3.11.2012

Postos de gasolina e as devoções paulistanas


São Paulo amanheceu no dia 6 de março de 2012 subitamente sem gasolina nos postos de combustível. Acostumados a utilizar o carro até para ir à padaria da esquina, o paulistano sentiu-se quase violentado pelos inescrupulosos motoristas de caminhão que transportam esse líquido supremo, espécie de sangue que mantém vivo o organismo monstruoso da megalópole. Vivo? Quando muito São Paulo é uma carcaça semimorta, apodrecida, constantemente maltratada por todos os seus habitantes – tanto os que aqui nasceram quanto os que escolheram a cidade como lar.

Uma cidade sem gasolina significa não menos carros nas ruas, mas sim o contrário: o desespero tomou conta de muitos e os postos de gasolina receberam um bando de paulistanos ávidos por abastecimento. E com todo o deselegante oportunismo que o caracteriza, os paulistanos resolveram tirar vantagem da “desgraça” alheia, e muitos postos aumentaram o valor por litro: foram relatados postos cobrando até mesmo quase cinco reais. Enquanto uns choram, outros estão ali a vender o lencinho: como sempre os problemas alheios podem ser lucrativos.

E então o melhor acontece: editoriais raivosos atacando o absurdo de uma cidade como São Paulo sofrer da falta de gasolina; âncoras televisivos esbravejando enquanto câmeras aéreas mostram postos repletos de carros; especialistas em abastecimento com predições apocalípticas de que tudo se normalizará em intermináveis dez dias; e claro as conversinhas do vulgo nos botecos, nas redes sociais, no cafezinho vespertino, assombrados com o caos generalizado que tomou conta da cidade, onde até mesmo as forças policiais entraram, salvaguardando a tranqüilidade dos fura-greves que, como bons paulistanos, desejam manter o abastecimento em ordem, a paz reinante, a gasolina para todos.

Nesse ponto a sensação de que o vômito está prestes a subir pela garganta já produz aquele desejo de ir embora da frente do computador; de deixar de lado todas essas questões que rigorosamente não me pertencem; de aceitar que o paulistano é assim mesmo, um sujeito derrotado, desprovido de qualquer sensibilidade, de qualquer ambição que esteja além das linhas do microcosmo que é ele mesmo e seus prazeres imundos. Porém, mesmo assim, com o borbulhar do vômito na garganta, vou além para comentar um fato ocorrido na quarta-feira 7 de março, produto da falta de combustível na cidade: um homem que foi assassinado após ter furado a fila em um posto.

Alguns conhecidos comentaram tristemente a notícia, exalando certa perplexidade. E de fato essa notícia causa isso: um nojo, uma sensação de que estamos diante de algo inominável. E justamente pela dificuldade em nomeá-lo me faz acreditar que esse caso não pode ser tido como algo isolado, que se destaca da realidade como um desvio da ordem, um crime, mas sim como sintoma do ambiente mental de São Paulo, essa cidade habitada por insetos que vivem como que em estado de sonambulismo perpétuo, escravos servis de tudo que é baixo, ridículo, violento e estúpido.

Tento imaginar o quadro de forma resumida ao extremo, me colocando no papel do assassino: estou há duas horas tentando abastecer o meu amado veículo; um sujeito espertalhão entra na minha frente, abusadamente tentando abastecer antes de mim; discutimos; e tomado de um ímpeto feroz, que não sei de onde nasce, mas julgando-o como correto e convicto de que estou em meu direito, mato o sujeito que tentou passar na minha frente; a espera de duas horas justifica-me, o estresse que me atormenta, a desavergonhada tentativa de me fazerem de idiota - talvez eu tenha exagerado demais, romantizando as escolhas e reflexões do assassino, mas basicamente a história é essa. Trata-se de um assassinato não por honra, por uma causa, por legítima defesa: matou-se porque alguém tentou furar uma fila. Um degrau é descido rumo à imersão completa no lodo da selvageria.

Essa fúria chegará ao transporte público? Faço profecias de que duelos a base de faca serão travados nas escadas dos metrôs insuportavelmente lotados de São Paulo. A demência dos usuários do transporte público já os insensibilizou dos empurrões nas plataformas: tidos como inevitáveis, aqueles que lamentam as trombadas são os errados, vítimas de sarcásticos olhares de repreensão daqueles que interiorizaram a violência. E nos vagões dos trens estão em gestação exércitos de seres prontos para, quem sabe, matarem outros tantos que algum dia furarem filas, ou que sejam vagarosos, ou que se neguem a fazer parte do empurra-empurra generalizado. Motivos é que não faltam para matar.

Havia mais brilho quando as brigas cotidianas eram motivadas por questões amorosas, diferenças políticas, defesas territoriais. Mas não: mata-se porque alguém furou uma fila. Se mortes ocorrem por nada é porque estamos naquele nível onde viver igualmente já não significa absolutamente nada.

Ou talvez tenha sido assim desde o princípio: os homens sempre morrendo por coisa alguma. A diferença é que antes esse nada tinha uma figuração mais atraente: uma mulher, uma utopia, uma bandeira. Agora a decomposição, atingindo uma efervescência mais acentuada, dá-nos como objeto de devoção alguns litros de gasolina. Essa devoção mostra muito a nosso respeito, refletindo-se em uma cidade contrária ao pedestre e ao caminhar lento e irresponsável; em um urbanismo pautado em vias que façam o trânsito fluir rápido; em condomínios afastados do centro, repletos de áreas verdes, feitos para atender a uma demanda por "tranqüilidade" tipicamente burguesa de certa fatia de privilegiados, e que nada mais são que simulacros de bem-estar protegidos por muralhas de medo; em todo um conjunto de áreas de entretenimento onde só se chega de carro, ou que é mais conveniente ir em um; enfim, nossa devoção pela gasolina, que ficou mais evidente com a crise no abastecimento, mostrou que esse derivado do petróleo modela em larga escala a própria dinâmica da cidade, sua geografia, sua divisão dos espaços - e também nossa maneira de ser. O que é algo triste de admitir. De qualquer maneira a essa altura, dia 11 de março, o abastecimento de gasolina já está normalizado em praticamente toda a cidade, e não se alcançou um estado realmente crítico. A lição que tiro é que, se alguma vez isso se repetir, alguém poderia distribuir armas entre todos os motoristas, como uma espécie de teste, apenas para vermos o que poderia acontecer.


2 comentários:

  1. Cara, eu vi a notícia enquanto almoçava e fiquei maravilhado. Não sei o quanto te atrapalhou, mas fiquei ansioso para que isso acontecesse aqui em Brasília.

    Já a parte do assassinato não fiquei sabendo. Difícil até raciocinar a respeito...

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  2. Não atrapalhou de fato a vida da cidade como um todo. Ficou mais a expectativa de luddistas contemporâneos e antimodernos em geral para que o caos se instalasse. Mas não foi dessa vez que viramos cenário para a continuação do Mad Max ahahaha

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