3.18.2012

A festa, de Michel Houellebec


O texto do post de hoje foi indicação de um amigo que faz esse projeto de noise/eletroacústico, e fiquei subitamente estarrecido pela simplicidade e força que emana de suas poucas linhas. Seu autor é o francês Michel Houellebecq, cuja obra transita entre a poesia, o romance e a teoria literária.

É um texto que fala sobre o sentido da festa para nós, bestas humanas. E publico hoje como uma homenagem invertida ao dia de São Patrício, que será logo mais festejado nos bares de várias partes do mundo e, por incrível que pareça, até mesmo aqui no Brasil. Ridiculamente tentando emular uma tradição alheia, veremos pessoas vestidas de verde, pensando que estão em algum bar irlandês ou coisa que o valha. Para muitos a data serve simplesmente "como uma desculpa para beber" - o que parece um sintoma de que precisam dar para suas ações um posto mais elevado, um motivo nobre. Entretanto, vejo as comemorações brasileiras do Dia de São Patrício simplesmente como uma versão descolada da breguice em looping eterno que foi a tietagem em torno da recente visita do príncipe Harry aqui nas terras brasileiras. Como bons selvagens que somos, o forasteiro chega acenando com espelhinhos e ficamos imbecilizados, prontos para as manifestações mais baixas de subserviência. No caso do príncipe, os espelhinhos foram inúmeros (a visita ao Complexo do Alemão, a partida de polo, etc); no caso do Dia de São Patrício, os espelhinhos se traduzem na experiência de festejar (mais) uma data alheia, dando para o ato de festejar um sentido especial" e "irreverente". Mas no fundo a síndrome de jeca e a humilhação da breguice é a mesma.

Mas vamos ao texto do Michel Houellebecq. 

A festa
O objetivo da festa é nos fazer esquecer que somos solitários, miseráveis e destinados à morte. Dito de outra forma, nos transformar em animais. É por isto que o primitivo tem um sentido da festa muito desenvolvido. Uma boa fumarada de plantas alucinógenas, três tamborins e a coisa está resolvida: um nada o diverte. Ao contrário, o Ocidental médio não alcança um êxtase insuficiente senão a custa de raves intermináveis das quais sai surdo e drogado: ele não possui de forma alguma o sentido da festa.  Profundamente consciente de si mesmo, radicalmente estrangeiro aos outros, aterrorizado pela idéia da morte, ele é totalmente incapaz de aceder a uma fusão de qualquer tipo. No entanto, ele se obstina. A perda de sua condição animal o entristece, disso concebendo vergonha e despeito; ele gostaria de ser um festeiro, ou ao menos passar por tal. Ele está numa miserável situação.

O que que eu tenho a ver com estes babacas?
“Quando dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei ali no meio deles" (Mateus, 17, 13). Eis aí todo o problema: reunidos em nome de quê? O que poderia de fato, no fundo, justificar estarmos reunidos?

Reunidos para se divertir. É a pior das hipóteses. Neste tipo de circunstância (clubes noturnos, bailes populares, festinhas), que nada têm visivelmente de divertido, uma única solução: azarar. Sai-se então do registro da festa para entrar no de uma feroz competição narcísica, com ou sem opção penetração (considera-se classicamente que o homem tem necessidade da penetração para obter a gratificação narcísica almejada; ele experimenta então algo análogo ao estalo da partida gratuita nos antigos fliperamas. A mulher, na maioria das vezes, se contenta com a certeza de que desejam penetrá-la). Se este tipo de jogo lhe repugna, ou se você não se sente em condições de fazer boa figura, uma única solução: partir o mais rápido possível. 

Reunidos para lutar (manifestações estudantis, acampamentos ecológicos, talk-shows na periferia). A idéia, em princípio, é engenhosa: com efeito, o alegre cimento de uma causa comum pode provocar um efeito de grupo, um sentimento de pertencimento, e mesmo uma autêntica embriaguez coletiva. Infelizmente, a psicologia das multidões segue  leis invariáveis: termina-se sempre com a dominação dos elementos mais estúpidos e mais agressivos. A gente se vê então no meio de um bando de arruaceiros, talvez perigosos. A escolha então é a mesma daquela do clube noturno: partir antes que o pau quebre, ou azarar (agora em um contexto mais favorável: a presença de convicções comuns, os sentimentos diversos provocados pelo desenrolar do protesto podem abalar ligeiramente a carapaça narcísica). 

Reunidos para trepar (clubes de swing, orgias privadas, alguns grupos New Age). Uma das fórmulas mais simples e mais antigas: reunir a humanidade em função daquilo que ela tem, de fato, de mais comum. Atos sexuais têm lugar, mesmo se o prazer não esteja sempre ao alcance. Já é algo; mas é apenas isto.

