Canto I
Chegaram à cidade de Curitiba em uma fria manhã sem nuvens de Sexta-feira Santa. Lembraram-se com emoção do Nazareno que morreu na Cruz logo que deixaram o ônibus, mas essa emoção passou rápido pois foram surpreendidos por uma visão: campos sem fim com centenas de Cristos crucificados, um Cristo para cada pecado cometido pelos homens. A visão ocorreu de forma simultânea para os três: não foi preciso que comentassem um com o outro o que tinha ocorrido. Isso secretamente os alegrou pois mostrava, de forma a não deixar dúvidas, que a decisão de comemorar os Mistérios da Páscoa em Curitiba tinha sido acertada, marcando o início de dias preenchidos com cânticos selvagens, orgias lúdicas e fruição estética de objetos sem beleza.
Foram recepcionados calorosamente na rodoviária por um judeu casado com uma italiana. Moravam na cidade há algum tempo, sendo amigos do Peregrinos desde “há inúmeras gerações”, como gostavam de falar, se entendermos gerações em um sentido não vulgar e sim relacionado com a idéia de samsara. O judeu e a italiana viviam afastados do centro de Curitiba, em uma filial do Templo da Juventude Psíquica. No Templo havia 7 gatos, 23 serpentes e infinitos quartos: em cada um deles habitava um vício e uma mentira. Os Três Peregrinos resolveram acomodar-se no mesmo dormitório, que ficava defronte ao que o judeu e a italiana utilizavam. Um dos sete gatos gostava de arranhar a porta do quarto dos Peregrinos quando estava fechada; conta-se que aquele gato habitava ali desde muito antes dos Tempos Históricos, e que a presença do Templo consistia para ele uma espécie de profanação. Não se sabe que deuses eram profanados, e nem mesmo quem conseguiu descobrir isso; eram deidades para sempre esquecidas, cujos nomes permanecem codificados nos miados dos felinos.
Os Peregrinos, cansados da viagem, não resistiram ao conforto do quarto e adormeceram por algumas horas logo após o almoço. Enquanto dormiam, o judeu e a italiana desenharam um detalhado plano para a noite de Sexta-feira Santa. Estavam entusiasmados: fizeram uma enorme lista de ritos, compromissos e lugares para visitar, e sua empolgação foi tamanha que estabeleceram atividades para os outros dois dias também, tudo para que as horas fossem preenchidas, ricamente preenchidas. O próprio ato de escrever a lista lhes causou imensa satisfação. Sorridentes, foram despertar os Peregrinos de sua sesta preguiçosa, encorajando-os a se preparem para os compromissos noturnos. Sabiam: seriam dias vividos não vulgarmente como um feriado, como uma desesperada tentativa de diversão, mas sim como uma experiência de criação intensa de realidades complexas, de novos limites cognitivos, de sensibilidade paradoxais. Mesmo que tudo isso, no fundo, não signifique nada – tanto os Peregrinos como o judeu e a italiana sabem e sentem que a Vida é nulidade, engano, ilusão e traquinagens do intelecto tentando justificar que no fundo não é nada disso.
Já começava a noite quando deixaram o Templo entregue aos caprichos dos 7 gatos e das 23 serpentes. O destino dos nossos falidos heróis era o centro de Curitiba, especificamente o Largo da Desordem: espécie de último resquício do passado da cidade, cristalizado nas construções antigas, o Largo da Desordem é repleto de bares que invariavelmente estão cheios. O vulgo em peso povoa as mesas e, como não poderia deixar de ser, bebe incontrolavelmente. Contudo, a embriaguez dele esgota-se em si mesma; quando muito alguém se torna agressivo ou melancólico ou ridículo; a agressividade tem ao menos o mérito de colocar o indivíduo em uma situação de perigo, fator que o tira da normalidade sufocante que é uma verdadeira ruína para o espírito. Mesmo assim, é uma ferocidade sem brilho algum, assemelhando-se a cães que disputam um osso encontrado ao acaso. Mas de qualquer modo havia mesas e lugares para os Peregrinos e seus anfitriões se sentarem, o que fizeram sem demora nas mesas pouca iluminadas do Schwarzwald, endereço presente na lista de lugares-para-ir feita pelo judeu e pela italiana enquanto os Peregrinos dormiam e sonhavam. Escolheram o lugar por dois motivos complementares: por se tratar de Sexta-feira Santa e por ali se servir carne de onça e carne de javali. Em uma estúpida encenação ritualística (e conscientes da estupidez) pediram bebidas e os dois pesados pratos. Da carne de onça era possível ver o sangue escorrendo, já que era servida crua, e a do javali o aroma da gordura cozida chegava a ser nauseante. Mas os limites do corpo existem justamente para serem estendidos ao máximo, na busca pelo ponto onde a configuração saudável dos órgãos se encontra comprometida; os resultados não físicos do esforço se justificam, como por exemplo a visão mais ampla da realidade obtida após uma semana sem dormir, ou a sensação de superioridade espiritual fruto da escalada de vertiginosa montanha em trajes menores. Para os Peregrinos, o abuso de carnes na data em que o Nazareno morreu serviu como um ato simbólico de negação; ao mesmo tempo, comportava uma ânsia por intoxicar o sangue com substâncias mortas. Tal intoxicação ocorreu: sentiram-se pesados, gordos e incapazes de pensamentos ou ações sublimes, e preparados para uma noite sem descanso. Pouco depois do Ritual de Intoxicação, chegaram ao Schwarzwald as Amigas do judeu e da italiana: uma delas era a Loira e a outra a Morena. Trajavam provocantes vestidos negros e imediatamente despertaram a atenção dos intoxicados Peregrinos (uma delas desempenhará um importante papel nessa Narrativa Mitológica, ainda no desenvolvimento do Canto I). Suscetíveis estavam a qualquer menção de feminilidade, e a das Amigas era de uma espécie que levantava paus apenas com uma breve insinuação.
