11.01.2010

O Universo como um rascunho


"O mundo talvez seja o rascunho rudimentar de algum deus infantil, que o abandonou pela metade, envergonhado por sua execução deficiente; é obra de um deus subalterno, de quem os deuses superiores se riem; é a confusa produção de uma divindade decrépita e envelhecida, que já está morta."


David Hume escreveu isso 1779 no seu livro Diálogos Sobre a Religião Natural. Não sei o impacto que tais palavras poderiam ter causado na época, mas não me admiraria que tivessem provocado um escândalo -ou então, o que é mais provável, um maciço silêncio. Um não-falemos-sobre-isso. Porque as palavras de Hume não estavam apenas se levantando contra a ordem teísta, mas em afirmar, de uma forma absolutamente brilhante, o caráter caótico e irracional do universo, esse "rascunho rudimentar" onde estamos e do qual não sabemos o significado.

Durante séculos afirmando que o mundo é a maravilha da Criação; durante séculos erigindo uma cultura onde a Natureza era tida como algo perfeito; durante séculos adestrados na ilusão de que tudo ao nosso redor obedece a alguma razão que, embora desconhecida, nunca deixa de operar: as palavras de Hume não consolam, mas sim atiçam a Desconfiança, essa tão necessária virtude que não figura nos livros sagrados.

Foi no ensaio "El idioma analítico de John Wilkins", de Borges, que conheci a citação de Hume. Nesse ensaio o escritor argentino examina a tentativa algo quixotesca de Wilkins de construir um idioma universal. Para tanto, dividiu o universo em quarenta categorias; estas se subdividiam em outras diferenças, subdivisíveis ainda em espécies. Por exemplo, nesse complexo idioma a sílaba de quer dizer elemento; deb é o fogo, considerado o primeiro elemento; e deba uma porção do elemento fogo, isto é, uma chama. Cada letra, assim acrescida, ia incrementando o sentido do vocábulo inicial e cada palavra, através de um mínimo de signos, teria um significado completo em si mesma.

Hjelmslev falou em um de seus livros que o mundo é um continuum amorfo onde a língua materna do indivíduo vai efetuar recortes, divisões e valorações. Isso explica por que esquimós têm cerca de quarenta palavras diferentes para designar a cor que comumente chamamos de branca, e também explica que para alguns povos o arco-íris tem não sete, mas quinze, dez ou até mesmo duas cores. Enxergamos o mundo de acordo com a nossa língua materna, o que é o mesmo que dizer que temos do mundo -o continuum amorfo de Hjelmslev- uma porção reduzida, um fragmento, uma coleção de moldes mentais arbitrários.


É o caos então que rege a cultura? Recorrerei a outro trecho do ensaio de Borges para dar um exemplo que me parece bastande engraçado. Ele cita uma enciclopédia chinesa antiqüíssima chamada "Empório celestial de conhecimentos benévolos" que divide os animais segundo as seguintes categorias:

(a) os que pertencem ao Imperador;
(b) embalsamados;
(c) adestrados;
(d) leitões;
(e) sereias;
(f) quiméricos;
(g) cachorros soltos;
(h) incluídos nesta classificação;
(i) os que se agitam como loucos;
(j) inumeráveis;
(k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo;
(l) etcétera;
(m) que acaban de sair do ventre;
(n) que de longe parecem moscas.

Pouco importa que essa classificação tenha feito algum sentido para os chineses de centenas de anos atrás: o que essa divisão absurda mostra é que qualquer tentativa de dar ao mundo uma ordem racional será ridicularizada no futuro. Não se trata de apostar as fichas em um evolucionismo barato que, sabemos agora após tantos desastres, é uma ilusão. Trata-se da necessária clareza que, por mais difícil que seja, é necessário manter no espírito antes de elevar o homem moderno e suas idiossincrasias ao patamar titânico de eterno. Porque após alguns poucos milênios de história conhecida o que parece eterno é o engano, a estupidez e a repetição dos erros, o mais tudo é passageiro.

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