Reunidos para celebrar (missas, peregrinações). A religião propõe uma solução totalmente original: negar audaciosamente a separação e a morte afirmando que, contrariamente às aparências, nós nos banhamos no amor divino, enquanto nos dirigimos para uma eternidade bem aventurada. Uma cerimônia religiosa em que os participantes tenham fé ofereceria então o único exemplo de  festa bem sucedida. Alguns participantes agnósticos podem mesmo, durante a cerimônia, se sentir conquistados por um sentimento de crença; mas eles correm o risco de uma ressaca terrível (um pouco como o sexo, mas pior). Uma solução: ser tocado pela graça. A peregrinação, combinando as vantagens da manifestação estudantil com as da viagem Novas Fronteiras [nota: uma popular agência de viagens francesa], tudo num ambiente de espiritualidade agravado pela fadiga, oferece de quebra condições ideais para azaração, que se torna quase involuntária ou mesmo sincera. Hipótese plausível após uma peregrinação: casamento + conversão. Em compensação, a ressaca pode ser terrível. Prever um prolongamento em uma temporada UCPA [“Union Nationale des Centres Sportifs de Plein Air”, agência de viagens dedicada a esportes ao ar livre] “esportes de patinação”, que sempre se poderá cancelar (informar-se previamente sobre as condições de cancelamento).

A Festa sem lágrimas.
Na realidade, basta prever que iremos nos divertir para ter certeza de que iremos nos aborrecer. O ideal seria então renunciar totalmente às festas. Infelizmente, o festeiro é um personagem tão respeitado que esta renúncia acarretaria uma forte degradação da imagem social. Os poucos conselhos que se seguem deveriam permitir evitar o pior (ficar sozinho até o final, em um estado de tédio evoluindo para o desespero, com a impressão errônea de que os outros se divertem).


  • Ter bastante clareza, previamente, de que a festa será forçosamente mal sucedida. Visualizar exemplos de fracassos anteriores. Não se trata aqui de adotar uma atitude cínica e  blasée. Ao contrário, a aceitação humilde e sorridente do desastre comum permite alcançar este sucesso: transformar uma festa mal sucedida em um momento de agradável banalidade.
  • Sempre prever que se voltará para casa só, de táxi. 
  • Antes da festa: beber. O álcool em doses moderadas produz um efeito sociabilizante e euforizante que permanece sem real concorrente. 
  • Durante a festa: beber, mas diminuir as doses (o coquetel álcool + erotismo ambiente conduz rapidamente à violência, ao suicídio e ao assassinato). É mais engenhoso tomar 1/2 Lexomil no momento oportuno Com o álcool multiplicando o efeito dos tranqüilizantes, observar-se-á uma sonolência instantânea: é o momento de chamar um táxi. Uma boa festa é uma festa breve.


Após a festa: telefonar para agradecer. Esperar tranqüilamente a festa seguinte (respeitar um intervalo de um mês, que poderá cair para uma semana em período de férias).

Enfim, uma perspectiva consoladora: com a ajuda da idade, a obrigação da festa diminui, a tendência à solidão aumenta; a vida real retoma o controle.

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Sobre o autor: Michel Houellebecq nasce em 1958 em La Réunion. Forma-se em Engenharia Agronômica em 1980. Em 1985 publica poemas na Nouvelle Revue e lança uma biografia de Lovecraft (Lovecraft. Contre le monde, contre la vie). No mesmo ano aparece Rester Vivant. Sua primeira coletânea de poemas, La poursuite du bonheur, recebe o prêmio Tristan Tzara de 1992. Em 1994 aparece o romance Extension du domaine de la lutte, traduzido em várias línguas. Colabora com L'Atelier du roman, Perpendiculaires e Les Inrockuptibles. Sua segunda obra poética, Le Sens du combat, obtém o Prix de Flore de 1996. Interventions, antologia de textos críticos e crônicas, é lançado juntamente com seu segundo romance, Les Particules élémentaires, traduzido em mais de 25 línguas e premiado com o Novembre. Em 1999 publica Renaissance, nova coletânea de poemas, e Lanzarote (textos e fotografias). Passa a viver na Irlanda e, após a publicação de Plataforme (romance), na Espanha. Ali escreve La possibilité d'une île, lançado em 2005. No Brasil estão publicados A extensão do domínio da luta (Sulina, 2002), Partículas Elementares (Sulina, 1999), Plataforma (Record, 2002) e A possibilidade de uma ilha (Record, 2006). Site oficial: http://www.houellebecq.info/

A tradução aqui apresentada é de Alexandre Soares Carneiro e encontrei o texto nesse site .


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