Para que uma noite de Sexta-feira Santa seja realmente comemorada em Curitiba, os Peregrinos instituíram que era necessário render homenagens a um ídolo presente nas extremidades do Largo da Desordem: a estátua do Cavalo Babão. Rodeado por jovens almas completamente imersas em um niilismo passivo que faria Nietzsche arrancar os fios do próprio bigode, nas redondezas da estátua do Cavalo Babão vagam aqueles comerciantes que vendem brincadeiras mais divertidas já vistas – ou seja, traficantes. Os Três Peregrinos os reconheceram pelas suas características universais: sempre quietos, parados nos lugares semi-escuros e pouco movimentados, sérios, compenetrados como monges. Em um determinado momento da noite foram até lá para munirem-se de ácidos, acompanhados por uma das amigas da Loira e da Morena. Essa amiga chamava-se G. e tinha se juntado ao grupo fazia apenas alguns minutos; levou os Peregrinos para falar com um tal de Traficante do Capuz, cujas pílulas eram famosas entre os curitibanos. A negociação foi breve: saíram de lá com o suficiente para uma noite. G. ofereceu as pílulas aos Peregrinos colocando-as em sua boca e beijando-os, molhada e libidinosamente. Dizia-se que ela era uma bruxa e que aprendeu a arte de beijar em cerimônias de osculum obscenum praticadas amiúde nas terras do sul. Talvez daí se explique por que os Peregrinos tenham ficado com uma sensação muito viva de que o beijo de G. continha algo fecal e demoníaco, especialmente para o peregrino mais alto e que nunca dormia, que foi favorecido com beijos de ácido mais calorosos.
Desse ponto em diante a noite dos Peregrinos entrou em seu momento de ascensão, delírio e aventura. Sempre acompanhados do judeu e da italiana, seus anfitriões, e também das Amigas, nossos heróis percorreram as ruas centrais de Curitiba. Perdidos, alheios, gozando da influência dos beijos de ácido de G., entoaram os cânticos tradicionais da Sexta-feira Santa, celebrando o assassinato ritual do Nazareno segundo a exegética da Morte do Passado, ou seja, como um momento feliz; e dentre os muitos significados de tal morte, trataram de deixar claro que, como Jesus estava morto, tornava-se ilógico falar de pecado; devido a isso, pelo menos até a Páscoa, os pecados estavam suspensos e todas as ações não poderiam ser julgadas como boas ou más, justas ou injustas, já que deus estava ausente das coisas do mundo.
O clima de licensiosidade iniciado com a Intoxicação por Carne e hipertrofiado com os Beijos de Ácido de G. levou-os ao Blood, um lugar qualquer de Curitiba que não vale a pena explicar. Ali, os fatos que merecem ser enumerados se resumem a três: a Longa Conversa sob a Árvore do Vício, que fica na região exterior do Blood, cercada por areias impuras; nessa conversa tudo o que existe no mundo foi discutido e analisado sob inúmeros pontos de vista, todos estúpidos; a irritação de alguns machos locais, que odiaram a presença dos Peregrinos no Blood, talvez por os considerarem estrangeiros em sua cidade, típico bairrismo curitibano que os próprios Peregrinos consideram correto e desprezível ao mesmo tempo; e por último o ataque sexual sofrido pelo Peregrino de aspecto vampírico, que sucumbiu aos encantos da Morena. O intercurso entre os dois foi selvagem, bêbado e indecente, sendo que a Morena, uma sucubus em estado ideal, tratou de sorver praticamente todo o vril do peregrino de aspecto vampírico, chupando-o no pescoço. A ferida daí resultante permanece lá até hoje – o que nos deixa espaço para imaginar qual seria o resultado se a ela fosse dada a oportunidade de sugar o seu pau.
Há determinadas noites que deveriam ser eternas; entre o ocaso e o resplandecer do sol há mais vida do que em qualquer outro momento do dia. Os Peregrinos sabiam disso, e na volta do Blood para o Templo, onde moravam os 7 gatos e as 23 serpentes, seus espíritos rememoravam os acontecimentos de há pouco, assim como, sem nada dizer, amarguravam o final da noite, da primeira noite em Curitiba.
p.s.: Narrativa Mitológica de Curitiba é um relato dividido em partes. Esse é o Canto I. A Introdução e o Exórdio podem ser lidos aqui.