4.19.2010

Relatório de leituras: Fante, Veyne e Goethe

Completamente doente o final de semana todo, inclusive febril na noite de sábado, meus dois últimos dias em casa foram lamentáveis. O odor acumulado de minha respiração/transpiração somou-se a tantos outros odores desagradáveis que brotavam de minhas lembranças, mas a esses odores é mais fácil se furtar: basta apenas um coquetel de remédios fortes, vem o sono e pronto, a tranqüilidade algo zen domina-me por completo e eu até sonho.

Ficar em casa curtindo uma doença, todavia, não é nem de longe algo ruim, levando-se em conta que há muito o que um homem doente pode fazer como, por exemplo, ler. E a minha leitura de convalescente foi O vinho da juventude, do Fante. Se você já leu Pergunte ao pó ou Espere a primavera, Bandini com absoluta certeza vai amar os contos desse livro. "Um de nós", o conto que na primeira orelha é indicado como um dos mais pungentes da obra, está certamente na lista das coisas mais tristes que já li, mas há momentos ainda mais tensos e poéticos, como em "Lar, doce lar" e "O Deus de meu pai". Ri muito lendo "A última jogada de Oscar" (o episódio da briga semi-xenofóbica dos garotos fala mais sobre geopolítica do que cansativos artigos de especialistas) e ri mais ainda lendo "A canção tola de minha mãe". Não me lembro do último livro que me fez rir assim, com verdadeira satisfação, e poucas páginas a frente me deixar pensativo e emocionado com as lágrimas de arrependimento de Jimmy Toscana, o alter ego que Fante deu para si nos contos reunidos nesse livro.

Algumas palavras sobre o título do livro. O vinho da juventude não é de todo ruim, afinal o vinho é quase um personagem dos contos, estando presente em praticamente todos eles. Porém o título original, Dago Red, tem um sentido completamente diferente: "dago" era o termo usado para pejorativamente designar os italianos nos Estados Unidos. O termo que em geral usa-se no Brasil (ou usava-se) é carcamano. Em uma tradução mais fiel, O vinho dos carcamanos seria mais adequado. Mas talvez as exigências politicamente corretas e/ou mercadológicas tenham norteado a decisão de suavizar o título original, se bem que eu não entendo como alguém, hoje em dia, poderia se sentir ofendido ao ser chamado de carcamano. Talvez um velhinho da Mooca fique vermelho de raiva ao ser chamado assim, mas tenho certeza que nenhum velhinho de lá lê o meu blog.

A doença que me fez recluso nesses dois dias também rendeu a redação de um novo (ou melhor, o esboço de) post para o blog da UGRA Press. Provavelmente, na próxima quinta-feira, que é o dia em que colocamos no ar as atualizações, ele será publicado. Estou ficando feliz com ele, pois me baseei em um ensaio do Paul Veyne, historiador francês que desde meu segundo ano da USP me cativou, seja pelo seu estilo elegante e debochado ao mesmo tempo, seja pelos controversos pontos de vista que ele arrisca de vez em quando. Em seu último livro, "Quando o nosso mundo se tornou cristão", por exemplo, Veyne sustenta que só nos tornamos cristãos porque Constantino se converteu. Não nega a extrema habilidade política do imperador ao levantar a bandeira dos seguidores da Cruz, mas em larga medida credita nossa herança cristã ao radicalismo de um homem só - indo contra a opinião largamente aceita de que o cristianismo, na época de Constantino, já era um culto largamente adotado no Império Romano. Para ele, a desconstrução do paganismo ocorreu de forma política, e não meramente pelo trabalho das primeiras comunidade cristãs. A diferença pode parecer sutil, mas guarda consigo uma radicalidade profunda: só falta Veyne escrever que tudo o que foi dito sobre o nascimento do cristianismo era uma bobagem.

Pausa para mais remédios. Essa semana, a leitura será Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Na quarta, coloco aqui o Canto II da Narrativa Mitológica de Curitiba. E aos que rezam, peço que rezem por mim, já que não tenho fé para isso.

Um comentário:

  1. Não pude deixar de comentar que achei o teu blog ótimo! Sem contar a forma como "constrói" teus textos... A cultura atual, tem carência de pessoas como você!
    Vou seguir pelo meu blog.
    Parabéns!

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