Sebos são grandes depósitos de lixo cultural. Isso não significa que tudo o que neles encontramos é ruim - pelo contrário, encontrei alguns dos meus livros mais significativos nesses apaixonantes lugares. Chamo-os assim por neles ficar estocado tudo o que nossa cultura considerou supérfluo: vasculhe o leitor as prateleiras de literatura de um sebo e, entre autores assaz conhecidos, serão encontrados incontáveis nomes que nunca figurarão nos livros escolares, nas revistas especializadas, nos debates acalorados da boêmia letrada de uma cidade qualquer. E isso assim será para todo o sempre, e não apenas na literatura: música, cinema, poesia, todas as disciplinas. A cultura forma o seu cânone através de um processo seletivo que condena ao anonimato das prateleiras dos sebos tudo aquilo que ela considerou supérfluo.
Um dia propus a mim mesmo um peripatético roteiro pelos sebos do gloriosamente imundo centro velho de São Paulo. Ali há muitos deles, concentrados entre o espaço que vai da Praça da Sé até a República. O único objetivo em mente era vasculhar, justamente, as prateleiras mais esquecidas de literatura e, no lixo supérfluo ali encontrado, quem sabe descobrir algo que fosse curioso/desconcertante/enigmático. Tendo como pressuposto que as escolhas das gerações anteriores depuraram a imensa produção literária - depuração esta que foi um processo coletivo envolvendo os modismos do momento, a análise dos críticos, as resenhas nos jornais, a escola, o departamento de publicidade das editoras e (impossível não considerar) uma certa dose de acaso - a minha busca estava repleta de dificuldades. Diante de meus olhos, centenas de livros dos quais nunca ouvi falar, legiões de autores que sequer sabia de onde eram.
Graças a tal andança, surgiu a idéia de uma série de posts (sem periodicidade, como sempre) sobre livros que são insignificantes. Livros que ninguém comenta, de autores que ninguém cita, que nunca virarão estampas de camisetas como aquelas do Bukowski, que palermas utilizam na esperança (perdida) de mascarar a própria ignorância. Mas mesmo que existissem camisetas desses autores supérfluos, não importaria absolutamente nada porque, afinal, nunca ninguém se importou com eles - e talvez exista muitos bons motivos para isso.
Ok, introdução feita. Agora, a resenha sobre o primeiro livro da série.
"Devastação (ou a volta à Natureza)" é um livro do francês René Barjavel. Lançado em 1943 com o título "Ravage", foi editado aqui no Brasil pela lendária Círculo do Livro em 1976 (as capas dessa editora eram sempre geniais, e até hoje exalam uma cafonice que me encanta). Encontrei-o em um sebo bem ruim ali na avenida São João, perto do Rei do Mate. O título logo me despertou a atenção; a partir dele era fácil imaginar o que o livro apresentaria: explosões, queda, ruína, cenários apocalípticos, entropia anticivilização, etc. Por mim estava OK (sou daqueles que esperam ansiosamente a estréia de filmes hollywoodianos sobre catástrofes climáticas, cometas que colidem com a Terra, etc), ainda mais pela bagatela de 4 reais.
Cheguei em casa e fui na Wikipedia procurar mais informações sobre o autor. Eis o que encontrei por lá:
René Barjavel (January 24, 1911 – November 24, 1985) was a French author, journalist and critic who may have been the first to think of the grandfather paradox in time travel. He was born in Nyons, a town in the Drôme department in southeastern France. He is best known as a science fiction author, whose work often involved the fall of civilisation due totechnocratic hubris and the madness of war, but who also favoured themes emphasising the durability of love.René Barjavel wrote several novels with these themes, such as Ravage (translated as Ashes, ashes), Le Grand Secret, La Nuit des temps (translated as The Ice People), and Une rose au paradis. His writing is poetic, dreamy and sometimes philosophical. Some of his works have their roots in an empirical and poetic questioning of the existence of God(notably La Faim du tigre). He was also interested in the environmental heritage which we leave to future generations. Whilst his works are rarely taught in French schools, his books are very popular in France.
