O que aqui segue é a parte inicial do esforço que denominei Narrativa Mitológica de Curitiba, após minha visita a essa cidade na última Páscoa. Foi a forma que encontrei para registrar, da forma que me parece a mais apropriada, os 3 dias entre a morte de Nosso Senhor e sua vitoriosa ressureição entre ovos de chocolate.
Haverá ainda três partes, que serão devidamente publicadas assim que eu me sentir satisfeito. Boa parte da Narrativa Mitológica de Curitiba foi escrita por apontamentos, coletados anarquicamente durante os dias do feriado. O trabalho maior está em dar um conjunto para tudo o que está espalhado em mais de vinte páginas de anotações, rabiscos, desenhos, fotos e cheiro de vômito.
Fatos, memória e fantasia estão completamente entrelaçados não apenas no resultado final da Narrativa, mas inclusive nas anotações. Todavia, tudo o que está escrito -absolutamente tudo- aconteceu de verdade. Deliciem-se.
Exórdio
Os Três Peregrinos decidiram que a Páscoa daquele ano seria comemorada na cidade de Curitiba. Como em geral as coisas acontecem para eles, a viagem foi decidida aos solavancos, quase de improviso, o que não quer dizer que tudo o que aconteceu já não estava determinado em algum plano além-da-matéria que não explicaremos aqui. O fato é que arrumaram suas bagagens com satisfação, colocando nelas roupas, mentiras musicais, ilusões literárias e alguns sortilégios filosóficos. Combinaram de se encontrar na Estação Paraíso logo após o Sonnenuntergang; naquele horário a cidade agitava-se na a efervescência do movimento frenético de milhões de destinos vivendo o seu limbo-nada, desesperadamente querendo voltar para casa, caos que era a delícia-pesadelo de um Demiurgo vaidoso que com certeza ri e engasga com o próprio riso ao ver os Três Peregrinos se cumprimentando, abraços e tapinhas nas costas e sorrisos estúpidos, ansiosos pelo que estava por vir, por aquela Grande Viagem de Páscoa em que desceriam para o Sul, para o frio Sul, lar da dissolução de todos os Grandes Sonhos e Projetos.
Após se cumprimentarem, desceram as escadas e entraram no metrô que liga os extremos Norte, Sul, Leste e Oeste da cidade (o simbolismo da Cruz, escancaradamente presente na vida cotidiana ). Foram até a Estação Tietê. Ali fica uma rodoviária, arquétipo do Porto em uma versão modernosa ou empobrecida, adjetivos que parecem não ter nada de semelhante entre si, embora no fundo sejam semanticamente equivalentes e cabalisticamente irmanados. O Porto sempre foi o ponto de contato entre mundos diferentes, o grande misturador dos weltanschauung, a testemunha das despedidas fatais, a conexão mística das culturas em ascensão com aquelas que também desejam os altos vôos apolíneos antes do Esquecimento; lembremos que Fernando Pessoa, esse semideus feito não um mais muitos, escreveu uma ode ao Mar e ao Porto eterno que nos habita lusitanamente, que marca nossa alma com uma herança mediterrânea de Agitação e Perda. Mas se não há mais peixes nem marinheiros no arremedo de porto que a nós resta, nas rodoviárias há porém toda a sujeira e confusão de odores que caracterizam os redutos das embarcações. Malas são arrastadas, pessoas se esbarram sem parar, avisos sonoros alertando aos atrasados que é melhor se apressar, filas monumentais para compras de passagem, choro de crianças, resmungos de velhos, últimas recomendações para os que se vão: a rodoviária Tietê é uma coleção de tudo isso acontecendo sempre e sempre, um universo incansável de Tristeza, Perspectivas, Separações e Reencontros.
Os Três Peregrinos, que embarcariam no último ônibus da Viação Itapemirim, estavam alheios a toda essa movimentação da rodoviária: sua excitação com a viagem impedia reflexões mais profundas e senso de observação apurado. A saída do ônibus sofreu um atraso de quase uma hora, cortesia do engarrafamento da cidade, que ainda é tratado como um acontecimento excepcional quando na verdade transformou-se em fato corriqueiro, isso desde há anos. Mas assim se forma a Realidade, por um ato de Vontade, que muito deve ao uso da Palavra, esse instrumento de Poder que o Demiurgo vaidoso nos deixou para, em vão, tentar explicar o Universo.
Vencido o trânsito (exercício de contrapoder em nível lingüístico: vencida a condição natural de engarrafamento da cidade) o ônibus pegou a Autopista do Sul e em velocidade crescente seguiu para a cidade de Curitiba. Os Três Peregrinos então adotaram seus comportamentos padrões. O mais velho logo adormeceu: seus sonhos eram todos sexuais e invariavelmente envolviam lambidas no cú de mulheres depiladas. O outro peregrino, o mais alto, não dormia nunca: passava as noites desenhando histórias em quadrinhos de continuidade infinita onde a Derrota, essa deusa incansável, era venerada em diversas formas. O peregrino mais novo também não dormia, contudo permanecendo em um estado sonambúlico: tal estado lhe conferia uma aparência vampírica, acentuada por sua predileção por roupas negras e leituras em línguas estranhíssimas. Terminamos o exórdio dessa Narrativa Mitológica vendo nosso Três Peregrinos sentados em suas poltronas no ônibus e entregues cada um às suas manias prediletas.
Está ficando sensacional! aguardo ansiosa para os próximos capitulos! ;)
ResponderExcluirSim, provavelmente por isso e
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