11.04.2006

Justificativa

R. estava no banheiro de seu apartamento e escovava os dentes com violência. Eram movimentos rápidos pelos caninos, pelos médios e molares, movimentos furiosos, urgentes; ele cuspia, enchia a boca com água, um bochecho veloz, um pouco mais de água, novas escovadas diretas, vigorosas; os movimentos subiam e desciam, a mão já estava cansada, um olhar para o espelho, mãos apoiadas na velha pia.

- Ainda não.


R. encheu mais uma vez a escova com pasta, logo depois a passou pelo fio de água que escorria da torneira. Esfregava com mais ardor ainda os dentes. Ora os cima, ora os de baixo, os do fundo da boca, depois os frontais; fazia movimentos circulares, seguiam-se os retilíneos, depois verticais, e em seguida repetia tudo de novo; nada escapava da escova frenética que seguia raspando gengivas e misturava a espuma da pasta com saliva e água. Tudo isso porque R. estava plenamente convencido de que seus dentes eram terrivelmente sujos e amarelos e só pararia de escová-los quando estivessem limpos novamente.

A idéia de que tinha dentes sujos o atormentava há muito tempo. Raramente sorria, e quando algum acontecimento provocava seu humor, encobria o riso tenso e envergonhado com suas franzinas mãos. Por causa dos dentes amarelados, R. evitava até mesmo conversar. Falava o necessário e sempre com a cabeça baixa. Odiava conhecer pessoas novas. Odiava que lhe pedissem informações na rua. E nas situações diárias onde era imprescindível a comunicação oral, sempre achava que o interlocutor demonstrara um interesse demasiado incômodo para com os seus dentes. Isso representava para ele uma verdadeira ofensa. Uma insolência vil, desagradável, um ato da mais profunda falta de civilidade. Respeitem os defeitos de um homem, pensava, deixem em paz as pessoas que têm defeitos, se eu pudesse escolher, eu jamais teria dentes amarelos, mas eu sou assim, então, me deixem em paz. O pensamento de que fora alvo de olhares cheios de escárnio era terrível, e um rancor sem fim o possuía. Vingava-se destas situações quando chegava em casa: lá R. ia até o banheiro, pegava a escova e esfregava violentamente os dentes, cada vez com mais ardor.

Os seus dentes amarelos tornavam-se insuportáveis quando via na mesa da escrivaninha uma foto antiga. Ele e a ex-namorada juntos, esbanjando um largo sorriso. R. não tinha notícias dela há mais de 5 anos. Um sujeito mais alto, mais corpanzudo e com dentes terrivelmente brancos apareceu e deixou para ele apenas o espólio de uma foto na qual orbitavam lembranças. Meus dentes, preciso tratar dos meus dentes, ele dizia a si mesmo toda vez que olhava aquela foto. Só perdera aquela mulher por causa de seus dentes amarelados: não passava um dia sequer sem lembrar disso, sem repetir mentalmente que a causa de suas desgraças, de todas elas, repousava na preguiça de limpar os dentes. Era um exagero mais do que evidente, e por muitas vezes R. suspeitava que boa parte de seus sofrimentos era produto de sua própria imaginação. Mas ele precisava de uma justificativa que explicasse o porque foi abandonado apenas com um bilhete de duas linhas. E o amarelo de seus dentes parecia ser uma boa justificativa.

“Perdoe-me, gosto de outro. Depois venho aqui pegar minhas coisas” – assim acabou um romance. R. chegou em casa e viu o papel amassado enfiado por baixo da porta. Desdobrou-o e não conseguia acreditar. Procurava uma explicação. Afinal, o que fiz de errado? É o que todos pensam quando a rejeição se faz presente. Mas nenhuma resposta surge, nenhuma sentença definitiva, nenhuma revelação que conduza a alma a algum paraíso de esquecimento. As pedras tornam-se mais duras, o caminhar lento, como se fossemos novamente crianças que não entendem as razões do mundo adulto, e choramos porque as brincadeiras precisam terminar – e o nosso choro é sempre um choro em vão. “Perdoe-me, gosto de outro”: R. relembrava cada sílaba dessas palavras, mudava-as de ordem, comprimia as letras, e tudo se resumia sempre em uma imensa pergunta que afligia seu coração. Ele sempre fora um obcecado pelas razões que moviam as coisas, os motivos últimos, as causas derradeiras. Agora se sentia subjugado. Mas será que haveria uma explicação para ela ter ido embora? A mente de R. revivia o passado, os dias bons, as brigas, as reconciliações, as longas tardes onde o tempo parecia parar, e absolutamente nada explicava aquele inesperado bilhete. Por muito tempo R. esperou ela vir buscar as coisas que prometera pegar. Talvez ela tenha escrito aquilo apenas para ser simpática, para dar a entender que haveria uma conversa. Ela jamais apareceu, e para R. isso era mais uma prova de que seus dentes inspiravam nojo na mulher que ainda amava.

E sempre que pensava na repugnância que eles causavam, ou quando mirava a foto antiga da escrivaninha, R. se fazia obscuro e machucava a boca de tão forte que esfregava os dentes. Para ele, o motivo do abandono era evidente. “Só pode ser isso. Dentes horríveis. Ela me deixou por causa de meus dentes horríveis” – assim R. repetia a si mesmo, enquanto observava no espelho os seus dentes recém-escovados, alguns até manchados do sangue que escorria das gengivas em brasa. Dentes amarelos: este era o motivo, a razão final que motivara uma mulher a escrever duas linhas e assim desprezar este homem que não conseguia mais sair de seu pesadelo.

3 comentários:

  1. Sempre deve haver algum motivo. No primeiro momento de discórdia apontamos a arma da culpa para o outro. Depois que estamos sozinhos, viramos a arma pra nós. Sempre queremos pensar que há algo em nós que motiva uma desgraça vinda do outro. Seja meus dentes, seja aquilo que eu não deveria ter dito, seja aquilo que eu deveria ter feito e não fiz. Quando a gente perde, damos tudo pra voltar atrás e assumir a culpa. Mas no final das contas, mesmo que pudessemos fazer isso - escovar os dentes com raiva até deixá-los brancos - isso poderia não evitar a perda. Sabe por quê?

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  2. Porque não temos controle de tudo que nos acontece. Sabe-se lá o que passa na cabeça da outra pessoa, que ela te largaria do mesmo jeito, independente dos teus dentes. A gente puxa demais a culpa pra gente - o que é um sintoma do controle que queremos ter sobre a experiência e isso é inútil.
    Não adianta escovar os dentes porque ela não vai voltar e talvez ela nem tenha reparado assim tanto para os seus dentes. Quem reparou foi você, R., você é que vê seus dentes amarelos e se auto-destrói como forma de buscar uma compreensão para a sua solidão.

    Só que nem sempre ela tem uma resposta, simplesmente somos e seremos sempre sós nessa busca sem fim dos motivos últimos.

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  3. Anônimo4:14 AM

    Atualizar que é bom, porra nenhuma.

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