“Pois está-se à sombra da sabedoria como se está à sombra do dinheiro: a utilidade do saber consiste em que a sabedoria dá vida ao que a possui.”
Eclesiastes, 7,12.
Quão contraditoriamente surreal pode parecer após ingerir dois terços de ácido lisérgico ver um dono de Porsche jogando banana numa lixeira cor-de-rosa enquanto um mendigo a espera ávido para subnutrir-se não conseguiria transmitir: ainda menos poderia explicar a sensação de perguntar o preço de uma mera empada e ter como resposta R$ 8,30. Mas ao que se interessa em breves frases gratuitas, cheias de cores, frustração e dor, segue algo que desejo significativo.
Nem por vinte e quatro horas permaneci na cidade de Campos do Jordão; cheguei às treze do sábado e fugi num meio-dia chuvoso que encerrava a seca de mais de mês que assolara São Paulo. Na ida, conhecidos residentes do Crusp, república estudantil da Usp, discutiam, eufóricos, sobre Lula, PSDB e o DVD a ser exibido na Van: Mc Créu ou Pedro e Paulo, Rafael e Mateus, Mário e Dunha, qualquer dupla dessa estirpe. Enrubesço-me ao afirmar que o Créu venceu: no entanto, quiçá por sorte, o DVD do Mc quebrara e ouviu-se a dupla por infindáveis três horas.
No portal de entrada da cidade sente-se o paradoxo: casas em estilo germânico, a Suíça brasileira, erguendo-se em pompa, em vão almejando ocultar a favela que se subleva onivergonhosa acima da rua principal. Previsivelmente não aconteceu o alojamento previsto no pacote que comprara – R$ 25,00 a ida, volta e estadia. Os organizadores (?) pechincharam uma casa onde uma família – família mesmo, com cachorro e uma linda filha de quatro anos – pretendendo findar o acabamento de seu sobrado, num sublime ato de prostituição, precificou sua preciosa privacidade pequeno-burguesa para vinte e três uspianos, entre eles peruanos, colombianos, moçambicanos, por fascinantes "dez reais a cabeça" por noite. Ficamos somente uma.
Muamba instalada, seguimos famintos entre belíssimas cerejeiras rubras com folhas que secavam ao frio acanalhado da cidade-ilusão à Fantástica Fábrica de Chocolates Araucária. Sim, a cidade é infestada de Araucárias: uma árvore altíssima, monstruosamente elegante, cujos ramos, pomposos, não protegem quem está embaixo, repleta de vãos por onde se escorre o frio lancinante do universo. Não tenho câmera fotográfica, melhor, a memória dilacera o bastante. Fábrica de Chocolate: grossos casacos de pele louros assinando cheques sujos de números em troca do cacau que negros maceram: R$ 1,30 uma trufa tal qual uma azeitona. Adquiri uma barra de chocolate extra amargo por uma dúzia de contos: nem esse extra amargor do cacau pisado amarga a boca dos que lá possuem tantos valores. Fugimos de lá e fomos à Pedra do Crioulo. Eu que prevenido levara provisões da capital, comia-as no percurso, ao contrário dos outros cruspianos que desejavam com ardor uma refeição. Chegamos à Pedra onde, de acordo com um dos universitários "escravos se escondiam há cem anos dos capitães-do-mato" – a escravidão acabou, em tese, há mais de século! Além disso, próximo daquele sagrado local de refúgio e desejo de liberdade, uma placa de vende-se diante de uma mansão informava seu preço: R$ 1.000.000,00.
Uma imensa pedra com cavidades que formam grutas, esconderijos, abrigos, é a chamada Pedra do Crioulo. Após escalar a mais ampla parte da pedra, para no cimo visualizar o todo em seu completo panorama, alcei o monte que a circunda em busca de uma bela paisagem para deleitar, gratuitamente, minha alma. Percorri quinze minutos solitário na mata e, ao encontrar um lugar onde se pode ver a cidade inteira – inclusive sua favela – sitiada por uma verde cadeia montanhosa que envolve e encerra a cidade e sua vida em si própria, deparo-me com um casal e uma espécie de caseiro do lugar. Indaguei, ambicioso, se havia outra vista ainda mais bela para cima e a resposta, inesperada por minha ingenuidade, não tarda: "esse é local privado!": ou seja, fora negociada a imagem da imensidão, precificaram a divindade do horizonte espraiado junto dum pedacinho da crosta terrestre e o arremataram, como cães, marcando território com seu nome! Dou as costas – reflito no porquê do surgimento e distinção entre o vocábulo latino dare e donare e se os usavam – e regresso ao chão, implacável local de pouso, enquanto a dama de pedigree, ridiculamente linda, olhava-me sabe-se lá com o quê em mente: se na opressora altura do céu, se no vale verdejante deste mundo.
