Nick Cave talvez dispense apresentações. Mas a regra da clareza me impõe uma introdução, aquela lambidinha básica que todos gostamos antes de... bem, isso com certeza você sabe.
Então é isso: músico australiano que começou sua carreira nos anos 80 com o The Birthday Party, banda relativamente desconhecida quando colocada ao lado do monstruoso The Bad Seeds, o musical dream team que acompanha Cave desde o fim de sua primeira banda. Canções como “Red right hand", “The weeping song” ou “Straight to you” são verdadeiros hinos catárticos que provam que o universo da música pop é (ou era) capaz de oferecer algo mais do que hits de verão descartáveis. Morou em São Paulo por muitos anos e reza a lenda que freqüentou os puteiros da Rua Augusta em uma época onde aquele ponto da capital paulistana não tinha o aspecto hype dos dias atuais. Além de tudo isso, Mr Cave já escreveu o argumento do filme The Proposition (2007), assinando também a trilha sonora. Também compôs a trilha de “O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford” (2007) junto com Warren Ellis, seu comparsa no Bad Seeds e no Grinderman, banda na qual Cave se dedica a músicas com uma veia mais rock e visceral.
Tudo isso já deve deixar a esse senhor nascido em 22 de setembro de 1957 bastante ocupado; mas para mostrar que ele é um artista polivalente, Cave já se atreveu a projetos literários duas vezes: a primeira em 1989 com “And the ass saw the Angel” (inédito por aqui) e a segunda em 2009 com “A morte de Bunny Munro”, lançado no Brasil em agosto de 2010 pela Record. É essa a edição que li e que servirá de base para essa tentativa de resenha atrasada.
Aos que apreciam as letras de Cave, a leitura do romance “A morte de Bunny Munro” será um deleite. Arrisco dizer que Bunny Munro poderia muito bem figurar como um dos muitos personagens que compõem o universo lírico de Cave, como o intratável Stagger Lee, o bêbado de “Brother, my cup is empty” ou ainda o assassino de “Where the wild roses grow” (uma de suas mais belas canções, com participação da Kylie Minogue, que aliás também comparece no romance). A criação de bons personagens para suas músicas foi um fator que me levou a ficar completamente extasiado quando, em 1997, pude ouvir o clássico disco “Murder ballads”. Sabe a sensação que te assalta quando você ouve um disco do caralho pela primeira vez, e tenta se apoderar de cada mínima porção daquele sentimento que –você sabe- é apenas possível em uma primeira audição? Pois bem: “Murder ballads” é para mim um desses discos. E da mesma forma que existe um hall para os discos memoráveis, há também um para os livros, e nele “A morte de Bunny Munro” já tem seu lugar. É um daqueles romances que te fisga a atenção logo nos primeiros momentos; que te enrosca pela garganta e coração e cérebro e bagos; e com o feitiço próprio da palavra escrita, conduz seus olhos até a página final com a urgência que só os bons contadores de histórias sabem suscitar.
Até aqui eu só babei ovos. Agora, vamos falar um pouco sobre a história pitoresca de Bunny Munro.
Vendedor porta-a-porta de uma empresa de cosméticos de quinta categoria, Munro é um garanhão de meia idade casado com a frágil Libby e pai de Bunny Junior, um menino de nove anos dotado de uma memória fenomenal e completamente louco pelo pai. A mulher de Munro, emocionalmente destruída após tantas traições e cafajestices do marido, suicida-se no quarto do casal após um ataque depressivo de proporções mórbidas. O episódio é o estopim de um processo de excessos alcoólicos e sexuais de Bunny Munro, que leva o filho consigo em uma viagem por cidadezinhas decadentes nas cercanias de Brighton, litoral sul da Inglaterra, lugar onde a família Munro (e o próprio Cave) reside.
