“- Estou bem – repetiu Drogo quase não reconhecendo a própria voz – Estou bem e quero ficar.
- Ficar aqui no forte? Não quer mais ir embora? O que lhe aconteceu?
- Não sei – disse Giovanni. – Mas não posso ir embora.”
É nesse momento, ao final do capítulo 9, que o personagem principal renuncia à vida na cidade e decide seu destino de reclusão no livro “O deserto dos tártaros”, do italiano Dino Buzzati. Esse post será uma brevíssima resenha desse angustiante romance.
Lançado em 1945, “O deserto dos tártaros” narra a história do jovem Giovanni Drogo que, após formar-se na escola de oficiais do exército, é designado a servir no antigo forte Bastiani, localizado nos limites extremos do império (não há uma referência espacial precisa, o que acentua ainda mais o caráter fabuloso do livro). Lá, nas muralhas do forte, vislumbra-se um imenso deserto, entremeado por montanhas inacessíveis, terrenos ressequidos e uma solidão tão imensa quanto a dureza das rochas milenares que o circundam. E nesse cenário de absoluto isolamento, soldados atentamente observam a planície sem fim, ansiosos de que os inimigos do Norte, os tártaros, enfim façam seu ataque há anos esperado.
Nessa espera absurda por um inimigo que não existe, Drogo encontra muitos homens que vivem no forte há décadas. Com paciência inumana, fielmente observam procedimentos de vigília das muralhas, de exercícios militares, de patrulhas metódicas em uma planície que é apenas um nada arenoso. No momento inicial, Giovanni observa tais comportamentos com um pouco de perplexidade; e temendo pelos efeitos negativos que poderiam macular sua carreira caso permanecesse por muito tempo naquele forte tão distante das oportunidades da cidade, pede transferência para outro posto logo no primeiro dia. O major Matti o aconselha a esperar pelo menos quatro meses: seria o tempo necessário para que o médico do exército viesse para os exames rotineiros, e ocasião perfeita para que Drogo alegasse algum tipo de problema ocasionado pela elevada altitude do forte e, então, conseguisse uma transferência sem risco de desonras, que poderia acontecer caso formalizasse um pedido desses logo nos primeiros dias.
Os quatro meses são suficientes para que o jovem Drogo fosse contaminado, ainda que em um grau mínimo, pela rotina do forte. Tempo o bastante para que ele também observasse o vasto deserto com paixão, na irracional espera pelos tártaros. Assim como os outros que ali estavam, para ele também a possibilidade de guerra contra o inimigo do Norte configurava-se como passaporte para um valor heróico de brilho sem igual – e então Drogo resolve esperar. O romance avança no detalhamento de um cotidiano onde os dias de Giovanni passam como segundos, os meses como minutos, os anos acumulam-se sem ao menos que ele perceba. Para Drogo e todos os outros soldados ali confinados, em uma prisão voluntária das relações ditas normais, a espera tornava a glória do futuro combate ainda maior. Consumiam a vida na vigília constante das planícies do Norte, esperando os temíveis tártaros, aguardando um momento que nunca chegará, ao mesmo tempo convictos de que a guerra aconteceria e que tudo isso – a espera, os exercícios militares, as trocas de turno de guarda com seu rigor procedimental – que tudo isso não passava da mais absoluta perda de tempo.
O romance foi muitas vezes considerado como uma alegoria da inutilidade do poder e suas convenções. O autor, em uma entrevista de 26 de maio de 1959 ao jornal Il Giorno, relacionou-o com “o amesquinhamento cotidiano e a condição humana em geral”. Uma boa interpretação, também sustentada pelo próprio Buzatti, é que o romance retrata uma sensação extremamente moderna: o consumir inutilmente a vida em uma tarefa sem fim, sem propósito, enquanto se espera um acontecimento espetacular que agirá como um divisor de águas – momento mágico que nunca se concretiza. Assim, a realização da vida se projeta sempre para frente (a conquista do “verdadeiro amor”, de uma casa, um bom emprego, etc, apenas para citar os exemplos mais banais) enquanto que a vida mesma se esvai em espera e amargura:
“Do deserto do norte devia chegar a sorte, a aventura, a hora milagrosa, que, pelo menos uma vez, cabe a cada um. Para essa vaga eventualidade, que parecia tornar-se cada vez mais incerta com o tempo, os homens consumiam ali a melhor parte de suas vidas.”
