3.18.2012

A festa, de Michel Houellebec


O texto do post de hoje foi indicação de um amigo que faz esse projeto de noise/eletroacústico, e fiquei subitamente estarrecido pela simplicidade e força que emana de suas poucas linhas. Seu autor é o francês Michel Houellebecq, cuja obra transita entre a poesia, o romance e a teoria literária.

É um texto que fala sobre o sentido da festa para nós, bestas humanas. E publico hoje como uma homenagem invertida ao dia de São Patrício, que será logo mais festejado nos bares de várias partes do mundo e, por incrível que pareça, até mesmo aqui no Brasil. Ridiculamente tentando emular uma tradição alheia, veremos pessoas vestidas de verde, pensando que estão em algum bar irlandês ou coisa que o valha. Para muitos a data serve simplesmente "como uma desculpa para beber" - o que parece um sintoma de que precisam dar para suas ações um posto mais elevado, um motivo nobre. Entretanto, vejo as comemorações brasileiras do Dia de São Patrício simplesmente como uma versão descolada da breguice em looping eterno que foi a tietagem em torno da recente visita do príncipe Harry aqui nas terras brasileiras. Como bons selvagens que somos, o forasteiro chega acenando com espelhinhos e ficamos imbecilizados, prontos para as manifestações mais baixas de subserviência. No caso do príncipe, os espelhinhos foram inúmeros (a visita ao Complexo do Alemão, a partida de polo, etc); no caso do Dia de São Patrício, os espelhinhos se traduzem na experiência de festejar (mais) uma data alheia, dando para o ato de festejar um sentido especial" e "irreverente". Mas no fundo a síndrome de jeca e a humilhação da breguice é a mesma.

Mas vamos ao texto do Michel Houellebecq. 

A festa
O objetivo da festa é nos fazer esquecer que somos solitários, miseráveis e destinados à morte. Dito de outra forma, nos transformar em animais. É por isto que o primitivo tem um sentido da festa muito desenvolvido. Uma boa fumarada de plantas alucinógenas, três tamborins e a coisa está resolvida: um nada o diverte. Ao contrário, o Ocidental médio não alcança um êxtase insuficiente senão a custa de raves intermináveis das quais sai surdo e drogado: ele não possui de forma alguma o sentido da festa.  Profundamente consciente de si mesmo, radicalmente estrangeiro aos outros, aterrorizado pela idéia da morte, ele é totalmente incapaz de aceder a uma fusão de qualquer tipo. No entanto, ele se obstina. A perda de sua condição animal o entristece, disso concebendo vergonha e despeito; ele gostaria de ser um festeiro, ou ao menos passar por tal. Ele está numa miserável situação.

O que que eu tenho a ver com estes babacas?
“Quando dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei ali no meio deles" (Mateus, 17, 13). Eis aí todo o problema: reunidos em nome de quê? O que poderia de fato, no fundo, justificar estarmos reunidos?

Reunidos para se divertir. É a pior das hipóteses. Neste tipo de circunstância (clubes noturnos, bailes populares, festinhas), que nada têm visivelmente de divertido, uma única solução: azarar. Sai-se então do registro da festa para entrar no de uma feroz competição narcísica, com ou sem opção penetração (considera-se classicamente que o homem tem necessidade da penetração para obter a gratificação narcísica almejada; ele experimenta então algo análogo ao estalo da partida gratuita nos antigos fliperamas. A mulher, na maioria das vezes, se contenta com a certeza de que desejam penetrá-la). Se este tipo de jogo lhe repugna, ou se você não se sente em condições de fazer boa figura, uma única solução: partir o mais rápido possível. 

