10.17.2007

Cachos negros

Dela M. apenas guardara o sorriso e a maneira cheia de sutilezas de arrumar os abundantes cabelos. Era uma forma tão graciosa de passar os dedos pelos cachos negros, e conduzi-los quase que por encanto para cima, para baixo, que M. esquece que está em plena Avenida P. dos carros famintos por asfalto. E se continuasse ali na calçada, contemplativo naquela paixão matinal, a esbarrar nas gentes que ali passavam, chegaria tarde no trabalho - e nenhum patrão no mundo, nem mesmo aquele que se dá ares de poeta, gosta de funcionários que atrasam 15 minutos por contemplar musas.

E então M. segue em frente, farol fechado paras as bestas a gasolina, e lá se foram os cachos negros em direção que não se sabe, a multidão na P. é um ultraje à libido, sequer podemos seguir com os olhos um belo par de pernas por mais de 20 segundos. No caso de M. os cachos negros eram bem mais que pensamentos sexuais, eram uma paixão mesmo, daquelas que fazem estragos, que deixam ruínas e de cujos efeitos muitos não se recuperam. Encontrava uma garota na rua, três olhares depois ela já se transformava na mulher de sua vida, se não fosse um recluso faria um convite simpático para um café perto do Parque T., lá conversariam, se reconheceriam, não demoraria muito e já estariam cheios de afagos e afetos, trocando cartinhas, trocando confidências: assim imaginava M. detalhes de cada relação com cada garota desconhecida que subitamente lhe inspirava paixão.

E era uma verdadeira paixão. A ponto de M. ficar triste quando, calado, observava a desconhecida tão sua indo embora para nunca mais. Pois a Cidade é imensa, e imensos caminhos a cruzam, e cada vez que os percorremos, parece que eles já não mais são os mesmos, ou talvez somos nós os que estão em mutação, o ovo ou a galinha, certas questões nascem para ser eternas. Mesmo assim, mesmo sabendo que apartado estava para sempre de cada uma de suas paixões instantâneas, M. cultivava a possibilidade de novamente encontrá-las, e em questão de segundos suas paixões o reconhecerem com um largo sorriso, eu lembro de você aquele dia em tal lugar, lembra de mim, te procurei tanto. Desce em direção a Alameda S. com a certeza de que ali, na esquina com a Rua A., aquela loirinha de brincos de argola estaria como naquela última quinta-feira. Sacola de compras na mão, e tão indiferente ao mundo ela parecia que M. acreditou que jamais se apaixonaria de novo, era tão somente ela e nenhuma outra, ali estava a companheira definitiva para as viagens e bebedeiras e contas atrasadas e noites de sexo. Mas as esperanças são apenas brinquedinhos que Deus fez para nós, brinquedinhos Dele, gastarmos o tempo tão pouco que aqui temos - e M. não encontrou sua loirinha de brincos de argola, assim como jamais encontrará os negros cachos novamente.

Obviamente ele não pensa estas coisas. Está muito atarefado em desviar dos caudalosos rios humanos que infectam as ruas dos Jardins. Mas no íntimo sofre a perda de suas paixões. E quando o leitor se depara com o verbo sofrer, deve se recordar das vezes que sentiu dor por alguém, e saber que é uma dor como esta que aflige M., e não acusá-lo de leviandade e de superficialidade de sentimentos. Pois é muito razoável que alguns vejam em M. tão somente um aventureiro; se assim o fosse, estaria ele imaginando tórridas cenas sexuais com os cachos negros, e não uma sala confortável com filhos e filhas a brincar no cantinho. Sim, ele a quis nua, os lábios dela desejou, os contornos que transbordavam volúpia, imaginou um perfume e um nome até - Juliana ela chamaria. Mas no momento do êxtase, sobre ela ele se estenderia com fúria, até que cachos negros ficasse quietinha, na semi-imobilidade que sucede o Excesso, e envolvendo-a em um abraço, diria Juliana, eu te amo, e seria o mais verdadeiro dos homens ao fazer isso.

Vinte minutos de atraso quando, finalmente, M. liga o computador no escritório. Felizmente, seu chefe ainda não tinha chegado. Ninguém perceberia seu atraso. Vai tomando um copinho de café enquanto vê a rua pela janela. Quantas ainda amarei até te encontrar, pensa, e naquele momento ele é triste e cheio de vida. Já não lembra mais de cachos negros e nem dos seus dedos sibilinos a balançar os fios para cima e para baixo. Aquela paixão, tão subitamente nasceu, tão subitamente foi embora. A multidão, porém, continua a mesma na Avenida P., produzindo desencontros, engolindo paixões e de todos nós embaralhando o Destino.

7 comentários:

  1. Anônimo2:08 AM

    Estou no trabalho. E sinto todos os dias as mesmas sensações de M.


    Textos sempre com os conflitos de nossos dias absurdos.

    Abraço

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  2. Muitoooo bom....
    Senti-me apaixonada.. não pelos cachos negros
    IAUHAUHAOUAHOUA
    e dasapaixonei-me ao final do texto!
    lindo
    =)

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  3. nos dias que fazem sol é mais fácil sorrir e ir a padaria cheia de esperança verde fluorescente.
    mas quando a noite baixa sobre nossas cabeças, aqueles mesmos dentes que sorriram ..engolem o salgado natural da janela do mundo.

    viver em contradição se o amor é a própria palavra. Sem maniqueísmos..
    sem existencialismo. ismo.
    renascemos construindo a torre a cada manhã, pois sem ela não existiria abrigo aos devaneios.

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  4. M, a feminina, apaixona-se a cada esquina, a cada semana por alguma barba perdida nas ruas e nas janelas de ônibus, em algumas curvas de corredores de uma universidade meio obscura tb.
    Vênus em escorpião.
    Escorpiano tb né?
    gostei do texto...bonito.
    bjo

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  5. Anônimo9:51 AM

    é exatamente esse o sentimento após os desabores de qualquer paixão amargurada, nada é eterno, em cada esquina uma possibilidade, mas no fim do dia fica a sensação de nada. acredito que só aqueles que já experimentaram desaprender a luz do sol são sensíveis o suficiente para perceber...
    abraço.

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  6. me identifiquei muito com M., meus passos do trabalho até a faculdade. "os cachos negros eram bem mais que pensamentos sexuais", "os contornos que transbordavam volúpia", "e naquele momento ele é triste e cheio de vida". a contemplação encantadora do feminino? o desejo do encontro com a paixão?
    Abrço meu caro!
    Daniel

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