8.29.2009

Enquanto Agonizo, de William Faulkner - brevíssima resenha

William FaulknerTerminei a leitura de "Enquanto Agonizo", de William Faulkner, romance de 1930 que narra a saga dos Bundren, uma família de brancos pobres do interior do Mississipi. O período de composição da obra, segundo análise dos manuscritos, cerca de oito semanas - entre 25 de outubro e 29 de novembro de 1929. Faulkner escreveu o romance quando trabalhava como vigia noturno na usina hidrelétrica da Universidade do Mississipi e, segundo nota do editor que corrigiu o manuscrito, na maioria das vezes de madrugada - um exemplo de dedicação ao ofício de escritor e também a prova de que era um péssimo vigia.

A história: Addie Bundren, matriarca da família, morre. Para cumprir a palavra dada à esposa, que pediu para ser enterrada em sua cidade natal, Anse, o marido, leva os filhos Jewel, Darl, Cash, Dewey Dell e Vardaman a empreender uma desvairada viagem para levar o corpo de Addie Bundren ao seu descanso final. E o trajeto, que desde o começo já se mostrava um enorme desafio, transforma-se em uma seqüência de erros e golpes de azar que esta família enfrenta sem nem mesmo perceber, com qualidades dignamente estóicas.

Duas coisas a pontuar sobre a estrutura da obra: os capítulos recebem o nome dos personagens, que assumem o papel de narradores em primeira pessoa. Isso produz uma polifonia caleidoscópica no texto, onde um mesmo acontecimento é, por vezes, narrado de diferentes pontos de vista. Além disso, Faulkner conseguiu dar a cada um dos Bundren (cujos nomes registram a maioria dos capítulos) uma voz particular, identificável por certos traços estilísticos: frases que se repetem, escolha das palavras e até mesmo detalhes de pontuação. E no personagem Vardaman, o mais jovem dos Bundren (tudo indica que não deve ter mais do que dez anos), esta caracterização adquire seus contornos mais bem-sucedidos, com uma dicção acelerada, às vezes quase caótica, reflexo daquele espanto tipicamente juvenil perante o mundo, que se expressa na dificuldade de encaixar a realidade nas palavras e na incompreensão de certos rituais do mundo adulto. Cito abaixo um pequeno trecho de um dos capítulos mais legais de Vardaman, onde ele observa os urubus que os acompanham desde o início de sua jornada:

"Darl e Jewel e Dewey Dell e eu estamos subindo a colina, atrás da carroça. Jewel voltou. Veio pela estrada e subiu na carroça. Ele veio andando. Jewel não tem mais cavalo. Jewel é meu irmão. Cash é meu irmão. Cash tem uma perna quebrada. Nós consertamos a perna de Cash, então ela não dói. Cash é meu irmão. Jewel é meu irmão também, mas ele não está com a perna quebrada.
Agora eles são cinco, altos em pequenos e altos círculos negros."

Outro aspecto que me chamou a atenção é o estado de quase incomunicabilidade existente entre os personagens. Eles pouco se falam ao longo do romance. É o mundo interior de cada um que tece a narrativa, um mundo de desconfiança, lacunas e de densa melancolia. Isso me fez lembrar "Vidas Secas", do mestre Graciliano Ramos, cujos personagens também padecem do mesmo problema de comunicação. Mas excetuando esta coincidência e o fato de que ambos os romances retratam famílias de regiões rurais, nada mais há em comum entre os textos de Faulkner e do escritor alagoano. Contudo, aos que gostaram de Vidas Secas, tenho certeza de que também se deliciarão com a batalha dos Bundren pelo Mississipi. Como eu também me deliciei, praticamente lendo o livro todo em uma noite de pouco sono.

Edição de onde o trecho acima foi retirado: FAULKNER, Willian. Enquanto agonizo. [tradução Wladyr Dupont]. Editora Mandarim. São Paulo, 2001.