Reunidos para lutar (manifestações estudantis, acampamentos ecológicos, talk-shows na periferia). A idéia, em princípio, é engenhosa: com efeito, o alegre cimento de uma causa comum pode provocar um efeito de grupo, um sentimento de pertencimento, e mesmo uma autêntica embriaguez coletiva. Infelizmente, a psicologia das multidões segue  leis invariáveis: termina-se sempre com a dominação dos elementos mais estúpidos e mais agressivos. A gente se vê então no meio de um bando de arruaceiros, talvez perigosos. A escolha então é a mesma daquela do clube noturno: partir antes que o pau quebre, ou azarar (agora em um contexto mais favorável: a presença de convicções comuns, os sentimentos diversos provocados pelo desenrolar do protesto podem abalar ligeiramente a carapaça narcísica). 

Reunidos para trepar (clubes de swing, orgias privadas, alguns grupos New Age). Uma das fórmulas mais simples e mais antigas: reunir a humanidade em função daquilo que ela tem, de fato, de mais comum. Atos sexuais têm lugar, mesmo se o prazer não esteja sempre ao alcance. Já é algo; mas é apenas isto.

Reunidos para celebrar (missas, peregrinações). A religião propõe uma solução totalmente original: negar audaciosamente a separação e a morte afirmando que, contrariamente às aparências, nós nos banhamos no amor divino, enquanto nos dirigimos para uma eternidade bem aventurada. Uma cerimônia religiosa em que os participantes tenham fé ofereceria então o único exemplo de  festa bem sucedida. Alguns participantes agnósticos podem mesmo, durante a cerimônia, se sentir conquistados por um sentimento de crença; mas eles correm o risco de uma ressaca terrível (um pouco como o sexo, mas pior). Uma solução: ser tocado pela graça. A peregrinação, combinando as vantagens da manifestação estudantil com as da viagem Novas Fronteiras [nota: uma popular agência de viagens francesa], tudo num ambiente de espiritualidade agravado pela fadiga, oferece de quebra condições ideais para azaração, que se torna quase involuntária ou mesmo sincera. Hipótese plausível após uma peregrinação: casamento + conversão. Em compensação, a ressaca pode ser terrível. Prever um prolongamento em uma temporada UCPA [“Union Nationale des Centres Sportifs de Plein Air”, agência de viagens dedicada a esportes ao ar livre] “esportes de patinação”, que sempre se poderá cancelar (informar-se previamente sobre as condições de cancelamento).

A Festa sem lágrimas.
Na realidade, basta prever que iremos nos divertir para ter certeza de que iremos nos aborrecer. O ideal seria então renunciar totalmente às festas. Infelizmente, o festeiro é um personagem tão respeitado que esta renúncia acarretaria uma forte degradação da imagem social. Os poucos conselhos que se seguem deveriam permitir evitar o pior (ficar sozinho até o final, em um estado de tédio evoluindo para o desespero, com a impressão errônea de que os outros se divertem).


  • Ter bastante clareza, previamente, de que a festa será forçosamente mal sucedida. Visualizar exemplos de fracassos anteriores. Não se trata aqui de adotar uma atitude cínica e  blasée. Ao contrário, a aceitação humilde e sorridente do desastre comum permite alcançar este sucesso: transformar uma festa mal sucedida em um momento de agradável banalidade.
  • Sempre prever que se voltará para casa só, de táxi. 
  • Antes da festa: beber. O álcool em doses moderadas produz um efeito sociabilizante e euforizante que permanece sem real concorrente. 
  • Durante a festa: beber, mas diminuir as doses (o coquetel álcool + erotismo ambiente conduz rapidamente à violência, ao suicídio e ao assassinato). É mais engenhoso tomar 1/2 Lexomil no momento oportuno Com o álcool multiplicando o efeito dos tranqüilizantes, observar-se-á uma sonolência instantânea: é o momento de chamar um táxi. Uma boa festa é uma festa breve.


Após a festa: telefonar para agradecer. Esperar tranqüilamente a festa seguinte (respeitar um intervalo de um mês, que poderá cair para uma semana em período de férias).

Enfim, uma perspectiva consoladora: com a ajuda da idade, a obrigação da festa diminui, a tendência à solidão aumenta; a vida real retoma o controle.