A passagem do tempo: talvez seja esse o grande tema do romance, o fio que amarra e ordena todas as suas partes. Como os homens experimentam essa passagem do tempo, como relacionam suas vidas, projetos, ambições e desejos com o fluxo incessante dos segundos. Buzatti mostra que a espera da felicidade futura é suficiente para preencher uma vida, mesmo que com as areias da ilusão. O velho Drogo, doente e esquecido pelo alto comando do forte, prepara-se nas páginas finais do romance para enfrentar os tártaros que enfim iniciam seu ataque – e é um rebotalho de homem, um velho doente e incapaz até de andar sozinho que pega o sabre, um homem que sabe muito bem que não tem mais condições de lutar. Nem mesmo esse ataque temos certeza que é, de fato, aquele tão esperado: não seria apenas mais um alarme falso, como outros do passado? Mas nada disso importa: está sustentando pela fé de toda uma vida, por anos esperando aquele acontecimento divisor de águas que transformaria para sempre a existência.
As mentiras são capazes de muitas coisas, até mesmo de fazer um homem passar décadas no meio do nada, e de fazê-lo esquecer que no fundo o sentido do tempo é unicamente conduzir o ser ao seu término. A esperança de que as coisas um dia irão mudar radicalmente – essa fé que anima os corações de legiões de Drogos pelo mundo – muitas vezes nos priva da experiência da vida mesma, de seus perigos, tropeços, solavancos, explosões. É porque somos uma raça de descontentes: ansiamos por diferentes maravilhas e catarses o tempo todo. Nosso cotidiano é cinza, a rotina se baseia na estupidez, o amor torna-se cansativo e as promessas de eternizá-lo acabam por tornar os afetos um tipo de martírio – e passamos a desejar o nosso ataque dos tártaros sob a forma de um enriquecimento momentâneo, de uma viagem internacional ou de uma paixão que renove nossos instintos. É a compensação mentirosa que precisamos para suportar o deserto da vida.
Há uma adaptação do romance para o cinema, dirigida por Valério Zurline e lançado em 1976. Com trilha sonora de Enio Morricone, consegue reproduzir muito bem o clima desolador e angustiante do livro. Um vídeo com diversos trechos do filme:
Muito bom o texto, cara. Nunca tinha ouvido falar do livro e nem do autor.
ResponderExcluirTamém não consigo encontrar no Google nenhum site que tenha o livro disponível pra venda. O mesmo para o DVD.
O livro talvez seja mais fácil de achar mesmo. O Guilherme tem o DVD, sugiro que você vá até a casa dele e roube.
ResponderExcluirTem um outro livro dele que é demais: o Poema em Quadrinhos. Foi lançado pela Cosac Naify e é uma doença visual-poética. Emprestei para um amigo que sumiu, por isso siga meu conselho: nunca empreste nada para ninguém, melhor ser um mesquinho que ficar lamentado a perda de objetos queridos.
Eis o livro http://editora.cosacnaify.com.br/Loja/PaginaLivro/11492/Poema-em-quadrinhos.aspx
(espero que o amigo que sumiu leia isso aqui e volte correndo pra me devolver o livro, tenho um presente pra ele)
Acabei de ler o livro Deserto dos Tártaros de Dino Buzzati, e fiquei impactado com o final do livro. O romance é todo ele repleto de angústia, decisões tomadas na vida, e o que fazemos com o tempo. Um livro que li, por citação em outro livro. Fiquei curioso por conta do título e fui procurar. O livro me pegou. Valeu muito a leitura, para guardar na biblioteca.
ResponderExcluirAgora vou buscar o filme. Por indicações de leitores que o leram, vou procurar outros título de Dino Buzzati.
Eu recomendo o livro Deserto dos Tártaros.
Um dos melhores livros que já li! Fiquei impressionada com a capacidade do autor em transportar para o texto o drama de alguém que procura por algo que justifique a sua existência. Como bem disseram, essa história é a história de todos nós. Perfeito!
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