Bom, já tinha uma idéia, ainda que meramente protocolar, sobre o livro que tinha em minhas mãos. E por ser o primeiro livro dessa série, creio que tive muita sorte, pois em "Devastação" encontrei passagens dotadas de uma beleza muito específica, que é a de descrever catástrofes. Descrições estas que sempre são acompanhadas de um discurso extremamente crítico em relação ao mito do progresso e, mais do que isso, à civilização como um todo. Hoje isso pode ser familiar a qualquer um que se interesse por temas filosóficos e sociais: até mesmo em jornais diários é possível encontrar textos que discutem os limites estruturais da civilização ocidental e os impactos indubitavelmente destrutivos que o nosso modo de vida causa ao planeta. Porém, em 1943, quando o livro foi lançado, acredito que tal discurso não era algo assim tão popular (um olhar desconfiado perante a sociedade capitalista e seus caminhos obviamente já existia desde o século XIX, mas entre criticar o capitalismo até condenar a civilização há um passo que acredito ser gigantesco). Não sei dizer se o romance gerou algum impacto no momento em que foi lançado, até mesmo porque o mundo girava em uma roda de fogo naqueles anos e prestar atenção a livros soaria como uma bobagem. Mas como Barjavel aparece, pelo menos nos links que visitei, como um autor de ficção científica, deve ter sido de imediato relacionado àquele tipo de literatura que se lê "para passar o tempo", como literatura de entretenimento para quem gosta de robôs, demônios, viagens no espaço e outras bobagens nessa linha. Imediatamente assim relacionado a esse tipo de literatura, o potencial efeito questionador do livro ficou, assim, um tanto quanto obscurecido.
o sebo onde comprei o livro, ali na Avenida São João, próximo ao Largo do Paiçandu. |
Um enredo simples, banal ao extremo, e até mesmo bastante previsível. Entretanto, ele convence justamente por isso: a vida atual é impossível sem eletricidade. Imaginemos que, de uma hora para outra, acabasse a energia em toda uma cidade. No começo, as pessoas esperariam, resignadas que são, com suas velas a postos. Mas imaginemos que a espera se alongasse por um dia inteiro, e depois por outro, e por muitos outros mais até perder-se a conta: Barvajel imaginou esse mundo, e ao fazer isso tocou no ponto mais frágil da civilização, no elemento invisível que funciona como o sangue desse complexo organismo de relações sociais/políticas/econômicas que se instaurou mundialmente e determina o modo de vida de bilhões de seres - esse sangue invisível chamado Eletricidade. Citando um trecho do livro:
Mas a eletricidade não desapareceu, meu jovem amigo. Se ela tivesse desaparecido, nós não existiríamos mais, teríamos retornado ao nada, nós e o universo. Nós, esta mesa, este seixo, tudo isso não são senão combinações maravilhosas de força. A matéria e a energia são uma única coisa. Nada pode desaparecer, ou tudo desaparecerá junto. O que se passa é uma mudança nas manifestações do fluído elétrico. Uma mudança que nos aborrece, que demoliu todo o edifício da ciência que construímos, mas que sem dúvida não tem nem mais nem menos importância para o universo que a batida da asa de uma borboleta. (...) Capricho da Natureza, advertência de Deus? Vivemos num universo que acreditamos imutável porque sempre o vimos obedecer às mesmas leis, mas nada impede que tudo possa bruscamente começar a mudar, que o açúcar se torne amargo, o chumbo leve, e que a pedra voe ao invés de cair quando a mão o solte. Não somos nada, meu jovem amigo, não somos nada...
É o tema anticivilizacional que se faz presente, a desconfiança perante os rumos do "progresso" infinito mediante os esforços da Razão.
Barvajel também antecipa/flerta com a crítica foucaultiana sobre a biopolítica, isto é, sobre como os poderes instituem práticas e modalidades de controle dos corpos. Abaixo o trecho:
Em 2026, uma vaga de nervosismo e de pessimismo ameaçou a nação e provocou uma recrudescência enorme de divórcios e suicídios. Avisado pelo Grande Conselho Médico, o governo lançou um decreto urgente. Toda a população passou pela cadeira de choque. (...) O resultado foi tão convincente que uma lei instituiu um exame mental anual obrigatório para todo mundo (...) Os que eram simplesmente nervosos, ansiosos, teimosos, afetados, gagos, tímidos, os que ficavam ruborizados por nada, e os que dormiam em pé, os sem memória, os faladores noturnos, os distraídos, os comedores de mosca, os rangedores de dentes, os medrosos, os pretensiosos, os tagarelas, os taciturnos, os boquiabertos, os excitados, os mudos, os coléricos, os contritos, em poucas palavras, os desarranjados, recebiam apenas uma pequena sacudidela que os repunha no caminho certo do homem médio de que eles tendiam a se desviar.
O que motivou, afinal, o fim da eletricidade? Isso não fica claro no livro: não se sabe se foi um capricho da Natureza, ou o prometido ataque de uma arma secreta do "Imperador Negro" (um déspota de origem africana que governava a América do Sul: esses franceses não perderiam a chance de estigmatizar mais uma vez o continente...). Isso não compromete a história, mas chega-se ao final com a enorme interrogação latejando na mente. Ou talvez fosse esse o objetivo exato de Barvajel: as catástrofes acontecem simplesmente porque acontecem, sem nenhuma razão aparente, sem nenhuma explicação a amenizar nossas dores.
