Terminei a leitura de "Enquanto Agonizo", de William Faulkner, romance de 1930 que narra a saga dos Bundren, uma família de brancos pobres do interior do Mississipi. O período de composição da obra, segundo análise dos manuscritos, cerca de oito semanas - entre 25 de outubro e 29 de novembro de 1929. Faulkner escreveu o romance quando trabalhava como vigia noturno na usina hidrelétrica da Universidade do Mississipi e, segundo nota do editor que corrigiu o manuscrito, na maioria das vezes de madrugada - um exemplo de dedicação ao ofício de escritor e também a prova de que era um péssimo vigia.
A história: Addie Bundren, matriarca da família, morre. Para cumprir a palavra dada à esposa, que pediu para ser enterrada em sua cidade natal, Anse, o marido, leva os filhos Jewel, Darl, Cash, Dewey Dell e Vardaman a empreender uma desvairada viagem para levar o corpo de Addie Bundren ao seu descanso final. E o trajeto, que desde o começo já se mostrava um enorme desafio, transforma-se em uma seqüência de erros e golpes de azar que esta família enfrenta sem nem mesmo perceber, com qualidades dignamente estóicas.
Duas coisas a pontuar sobre a estrutura da obra: os capítulos recebem o nome dos personagens, que assumem o papel de narradores em primeira pessoa. Isso produz uma polifonia caleidoscópica no texto, onde um mesmo acontecimento é, por vezes, narrado de diferentes pontos de vista. Além disso, Faulkner conseguiu dar a cada um dos Bundren (cujos nomes registram a maioria dos capítulos) uma voz particular, identificável por certos traços estilísticos: frases que se repetem, escolha das palavras e até mesmo detalhes de pontuação. E no personagem Vardaman, o mais jovem dos Bundren (tudo indica que não deve ter mais do que dez anos), esta caracterização adquire seus contornos mais bem-sucedidos, com uma dicção acelerada, às vezes quase caótica, reflexo daquele espanto tipicamente juvenil perante o mundo, que se expressa na dificuldade de encaixar a realidade nas palavras e na incompreensão de certos rituais do mundo adulto. Cito abaixo um pequeno trecho de um dos capítulos mais legais de Vardaman, onde ele observa os urubus que os acompanham desde o início de sua jornada:
"Darl e Jewel e Dewey Dell e eu estamos subindo a colina, atrás da carroça. Jewel voltou. Veio pela estrada e subiu na carroça. Ele veio andando. Jewel não tem mais cavalo. Jewel é meu irmão. Cash é meu irmão. Cash tem uma perna quebrada. Nós consertamos a perna de Cash, então ela não dói. Cash é meu irmão. Jewel é meu irmão também, mas ele não está com a perna quebrada.
Agora eles são cinco, altos em pequenos e altos círculos negros."Outro aspecto que me chamou a atenção é o estado de quase incomunicabilidade existente entre os personagens. Eles pouco se falam ao longo do romance. É o mundo interior de cada um que tece a narrativa, um mundo de desconfiança, lacunas e de densa melancolia. Isso me fez lembrar "Vidas Secas", do mestre Graciliano Ramos, cujos personagens também padecem do mesmo problema de comunicação. Mas excetuando esta coincidência e o fato de que ambos os romances retratam famílias de regiões rurais, nada mais há em comum entre os textos de Faulkner e do escritor alagoano. Contudo, aos que gostaram de Vidas Secas, tenho certeza de que também se deliciarão com a batalha dos Bundren pelo Mississipi. Como eu também me deliciei, praticamente lendo o livro todo em uma noite de pouco sono.
Edição de onde o trecho acima foi retirado: FAULKNER, Willian. Enquanto agonizo. [tradução Wladyr Dupont]. Editora Mandarim. São Paulo, 2001.
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Edição de onde o trecho acima foi retirado: FAULKNER, Willian. Enquanto agonizo. [tradução Wladyr Dupont]. Editora Mandarim. São Paulo, 2001.
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