De volta à Van pus fim no derradeiro lanche e notei que as pessoas ao meu redor não se alimentavam há oito horas. Não de todo inesperado uma moça na Van em que eu estava desmaiou de fome: néscios do que fazer, verifiquei a pulsação e acordei-a; ela reafirmou sua fome mas, como alguns persistentes ainda queriam visitar o Pico do Imbiri, seguimos em frente, vimos o amplo céu espremendo a cidade e a cordilheira em derredor; novamente a menina desmaiou e, agora sim, voltamos para a casa da família que nos cedeu seu uno sonho por dez reais. Na sala da habitação, fotos dos outros filhos formados, metidos em suas becas, com suas expressões sonsas expelindo um riso que evitei ao máximo definir, semblante numa amálgama quimérica e paradoxal entre o que se poderia ser e o ser que é vendo seus desejos presos no arquivo das nove as dezoito.
Surpreendera-me no jornal um programa tentador: "show de luzes sincronizadas com música clássica no portal da cidade". Gratuito. Os cruspianos foram jantar e eu ao portal. Diamantes levaram-me aos céus e encontrei Lucy. Quarenta minutos caminhando, cheguei à entrada da cidade: artificiais palmeiras luminosas sugerindo não sei qual ilusória sensação de acolhimento caloroso se agitavam ao vento de 15º C – com impressão térmica de 9º C – primeiro ao som de Assim Falou Zaratustra, depois, e para minha surpresa por último, de um piano com uma guitarra distorcida que não pude discernir. Assim, em vinte minutos, findou-se o espetáculo gratuito que realizaram para "integrar" a pobre sociedade do Centro Comercial com o glamour anual do Festival de Inverno infectado de ricos no Centro Turístico, separados ambos por alguns minutos inefáveis e um abismo aterrador. Frustrado, aproximei-me do Centro de Recepção de Turistas e um atendente viera ter comigo. Formado em Ciências Sociais pela Usp, em Gastronomia pelo Senac de Campos, serviu-me gentilmente um chá de laranja pronto enquanto afirmava que "duas gotas de baunilha no choconhaque dá o toque de frescura que prova que o mundo é gay". Ao passo em que ele, de formação marxista, tentava convencer-me que é preciso ser rico e eu acanhadamente rebatia dizendo que, ainda pobre, jamais alguém me poderia privar o bom-gosto, via pessoas que entravam em busca do "melhor hotel da cidade" e praguejavam ao ouvir que não havia vagas, enraivecendo-se quais crianças que nunca sentiram a recusa e, dessarte, saíam bufando, batendo o pé de volta aos seus confortáveis automóveis, preparando o GPS para buscar o “melhor”. Emulo Cioran: essas pessoas são “como um vivo que, para congratular-se de não estar morto, faria estardalhaço em um caixão...” de ouro.
Farto daquilo, retornei a pé pela avenida principal da cidade, sob o lisérgico luar, informando-me com os policiais onde poderia encontrar uma bebida chamada Amélia, indicada pelo sociólogo, usada para disfarçar o frio local. Não sabiam, não encontrei, não disfarcei. Sentei-me em frente a um chafariz com as cores do arco-íris iluminando a água que em jarros fora moldada a desafiar a gravidade, ocultando sua natural estaticidade com jatos coloridos, irrepreensivelmente acanalhados; atrás de mim, ao invés de amarelos blocos de pedra no asfalto sinalizando aos motoristas a interdição de acesso, vasos de flores restringiam a rua: orquídeas de várias cores junto de margaridas vivas sob o frio-canalha que me proibi de sentir, cuja intensidade menos requer abrigo que ostentação pública de lascivas marcas e luxuosos talhes.
Retornei ao alojamento, bebi conhaque, li algumas páginas de Lobo da Estepe, do Hesse, cuja dualidade do ser (que são milhares) e a idéia da burguesia sustida pelos próprios lobos cada vez mais compreensíveis se tornam e adormeci no pequeno sofá, no Centro Comercial da cidade, enquanto os festeiros cruspianos desfrutavam o Centro Turístico da mesma.