Algum imbecil do The Times considerou o livro como “o mais indecente que já li”. Desconfie dessa informação marqueteira presente na contracapa, leitor: o livro é repleto de obscenidades sim, mas não é só isso. Há inúmeras depravações (algumas flertando com a pedofilia), mas o que soa desagradável (e constrói o tipo lamentável que é Bunny Munro) é que os excessos sexuais, reais ou imaginários, surgem como antídotos para situações problemáticas. Por exemplo, logo no começo do romance, durante o enterro de Libby: incapaz de suportar os olhares acusadores que a sogra e as amigas da falecida, em uma solidariedade bastante feminina, lançam contra ele (olhares que para Munro são a prova que as amigas queriam mesmo é dar pra ele), nosso vendedor de cosméticos taradão sai no meio da cerimônia e soca uma punheta em um banheiro público ao lado da igreja.
Muitos outros exemplos podem ser listados. O capítulo 3, que descreve o trajeto de Bunny Munro em seu Punto amarelo pela via litorânea de Brighton, é magnífico: de ninfetas a MILFs bundudas, nada escapa aos olhos de lobo esfomeado de Munro, que termina o capítulo batendo uma dentro do carro enquanto no rádio toca “Spinning around”, música de Kylie Minogue que, junto com Avril Lavigne, é uma de suas mais recorrentes obsessões onanísticas. Masturbação, porém, é algo que todos fazem e nisso não há nada de indecente, partindo do princípio que você não é um crítico literário do The Guardian; mas quando vemos que o sujeito tá fazendo isso ao meio dia, dentro de um carro, minutos após estuprar uma garçonete (o que ainda não está claro nesse ponto da narrativa), pensando em trepar com a esposa quando chegar em casa e limpando o pau em uma meia dura de porra que guarda embaixo do banco exclusivamente para esse fim, percebemos que o apetite sexual de Munro é digno de atenção.
Apetite que é o instrumento fatal que conduzirá esse homem de trapalhada em trapalhada, todas ridículas e algumas incrivelmente tristes – como a visita que ele faz a Pamela Stokes, uma “cliente muito generosa” segundo um colega de trabalho de Munro. Após um diálogo surreal sobre cremes hidratantes, onde Bunny declara à provocante Pamela que ama bucetas mais do que a própria vida, o capítulo termina assim:
“Bunny desliza da poltrona e cai de quatro no chão e, com movimentos que parecem de um recém-nascido ou de uma criança inexperiente, engatinha pelo carpete surrado do duplex de Pamela [em direção a ela] com um tubo de creme para as mãos no punho fechado, um foguete dentro da cueca e uma pequena trilha de lágrimas atrás de si.”
Não é a primeira vez (e nem será a última) que veremos esse homem em estado de excitação sexual intensa e, ao mesmo tempo, vertendo lágrimas de puro desespero. O livro mesmo não é exatamente a história da morte de um homem (ou antes não é apenas isso) mas antes uma espiral de absurdos sexuais aditivados com muito álcool de um recém viúvo incapaz de agir de outra forma –como se uma força inexorável o levasse a cometer todos os excessos para, no final, aniquilá-lo.
Isso ficará mais claro no final do livro. Antes, porém, algumas breves palavras sobre Bunny Boy, o filho de Munro.
Como uma ilha de pureza e inocência, Bunny Boy faz o contraponto nessa narrativa repleta de personagens degradados. O mundo adulto e, em especial, o comportamento enlouquecido do pai surge aos seus olhos como absurdo e insensato; todavia, apesar de sua incompreensão, Bunny Junior ama profundamente o pai e o admira mesmo quando percebe que nada do que ele faz parece correto. É sintomático (e nisso vemos um traço da construção bem feita por detrás desse romance ligeiro) que a partir da segunda parte do romance o adorável menino assuma o posto de “navegador” na viagem de três dias pelas cidades litorâneas do sul da Inglaterra: o pai lhe dá um mapa e lhe outorga o papel de guia enquanto, supostamente, ensina ao filho os truques da profissão de vendedor. É assim que Bunny Munro acredita que está cuidando do filho. Na verdade, é o contrário: Munro não tem nada a ensinar e é aquele inocente garoto, com seus gestos cuidadosos mas ainda inconsciente de sua força (pois ainda é um menino), que guia o pai tresloucado, limpando o sangue que escorre de seu nariz ou colocando uma flor de plástico na lapela do seu paletó.
