5.02.2013

Rito sacrificial, induzido por D.R. Hooker




Nota: para corretamente ler o que se segue, acione o play na música abaixo. Em seguida, comece a leitura.

Voltava para casa no metrô lotado da Grande Cidade, sempre abarrotado de gente de todos os tipos, tamanhos e graus de educação. E cotidianamente em frente a tantos rostos que nada me dizem, a tantos destinos com os quais não me importo e que, apesar disso, tenho que compartilhar (forçosamente, mas ainda compartilhar) o mesmo ridículo espaço de um vagão de metrô, e isso há tantos anos que é como se todos esses destinos já fizessem parte de minha família, minha enorme família São Paulo lar de todos os imbecis orgulhosos de seus preconceitos e de seus divertimentos baseados em preços altos e longas filas. E então entro no vagão lotado, me esgueiro entre todos e consigo me encostar em uma porta; ligo o MP3 (maravilha tecnológica, escudo a nos proteger do caos das multidões) os primeiros acordes de uma música desconhecida, que nunca tinha antes ouvido; presto atenção na letra, e aos poucos sinto hipertrofiar o meu desacordo em relação ao mundo; foi como uma epifania musicalmente induzida, escancarando perante os meus incrédulos olhos todos os meus pecados, todas as minhas faltas, todas as minhas omissões; e não apenas humilhado graças ao peso fatal de todas essas revelações, que anjos arremessavam sobre mim (pois nesse momento eu já via uma imensa falange de anjos rodopiando sobre mim, sobre todos ali) percebi, refletido no rosto de todos os que forçados compartilhavam aquele vagão comigo,os meus próprios pecados; e misturado ao reflexo de meus pecados misturavam-se os deles também, e estavam todos nós ali imersos em erros, em abominações; e a cada novo acorde daquela maravilhosa música, mais forte em mim se tornava a revelação de que todos somos desgraçados pecadores, que o sacrifício na Cruz jamais nos absolveu, que na verdade a morte de Cristo abriu as portas para uma nova era de crimes. Então eu ouvi, além da música, uma angélica voz sussurrar-me ao ouvido (e era o mais doce som que já ouvi em minha vida) que chegada era a hora, o momento em que toda a minha existência enfim se justificaria, o clímax redentor e definitivo. E como em um filme (mas não era um filme, oh Deus, não era) tudo ficou lento, poeticamente fluindo como em uma romântica seqüência cinematográfica, e naquela metrô cheio fedendo a pecado, lodaçal de todas as depravações, altissonante tocaram dez mil trombetas em honra ao Senhor dos Exércitos, (mas nenhum pecador pode ouvi-las, continuaram em seu impassível estado-zumbi de trabalhadores cansados e insatisfeitos) e compreendi que esse era o aviso final; vi então na minha frente o Arcanjo Miguel com seu olhar incandescente, e aquele olhar não poderia ser mais expressivo, era como uma ordem que dele emanava, e com lágrimas nos meus disse "amém!" e de suas misericordiosas mãos recebi um toque -brevíssimo, casto, como convém aos anjos- e nada mais precisou ser dito, de repente compreendi tudo: retirei da mochila o facão que tinha comprado anos atrás (sem entender o porquê, agora mais cristalino que a glória divina) e iniciei os ritos sacrificiais; o sangue das ovelhas precisava cair, o pecado extirpado para sempre, o advento de um mundo novo e santo. Como foi lindo contemplar os anjos cantando, mãos postas em glória a Ele, e os golpes de facão no pescoço das ovelhas (que antes eram simples pecadores) jorrando o sangue como em chafariz; e já eram incontáveis os gritos e gemidos, os confusos olhares de pavor e perplexidade (tolos, não sabiam que o holocausto que presenciavam era na verdade um ato de renascimento, virginal oferenda de fluidos vitais santificados, limpando o mundo do Pecado). Ouvia o choro das mulheres implorando para que eu parasse, e como aquele choro me enchia de júbilo, um júbilo muito próximo da fúria (pois naqueles choramingos havia apenas o desejo de permanecerem com suas existências de pura luxúria e depravação, essas amaldiçoadas filhas de Eva, tão corruptíveis como sua mãe). Ouvia também o grito dos homens, ou melhor, de rebotalhos de homens, fúteis espécimes masculinos que nada mais tinham da altivez moral dos heróis do passado. Arruinados por uma vida onde o pecado era a regra, não compreendiam (ou compreendiam e se faziam de tolos? Difícil discernir isso agora, os estratagemas do Inimigo são tão ardilosos...) que eu estava ali como o mensageiro da salvação eterna, a eles entregue como um presente de Deus, tendo seus anjos misericordiosos como testemunha. 

O rito sacrificial foi breve, durando tão somente o caminho entre duas estações. Chegando no Trianon, as ovelhas sobreviventes (como queria tê-las matado todas)  correram confusamente para fora do vagão; permaneci ajoelhado entre as ovelhas sacrificadas, mãos estendidas ao alto contemplando as falanges angélicas rodopiando em espiral entre os esplendores dos Nove Céus. Não demorou muito para que os policiais, esses cães do Reino do Anticristo, me imobilizassem com toda a sua costumeira truculência. Eu chorava, e minhas lágrimas eram todas feitas de uma pura e incrível felicidade. O Arcanjo Miguel observava enquanto eu era arrastado para fora do vagão. No seu olhar era notável a serenidade, a beleza, a compaixão. 

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