No meu regresso à casa vira mendigos em ruas desertas caçando comida em lixeiras cor-de-rosa; jovens em carros importados – sazonais donos da região – em alta velocidade seguiam em direção ao centro turístico; crianças agasalhadas diziam no gabo da sua gordura rosada que "Campos do Jordão é a melhor cidade do mundo". Em meio a tudo isso, com a consciência alterada pelo ar ácido da noite, a alma amargada pelo chocolate entalado na garganta, o peito congelado pelo álgido universo ao redor, refleti: o mais fatídico segundo de todos os tempos na vastidão das galáxias foi quando luziu o primeiro raio de racionalidade, o mais vergonhoso, o mais hediondo, o momento em que o Mundo, espantado, parou: o um minuto de silêncio cósmico. Dias depois, abafada a indignação, relacionei essa reflexão com o cristianismo e confirmei que, para Deus, também, o momento de maior pesar sucedeu-se quando Eva, ludibriada, preferiu a fruta do conhecimento, da Razão, à Árvore da Vida, da qual fomos privados. Deixamos de ser irracionais para sermos imbecis inumanos.
Os festeiros retornaram acordando quem tentasse dormir: acordei. Narraram, ébrios, que uma das meninas que fora conosco, a enfermeira que seguia na outra Van e ajudou a moça em seu segundo desmaio, uma negra de 1,90 m, esguia, fora assediada sexualmente no Centro Turístico e levou o ser desprezível à delegacia onde o chefe de polícia, educadamente, recusou registrar ocorrência, desculpou-se com a agredida e disse que "acertaria as contas com o assediador". Ou seja, negociação de honra e pessoas. O que a moçambicana poderia fazer? Outras tantas coisas assim sucederam, mas o dinheiro imaculou o incólume nome da cidade. O herói dos nossos tempos.
Apesar de toda a anfetamina, dormi para esquecer que pude estar num lugar como aquele, onde o mais angustiante texto beckettiano, o mais impotente silogismo cioraniano, far-me-ia gargalhar perante a situação em que me encontrava. Não me interessei em conhecer o Centro Turístico – onde foram realizadas as apresentações de música erudita que tanto me apeteceram no rádio – o que vi bastou-me: sei, por conseguinte, que lá seria em excesso lancinante e a situação limítrofe mais aterradora. Minha dor interna foi tanta por pensar que domingo amanheceu em lágrimas, depois de mais de um mês sem chuva. Não pude captar o azul-perdão dos olhos do mendigo, ele me captou e enterrou-me em mim e na minha impotência vergonhosa, e nenhuma alma perceberia, na alva posterior, o silêncio que me erguera de onde jazia em pensamentos.
Pela manhã os cruspianos ligaram a televisão e assistiram qualquer coisa que passasse. Um deles, absolutamente problemático, com sua voz irritante, saiu para comprar café da manhã: pão de ovo, de milho, manteiga, leite, chocolate, etc.: R$ 50,00 ao todo em tudo que ele decidira sozinho que queria comer. Era oito da manhã. Até as quinze horas ele ficaria cobrando R$ 3,00 de cada pessoa que ele supusesse que houvera tomado café. Arduamente criticado, debatia em excesso, com sua voz grotesca, defendendo-se por ter, gentilmente, nos levado café, o mesmo que ele escolhera para si próprio sem nos consultar.
Mesquinhezas à parte descobri, com o mapa cedido pelo guia turístico, que havia na rua onde me alojara um Convento das Beneditinas que não distava cem metros. Trespassei a discreta entrada e um corredor de belíssimos cedros com odoríferos troncos, fazendo as vezes de incenso natural, preparavam a alma para o sonho, o irreal. Uma placa indicava que diariamente as monjas apresentavam, gratuitamente, Canto Gregoriano às quinze para as dezoito. Quão arrependido fiquei de haver-me iludido com o decepcionante "show de luzes" de ontem e não as ter visto, gastando minha pílula de paraíso na trilha da Odisséia no Espaço, do Strauss, decorada com palmeiras lucíferas. Fulvas margaridas e crisântemos enfeitavam o sagrado silêncio daquelas construções largas, calorosas, impecáveis, enquanto a chuva continuava a encher a lagoa artificial, repleta de Dourados, com uma pequena ilha no meio e três bancos de madeira, de onde possivelmente as celibatárias, em dias quentes, admiram a delicada natureza, e subtraem-se de seus instintos louvando aquele simulacro de obra divina feita pelos homens. Admirabilíssimo foi um arco de rosas que leva a uma caverna, natural, mas transportada para lá artificialmente, portando no centro, puríssima, uma imagem intocável de Nossa Senhora da Conceição. A artificialidade mimetizando Natura em seu estado bruto: o cume da ilusão no convento, dentro da cidade construída sobre blocos de ilusão e concreto, sustentado à vista pelo Real.
