensações indizíveis onde se mesclam o terror de sentir o nariz e a boca transformados em vidro, adormecidos, dentes que parecem trincar a cada nova abertura da boca, a garganta amarrada, euforia, adrenalina, 150 ou mais batimentos cardíacos por minuto, um semideus, herói indestrutível e imortal, delírio tão intenso quanto breve, tão delicioso quanto danoso
ResponderExcluirokok
Mim gosta!
ResponderExcluirMim gosta!
ResponderExcluirColoca mais aí!!
ResponderExcluirFaz um sobre: "e a barata,tchuthcuthchu....comeu meu chocolate...tchutchuthchu...tomou o meu sukinhuuuu...tchutchuthchu..e correu lá pra casa dela, sai daqui barata malandra!!!!!!"
Você sabe que seu futuro como contista já está garantido, divulga esse site, mas antes registra tudo hein!!
"um semideus, herói indestrutível e imortal"
ResponderExcluirEu quero!
sinais de fraqueza...
ResponderExcluirparabéns pelo blog leandro, já gostava dos textos que você publicou no antigo site do LIAL e das letras de uma forma geral. agora aguardo o lançamento do segundo play da banda.
enfim, eu surrupiei trechos de uma entrevista sua e do douglas, editei e fiz uma hq de 2 páginas, coisa simplória feita na correria.
se você quiser eu envio os scans via e-mail pra você dar um aval, já que os originais eu inscrevi num concurso e tão cedo eu não vou reave-los.
abraço.
Bruno, quero sim!
ResponderExcluirEnviei no e-mail lifeisalie@hotmail Leandro.
ResponderExcluirParabéns rapaz.
ResponderExcluirOs textos que você cria são muito interessantes.Como o rapaz de cima, cheguei a ver os textos que você publicou no antigo site do LIAL.Realmente fantásticos...
Posso estar errado, mas dá a perceber, que você escreve impulsionado, sob forte emoção.
Seja lá qual for a sua fonte de inspiração,vocÊ faz um belo trabalho.
Parabéns.
Eu tb não sinto tristeza. Só mais um...
ResponderExcluirMe parece que neste conto, na verdade os dois morreram. E isso, como alerta, é magnífico.
ResponderExcluir