Catástrofe que não foi sentida por todos igualmente: após um tempo indeterminado fugindo de uma Paris transformada em cenário de violência e fome, o grupo de peregrinos finalmente alcança um povoado rural. Ao encontrar um velho camponês, François, o líder do grupo, os apresenta como sendo "os sobreviventes da catástrofe":
O velho levantou em direção a François seu rosto negro de sujeira e de rugas, abriu a boca, pigarreou, fez um grande esforço e rangeu:- Que catástrofe?
Fica clara a mensagem: o mundo que terminara era o mundo da Cidade, o mundo da civilização. O mundo rural, a esfera da Cultura, pouco ou nada sentiu o abalo que aqueles citadinos famintos e machucados deixaram para trás. Lentamente, vão se adaptando ao modo de vida encontrado na região rural, que continuou sua marcha de modo muito mais tranquilo e sem os sobressaltos bárbaros que destruiram Paris (e possivelmente todas as demais cidades do mundo, se é que foi um fenômeno global - a incerteza domina o livro). Nesse mundo rural, gradualmente, vemos o autor caminhando agora em largas descrições, cuja temporalidade se acelera: anos se passam em apenas duas, três páginas. Os eventos, narrados com maior velocidade, mostram como o mundo rural foi se adaptando à nova realidade sem eletricidade; de como pequenas propriedades, por necessidade de garantirem a própria segurança (havia grupos saqueadores, apesar de em menor quantidade quando comparado a Paris), foram se aglutinando em cooperativas; de como essas cooperativas foram aos poucos evoluindo para comunidades mais fortificadas, como pequenos castelos; e de como entre elas existia um pacto de honra e reciprocidade - em suma, o mundo pós-eletricidade vai ganhando contornos cada vez mais feudais. A figura do chefe, cristalizada em François, ganha contornos heróicos e patriarcais, a ponto de que, por necessidade de repovoarem o mundo, é instituída a poligamia (para os homens); novas comunidades surgem, todas sob o mesmo espírito de manter-se fixadas a uma terra, aos costumes frugais, completamente hostis ao mundo da técnica e do progresso, até que nas novas gerações as antigas máquinas se transformam em carcaças de um passado que felizmente jamais retornará.
Convenhamos que se trata de um final um tanto quanto forçado, e que parece ter sido encaixado à narrativa de modo até mesmo arbitrário. Essa sensação de estranhamento deve-se, justamente, à mudança de ritmo que o romance adota em seu final, onde ao grande nível de detalhamento presente na primeira e na segunda partes (a vida em Paris e depois a fuga para o campo) adota-se na terceira e última uma descrição en passant que recobre quase sessenta anos. Além dessa questão formal, a aposta que Barvajel faz de um retorno a um modo de vida feudal não convence nem mesmo o medievalista mais entusiasta em reviver os gloriosos anos da vassalagem. Em suma: trata-se de um final decepcionante, apostando em um otimismo sem reservas que contrasta terrivelmente com o quadro de descrença que o autor pinta sobre a civilização nas primeiras partes do livro, e que termina por tornar opacas as excelentes descrições dos acontecimentos que transformaram Paris em uma cidade completamente enlouquecida após o fim abrupto da eletricidade.
mas é um livro, bastante criativo pra época, já falava de imagebns tridimensionais, era incrível o processo em que os mortos viraram 'figurinhas' de tão prensados e caberiam num 'álbum de família', e as televisões da época exalavam cheiros de frutas e comidas pelas telas e se podia até 'apalpar' algumas imagens, uma torcedora de um tilme lá....kkkkkkkkkkkkkk hoje tenho 34 anos, li quando tinha 14, na época achei muito bom, onde nem havia internet, era bom entretenimento imaginar como seria o futuro.Acho que o resenhista é injusto em achar esse livro de 'insignificante', creia-me existe livros beeeeeeeeemmmmmmmmm piores, e em termos de science- fiction
ResponderExcluirBERNARDO
Li há 45 anos atrás.E fiquei bastante impressionada.Até hoje cito esse livro,principalmente pela situação em que o mundo está, onde a solução seria a permacultura.
ResponderExcluirLi este livro quando tinha uns 14 anos, hoje tenho 58 e aqui confinada pelo vírus chinês, lembrei-me do evento narrado no livro quando a eletricidade acaba e um grupo de pessoas tem que lutar pela sobrevivência. Fico imaginando se o mesmo acontecesse nos dias de hoje, a maioria de nós, um bando de molengas, não sobreviveria um par de dias sem o conforto da vida moderna.
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