Voltei à casa, anulei-me entre os cruspianos e decidiram por mim que visitaríamos o Palácio do Governador. Por R$ 2,50, num dia chuvoso, era o máximo que eu poderia querer se se pudesse querer algo quando se vive em manada. Trotamos para lá.
Muitos policiais nos receberam, inclusive membros da Guarda Pessoal do Governador, fantasiados no seu misto de Cavaleiros e Bobos da Corte. No alto se erigia o Palácio-Museu, em seu estilo Tudor, o local onde o honrado Governador do Estado desfruta seus momentos de folga mantidos pela verba pública, na cidade mais exorbitantemente cara, com sua atroz desigualdade onde o silêncio abrupto varia entre o mendigo que padece e a lixeira decorada: sentia as “sombrias alegrias do ódio”. Após ser obrigado a revestir com uma fazenda felpuda o tênis, para não riscar o assoalho, iniciei a visita. No primeiro de uma centena de aposentos, um lustre magnífico, constituído em bronze e cristal, iluminava, em homenagem ao centenário da imigração japonesa, cerâmicas modeladas em forno de alta temperatura espalhadas sobre uma mesa rústica envernizada e sobre uma lareira, a primeira das sete que ainda veria. Armários peruanos, lustres de turmalina azul e cristal, lareiras em mármores bancos, pretos e rosas, espelhos de vidro especial emoldurados em bronze, um piano francês, livros de todos os assuntos, tapetes persas, candelabros de prata, castiçais fixos em ouro, roupas de cama alvíssimas: uma ínfima parte do que há para gozo do homem exemplar. Os Operários, da Tarsila, com três Estudos de Nu e seu genial Auto-Retrato; Paisagem de Campos do Jordão, do Milliet; Ventania, da Anita; belíssimos Di Cavalcanti; Volpi; Vicente do Rego Monteiro; esculturas em bronze, gabinetes cristãos medievais, Brecheret, inclusive A Bailarina; um quarto do tamanho de dois apartamentos do Crusp, todo mobiliado com artigos do século XVIII. Uma infinidade de lustres em inúmeras outras salas cuja entrada fora-nos vetada. Taças de cristal, de prata, de bronze: tudo para uso do eleito. Senti-me numa Idade Média às avessas: servos da gleba em favelas mais vastas e ostentadoras que o Palácio; camponeses implorando corvéias; a talha indo do servo ao nobre e voltando para aquele no Fome Zero; rejeição espiritual ao pensamento; eleições oficiais de tiranos: a decadência absoluta no seu mais requintado traje de gala.
Nos fundos da casa, passando por uma ampla espécie de estufa sem flores, à moda oriental, com uma pequena fonte central que espalha o rumor da sua queda d´água por todo o recinto de acústica perfeita, há uma capela modernista: construída por Paulo Mendes da Rocha sobre um pequeno lago, povoado de peixes de distintas cores numa água cristalina, comportando cerca de sessenta pessoas, possui um cofre ao lado do púlpito, que encerra um vinho que nunca terei condições de beber e uma hóstia que jamais me poderá saciar. Também há na capela, construída com o mesmo tipo de pedra que a Catedral da Sé, uma diminuta pia batismal e outra escultura moderna: uma espécie de Cristo crucificado transmutando-se em Pomba, uma amálgama de Filho e Espírito Santo talhado em madeira envolto em cordas trançadas da cabeça aos pés e, no peito, um buraco vazio – não há Sagrado Coração. Quem assistir a um culto na capela verá, inevitavelmente, às costas do orador, o morro que se ergue em neblina, lodo e madeirite.
Noutro jardim existe um sino brônzeo, presente chinês, que fiz questão de tocá-lo: impressionante como em cada lugar que se bate ressoa um som distinto, indo do mais retumbante trovão à nênia mais pungente e ao mais sutil e aprazível tom angelical. Uma fineza imerecida brindada reciprocamente entre países que não tem costume de tocar sino para anunciar a hora de comer.
Fugi de lá desejando que o mundo também fosse de cristal e, ao movimento mais tênue, tudo fosse ao ares. Paramos numa lanchonete: R$ 8,30 a empada! Com excessivo temor refugiei-me na Van. No percurso de volta, todos por inúmeros motivos exasperados, não pensaram sequer em DVD. Tendo chegado à Capital, fui ao mercado e comprei arroz, carne de soja, creme de leite, batata palha e água tônica: R$ 8,70.
Num extremo o Real mantendo o sonho; noutro, o sonho subsistindo apesar do real. Quais seriam as notas do Canto Gregoriano? Qual o preço da fé e da dor? A lembrança da fugacidade da memória foi o brinde da cidade, amargo suvenir.