Mas mesmo a bondade do menino não salvará Bunny: em uma espécie de sonho, o fantasma de Libby surge para o filho e o prepara para a morte do pai. Os momentos finais do livro, de alta densidade poética, mesclam delírio e realidade; personagens de todos os momentos do livro ressurgem em uma festa completamente sem sentido, o tom enlouquecido da narrativa se suspende e, como na canção “Loverman”, mais um dos hinos de Nick Cave, a calmaria é apenas um momento na exata medida para que o caos se instaure com toda sua violência – e então Bunny Munro morre e sabemos quem esteve ali o tempo todo, dando-lhe um sex appeal kitsch desde a adolescência, fazendo covinhas em suas bochechas, ajudando-o a abrir as pernas das mais tímidas mulheres, deixando seu topete idiota como uma antena sempre pronta para captar a tensão sexual de suas clientes marcadas pelo tédio e derrota típicos de uma classe média decadente. Surpreendente final, completamente coerente com a forma algo trágica que parece marcar a produção de Cave.
Há rumores de que o livro em breve ganhará as telas no formato de um seriado para a TV inglesa. Rezemos ao Senhor para que isso chegue por aqui. Enquanto isso leia o livro e deleite-se com o talento de Nick Cave.
Eu não tenho nem o que falar. Esse livro é simplesmente genial, e transpira sexualidade, como tudo que o Nick Cave faz. O fato do livro se tratar de alguém que lida de maneira conflituosa com a sua sexualidade é maravilhoso...
ResponderExcluirLe, seu texto ficou ótimo e conseguiu transmitir exatamente tudo aquilo que o livro quer dizer.
ResponderExcluirLi em janeiro e já estou com vontade de reler.
Beijos
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCharles,
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Sou fã de Cave desde a primeira vez que o ouvi, quando tinha uns 19 anos. Foi uma descoberta um pouco tardia, na época eu já ouvia muita coisa de metal/hardcore/punk, mas nem mesmo as ferocidade do crust mais sujo tem a violência sentimental das músicas dos Bad Seeds... E sim, Bunny Munro é um livro de excessos, de loucura, de transbordamento em forma de literatura – praticamente um catártica canção do Mr Cave em formato de romance. Não sei se estou apto a indicar obras nessa linha, acabo escrevendo sobre obras que me interessam de algum modo, e minhas tentativas de crítica são sempre embebidas de um profundo gosto pessoal. Prefiro falar de dois livros que, acredito, possam te interessar:
"Do fundo do poço se vê a lua", do brasileiro Joca Terron: romance que joga no liquidificador o centro velho de São Paulo, teatro, transsexuais, Elizabeth Taylor e o Cairo. Embora sejam livros bem diferentes, compartilha com Cave da forma multifacetada de compor a narrativa, mesclando pontos de vista e temporalidades com um resultado labiríntico.
"Espere a primavera, Bandini", do norte-americano John Fante. Esse livro é uma beleza do início ao fim. Narrando as desventuras do pequeno Arturo Bandini e sua família em um inverno barra-pesada, em um meio familiar de italianos imigrantes que dão duro para ganhar a vida, há espaço para lirismos e transbordamentos de ódio e paixão. Foi após ler Fante que o Bukowski decidiu de modo irregovável se tornar um escritor, justamente por encontrar em seus escritos uma carga tão alta de sentimento que parecia escorrer VIDA das páginas - e não é exagero nenhum falar isso.