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Sobre o autor: Michel Houellebecq nasce em 1958 em La Réunion. Forma-se em Engenharia Agronômica em 1980. Em 1985 publica poemas na Nouvelle Revue e lança uma biografia de Lovecraft (Lovecraft. Contre le monde, contre la vie). No mesmo ano aparece Rester Vivant. Sua primeira coletânea de poemas, La poursuite du bonheur, recebe o prêmio Tristan Tzara de 1992. Em 1994 aparece o romance Extension du domaine de la lutte, traduzido em várias línguas. Colabora com L'Atelier du roman, Perpendiculaires e Les Inrockuptibles. Sua segunda obra poética, Le Sens du combat, obtém o Prix de Flore de 1996. Interventions, antologia de textos críticos e crônicas, é lançado juntamente com seu segundo romance, Les Particules élémentaires, traduzido em mais de 25 línguas e premiado com o Novembre. Em 1999 publica Renaissance, nova coletânea de poemas, e Lanzarote (textos e fotografias). Passa a viver na Irlanda e, após a publicação de Plataforme (romance), na Espanha. Ali escreve La possibilité d'une île, lançado em 2005. No Brasil estão publicados A extensão do domínio da luta (Sulina, 2002), Partículas Elementares (Sulina, 1999), Plataforma (Record, 2002) e A possibilidade de uma ilha (Record, 2006). Site oficial: http://www.houellebecq.info/

A tradução aqui apresentada é de Alexandre Soares Carneiro e encontrei o texto nesse site .


3.16.2012

Kali, a mãe da destruição

3.12.2012

"Iron", do Woodkid



Woodkid é uma banda francesa formada por um sujeito que parece um designer. Uma descrição assim, colocando as palavras "francesa" e "designer" na mesma frase, faria com que eu perdesse o interesse completo pela banda, ainda mais se depois eu visse uma foto do cara. Preconceitos, eu os tenho aos monte e cultivo boa parte deles com dedicado zelo.

Mas também é importante quebrar a cara algumas vezes. Ajuda a formar o caráter mediante um sorriso amarelo de constrangimento. No caso do Woodkid, fui obrigado a experimentar esse sorriso quando vi o clip da música "Iron". Beleza, heroísmo, clima beligerante: há tudo isso nessa música, condensados em poucos mais de três minutos de batidas marciais acompanhadas de um vocal que destoa de todo o resto - e é nessa estranheza que justamente parece estar o trunfo do Woodkid.

O primeiro álbum deles, "Golden age", sairá ainda esse ano.



3.11.2012

Postos de gasolina e as devoções paulistanas


São Paulo amanheceu no dia 6 de março de 2012 subitamente sem gasolina nos postos de combustível. Acostumados a utilizar o carro até para ir à padaria da esquina, o paulistano sentiu-se quase violentado pelos inescrupulosos motoristas de caminhão que transportam esse líquido supremo, espécie de sangue que mantém vivo o organismo monstruoso da megalópole. Vivo? Quando muito São Paulo é uma carcaça semimorta, apodrecida, constantemente maltratada por todos os seus habitantes – tanto os que aqui nasceram quanto os que escolheram a cidade como lar.

Uma cidade sem gasolina significa não menos carros nas ruas, mas sim o contrário: o desespero tomou conta de muitos e os postos de gasolina receberam um bando de paulistanos ávidos por abastecimento. E com todo o deselegante oportunismo que o caracteriza, os paulistanos resolveram tirar vantagem da “desgraça” alheia, e muitos postos aumentaram o valor por litro: foram relatados postos cobrando até mesmo quase cinco reais. Enquanto uns choram, outros estão ali a vender o lencinho: como sempre os problemas alheios podem ser lucrativos.

