Desde a leitura que fiz de Crônica da casa assassinada -talvez o livro mais injustiçado da literatura brasileira- o nome de Lúcio Cardoso figura na minha lista dos escritores que conseguiram fazer de seus textos uma espécie de organismo vivo, um texto que vibra e pulsa em cada novo período.
Relendo anotações velhas antes de ir para a cama, encontrei esse trecho que transcrevi de seu diário, obra lançada em 1970 pela José Olympio. Os diários são sempre fabulosos: isentos dos caprichos estilísticos que muitas vezes afogam as explosões do sentimento, suavemente transmitem uma autenticidade que o romancista se esforça para obter. As personae são abolidas, e o escritor não tem motivos para esconder os recalques, as taras e as imprecisões que os editores observariam com severidade. Fluem os ódios e os abismos, a intimidade é devassada, o desejo voyerista do leitor farta-se aos montes. E no trecho que compartilho com vocês, vemos um Lúcio algo profético, que vê na Tijuca dos anos 1960 um pesadelo hedonista que estava apenas começando, sintomas da Kali-yuga que hoje vivenciamos em estado hipertrofiado:
"Vou com Fregolente à Barra da Tijuca, onde durante algum tempo, infeliz e sem repouso, viajo através de uma multidão feia, triste e sem nenhuma dúvida profundamente desgraçada. Só a desgraça alimenta uma tal sede de divertimento. Aliás, é sempre este o aspecto de um aglomerado que se reúne à procura de esquecimento: os limites humanos surgem com avassaladora nitidez e o rebanho festivo adquire um aspecto confrangedor, de coisa abandonada e amaldiçoada. Não é precisamente nesses minutos, nesses e não em outros, que ousamos desejar para toda essa gente uma catástrofe comum, uma guerra, uma inundação ou até mesmo um ataque coletivo de insânia ou de crueldade - qualquer coisa enfim que agite essas carnes moles que se estendem ao sol, domesticadas pela preguiça, pelo álcool e por uma sensualidade grosseira e sem profundidade?
Talvez o amanhã pertença a gente dessa espécie - talvez sejam eles os coordenadores do mundo em que começamos a viver. Mas são tão melancólicos e tão estritamente confinados à sua miséria, que possivelmente estão muito longe de perceber o que se passa. O Deus antigo, o Deus do terror e das hecatombes, bem poderia agora esparzir esse sangue bruto ao longo das areias mornas - bem poderia brandir um raio ou soprar uma rajada morna de demência - qualquer coisa finalmente que fizesse sangrar essas almas cativas, tornando-as acordadas e viris. Há uma determinada sonolência da alma, que só o castigo e o medo conseguem afastar. Os ferros do tempo dos escravos ou as tenazes ardentes da Inquisição, tudo serviria para fazer vir à tona das faces uma sombra de sentimento ou de espírito. Mas é inútil sonhar, eles apenas vivem uma agonia sem sentido, enquanto aconchegam ao sol brando, sem amor e sem piedade, as velhas carnes mal-tratadas.
(Inútil conter, é muito forte o sopro de impiedade que me atravessa. Ó carnes abastadas e domingueiras! Custa a crer que tenha havido um mistério da Encarnação, e que um Deus autêntico tenha descido a este mundo para redimir tal rebotalho... Sim, as revoluções, que são exteriores, podem lidar com isto - mas a religião, que fará desta vontade assassinada?) "
Em tempo: Lúcio Cardoso era um católico. Por católico não entenda a "religião" de Padres Marcelos ou outros alucinados quaisquer. Muito menos busque pontos de contato com a degeneração evangélica, que nada mais que é que um culto do desespero e da moral de rebanho em uma configuração ideal. O catolicismo de Lúcio se explica por um forte sentimento de antimodernidade, por uma rejeição do materialismo filosófico e por uma atitude trágica perante a vida. Sobre esse assunto, qualquer coisa que eu diga seria desnecessária, já que nesse artigo tudo está dito com muito mais propriedade: http://www.filologia.org.br/soletras/8/02.htm
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