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8.17.2009

Emil Cioran fala sobre ateísmo



Eu já tinha assistido a este vídeo sem legendas (e obviamente compreendido um nada) mas ontem recebi o link para uma versão com legendas em inglês. Aos amantes do filósofo, um presentão. E aos que não o conhecem, pode ser um convite para se apaixonar pela obra deste nobre senhor. E para os que não gostam e acham Cioran uma porcaria pessimista e estúpida, dêem o fora daqui (neste momento, em pleno domingo, é que eu desejaria ser mais mais infantil e dizer para todos aqueles que nunca leram Cioran e insistem em criticá-lo -coisa que, aliás, ocorre amiúde e não apenas com ele- um sonoro e retumbante F.O.A.D.).





8.12.2009

Preconceito lingüístico: um mito

É já assunto um pouco frio, mas a matéria "Os preconceitos da pronúncia" da revista Língua Portuguesa suscitou novamente em mim aquele sono e cansaço toda vez que leio/ouço falar de uma das bandeiras de luta mais estúpidas do pensamento politicamente correto: o preconceito lingüístico.

O técnico de futebol da seleção, Joel Santana, foi alvo de piadas por seu inglês no limite do incompreensível. O vídeo do YouTube, em seus 42 segundos, pode explicar o motivo da piada muito melhor do que qualquer explicação que eu possa dar. Temos dois tipos de estupidez nesta questão: de um lado temos os chatos defendendo o fim do preconceito lingüístico, e do outro iletrados que postam comentários como "q retardado! achando q pode falar ingles!" e dispensam acentuação e outras letras que julgam desnecessárias, praticamente reinventado as normas da ortografia pela ótica da burrice.

O defensor do fim do preconceito lingüístico acredita que o mundo vai melhorar quando todos os brasileiros tiverem a chance de falar My equipe pray very naisse sem ter o perigo de alguém filmar e colocar no YouTube. O iletrado ridiculariza os Joéis Santanas e não sabe nem conjugar o verbo amar no presente do subjuntivo, mas passou as tardes após o colégio em uma sala do CCAA aprimorando seu inglês para as férias na Disney ou qualquer outro paraíso playboy para bem nascidos. Ambos, sem exceção, merecem uma surra de realidade.

É claro que quando o Joel Santana falou foi engraçado. Não há problema em rir dele. Pessoas riem umas das outras o tempo todo pelos mais diferentes motivos. Rir do outro é importante para reconhecer nele o profundo ridículo que todos nós somos. Mas a bandeira politicamente correta, quando empunhada, merece todas as formas de escárnio, assim como os imbecis que denigrem brasileiros falando uma língua estrangeira sem a pronúncia "correta" - coisa que não existe, basta para tal comparar os sotaques de Santa Catarina e Salvador.

Termino com uma citação de "A correspondência de Fradique Mendes", do genial Eça, que muito diz a respeito do servilismo lingüístico que, de um lado, proíbe o riso e, do outro, instiga o escárnio vazio:

"Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua de sua terra: - todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. (...) Além disso, o propósito de pronunciar com perfeição línguas estrangeiras, constitui uma lamentável sabujice para com o estrangeiro. Há aí, diante dele, como o desejo servil de não sermos nós mesmos, de nos fundirmos nele, no que ele tem de mais seu, de mais próprio, o Vocábulo."

8.10.2009

Deus, escutai a nossa prece

Por favor, Deus, dê-me 50 gotas de Dramin, um sono pesado de 12 horas ininterruptas, um expurgo de todos os muitos pecados do passado (meus pecados retornam como pesadelos, acordo suado no meio da noite, grito e não há ninguém aqui para ouvir); uma manhã com sol, um calor luminoso das primeiras horas, para que eu desperte como um bicho qualquer, desses que vivem sem eira nem beira e dependem somente da Natureza-mãe-bastarda-de-todos; sim, Dramin, dê-me minhas 50 gotas que tanto preciso, ou qualquer outra coisa que coloque a alma em profunda paz, em profundo repouso e faça meus olhos doloridos mais tranqüilos; pois cansa-me buscar respostas para tantas perguntas, cansa-me estar sempre alerta, cansa-me muito a maldita consciência sempre alerta o tempo todo, todos os dias.E peço a Ti, Deus para o qual nunca mais orei desde a perda da Inocência, quero um novo batismo no Letes e deixar-me ser levado, em completo esquecimento, nas águas sem glória deste rio que a tudo absolve...