11.04.2009

"Miguel e os demônios", do Mutarelli

Este mês faz um ano que li "A arte de produzir efeito sem causa", o primeiro romance de Mutarelli lançado pela Companhia das Letras. Lembro que ganhei o livro na sexta-feira à noite, durante minha festa de aniversário; a festa acabou, todos foram embora; antes de ir para a cama, lá por volta das 2h00 da manhã, peguei o livro e só o larguei pela manhã, varando a madrugada na leitura, até chegar ao final. Foi um de meus melhores aniversários.

Na última sexta-feira comprei o novo romance do Mutarelli, "Miguel e os demônios, ou Nas delícias da desgraça". E da mesma forma que em seu último romance, as 115 páginas foram lidas em apenas algumas horas. Tem tudo: tortura, sexo sujo, pedofilia, satanismo (a constante presença das moscas ao longo do romance me parece ser uma alusão a Belzebu, demônio cujo nome significa "senhor das moscas") e coisas ainda mais bizarras. O estilo do velho Muta está, neste novo trabalho, mais direto, mais seco. Tentei ver arestas e sobras relendo algumas páginas antes de começar a escrever este post - mas nada encontrei. A precisão e a secura de seu estilo, burilados desde os tempos do insuperável "Transubstanciação" (e será sempre uma pena que ele não desenhe mais), parecem ter alcançado em "Miguel e os demônios" um patamar superior, com recursos narrativos que flertam com a linguagem do cinema, como no trecho:

- Pelo cheiro, o presunto está aí há uns três dias - diz Pedro,
Miguel concorda, com a cabeça. Examina o cadáver. Parece em transe. Pedro vai para a viatura e aciona a central pelo rádio.

Sépia.
Terreno baldio. Imagem borrada, luz difusa. Lembrança.
Um menino solitário brinca com um graveto. Miguel, menino. Detalhe da mão do menino erguendo o graveto para o céu. O graveto acompanha o percurso de aviões que passam. Esquadrilha da Fumaça. O menino tropeça em algo e cai. Percebe um cão vira-latas morto a seus pés. O menino se levanta e com o graveto cutuca, levemente, o cão.

- Miguel!
Miguel retorna do transe e percebe que faz o mesmo com a carcaça do homem. O plástico derretido encapa as mãos e a cabeça. (...)


Se isso é experimentalismo do Muta ou o romance foi composto pensando na telona pouco importa: o resultado é um texto que joga responsabilidades para o leitor. Forçosamente, o leitor recria as imagens sugeridas pelo texto, baseado em seu repertório imagético.

Daí é possível entender por que a Companhia das Letras chamou o novo livro de "antirromance" na contracapa. Confesso que ao ler "Neste antirromance policial do autor de O cheiro do ralo..." eu desconfiei de imediato do tom marqueteiro. Mas de certa forma pode-se dar o mérito ao texto do Muta pela mescla radical com a linguagem cinematográfica. Afinal hoje, apesar da decadência cultural como um todo, lê-se muito mais do que antes; e apesar disso, é inegável que vivemos em tempos intensamente visuais (a maioria esmagadora de meus amigos são designers ou de alguma forma ganham a vida trabalhando com imagens). Frente a isso, uma pergunta que eu ainda não respondi: um romance como "Miguel e os demônios", cuja leitura é também um exercício prático de criação de imagens (de imagens cinematográficas, vale lembrar) pode ser considerado um precursor da renovação da linguagem romanesca?

Ainda não tenho a resposta. Se você achar alguma, me conta. Enquanto isso, vá ler "Miguel e os demônios" e deixa de perder tempo com este blog. Fade.

6 comentários:

  1. Guiverme5:55 AM

    Vai virar filme sim Lê, já foi escrito como esse proposito, eu li que o Mutarelli não manja escrever roteiros de forma "academica", entao escreveu o roteiro em forma de romance. Bem agora que você já está amaldiçoado, passo esses dias na sua casa para um bate-papo e levarei meu amigo Cibele....

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  2. Bom, um comentário necessário: há uma diferença entre foder um cu e uma buceta. Uma diferença considerável. O Miguel não percebia isso ao foder a (ou o?) Cibele. Ou será que ele (ela?) tinha uma bucetinha? Ou o poder de um sucubus faz com que um homem confunda o doce prazer do sexo anal com uma piriquita?

    Passa lá em casa, sim. Há um mate novo por lá, cabrón.

    Fade out

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  3. Não conhecia esse escritor, mas já está na minha (imensa) listinha de compra.

    E gosto desses livros que você lê de uma vez só. Certo sábado eu estava em casa doente e li "Mutações" da Liv Ullmann. Foi uma experiência e tanto!

    Beijos

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  4. Guiverme9:23 PM

    é, 5 da manhã e resolvi vir aqui escrever....dormir é fútil. Bem, conversamos disso e eu to sem o meu livro aqui, ta com o Jacob, mas tem trechos que deixam bem claro que é um travesti. Até pelo fato do Delegado ter ficado envergonhado a ponto de pedir para o Miguel mudar para outro departamento se não me engano. Na conversa que o Miguel tem no hospital tem uma parte que Miguel fala que não percebeu que era um travesti, só depois (ou simplesmente eu acabei de inventar isso no delírio de sono).
    Outra coisa, procurei sobre o "livro da capa preta" e realmente só achei sobre o Cipriano, vou reler o livro pra ver se acho a ligação, porque realmente não lembro de nada parecido (com 16 anos e sequelas pelo caminho o rock teria vergonha se eu lembrasse). Se achar algo interessante, avisar-te-ei. Ainda tem mais coisas para falarmos sobre o livro.
    AAAAA o mais legal, estava passando um documentário sobre travestis na Índia, os Hijdras. Certeza que eles piram numa tromba de Ganesh (Turu PHSIIIII) (plateia aos risos forçados em tom sepia )

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  5. Anônimo4:36 PM

    O livro é FODA!

    Anselmo - minervapop.blogspot.com

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  6. Anônimo4:40 AM

    com certeza, o livro traz o gosto inconfundível do autor - sempre com a inclusão de histórinhas obscuras no texto (obaaaa!!!) - e a rápida descrição impecável. sobre o travesti, Miguel realmente estava "encantado" e acabou não notando que alguma coisa - talvez grande, talvez minúscula - pendia entre as pernas de cibele. realmente isso é estranho, mas dizem que existe um tal de amor à primeira vista...

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