E então o melhor acontece: editoriais raivosos atacando o absurdo de uma cidade como São Paulo sofrer da falta de gasolina; âncoras televisivos esbravejando enquanto câmeras aéreas mostram postos repletos de carros; especialistas em abastecimento com predições apocalípticas de que tudo se normalizará em intermináveis dez dias; e claro as conversinhas do vulgo nos botecos, nas redes sociais, no cafezinho vespertino, assombrados com o caos generalizado que tomou conta da cidade, onde até mesmo as forças policiais entraram, salvaguardando a tranqüilidade dos fura-greves que, como bons paulistanos, desejam manter o abastecimento em ordem, a paz reinante, a gasolina para todos.

Nesse ponto a sensação de que o vômito está prestes a subir pela garganta já produz aquele desejo de ir embora da frente do computador; de deixar de lado todas essas questões que rigorosamente não me pertencem; de aceitar que o paulistano é assim mesmo, um sujeito derrotado, desprovido de qualquer sensibilidade, de qualquer ambição que esteja além das linhas do microcosmo que é ele mesmo e seus prazeres imundos. Porém, mesmo assim, com o borbulhar do vômito na garganta, vou além para comentar um fato ocorrido na quarta-feira 7 de março, produto da falta de combustível na cidade: um homem que foi assassinado após ter furado a fila em um posto.

Alguns conhecidos comentaram tristemente a notícia, exalando certa perplexidade. E de fato essa notícia causa isso: um nojo, uma sensação de que estamos diante de algo inominável. E justamente pela dificuldade em nomeá-lo me faz acreditar que esse caso não pode ser tido como algo isolado, que se destaca da realidade como um desvio da ordem, um crime, mas sim como sintoma do ambiente mental de São Paulo, essa cidade habitada por insetos que vivem como que em estado de sonambulismo perpétuo, escravos servis de tudo que é baixo, ridículo, violento e estúpido.

Tento imaginar o quadro de forma resumida ao extremo, me colocando no papel do assassino: estou há duas horas tentando abastecer o meu amado veículo; um sujeito espertalhão entra na minha frente, abusadamente tentando abastecer antes de mim; discutimos; e tomado de um ímpeto feroz, que não sei de onde nasce, mas julgando-o como correto e convicto de que estou em meu direito, mato o sujeito que tentou passar na minha frente; a espera de duas horas justifica-me, o estresse que me atormenta, a desavergonhada tentativa de me fazerem de idiota - talvez eu tenha exagerado demais, romantizando as escolhas e reflexões do assassino, mas basicamente a história é essa. Trata-se de um assassinato não por honra, por uma causa, por legítima defesa: matou-se porque alguém tentou furar uma fila. Um degrau é descido rumo à imersão completa no lodo da selvageria.

Essa fúria chegará ao transporte público? Faço profecias de que duelos a base de faca serão travados nas escadas dos metrôs insuportavelmente lotados de São Paulo. A demência dos usuários do transporte público já os insensibilizou dos empurrões nas plataformas: tidos como inevitáveis, aqueles que lamentam as trombadas são os errados, vítimas de sarcásticos olhares de repreensão daqueles que interiorizaram a violência. E nos vagões dos trens estão em gestação exércitos de seres prontos para, quem sabe, matarem outros tantos que algum dia furarem filas, ou que sejam vagarosos, ou que se neguem a fazer parte do empurra-empurra generalizado. Motivos é que não faltam para matar.

Havia mais brilho quando as brigas cotidianas eram motivadas por questões amorosas, diferenças políticas, defesas territoriais. Mas não: mata-se porque alguém furou uma fila. Se mortes ocorrem por nada é porque estamos naquele nível onde viver igualmente já não significa absolutamente nada.

Ou talvez tenha sido assim desde o princípio: os homens sempre morrendo por coisa alguma. A diferença é que antes esse nada tinha uma figuração mais atraente: uma mulher, uma utopia, uma bandeira. Agora a decomposição, atingindo uma efervescência mais acentuada, dá-nos como objeto de devoção alguns litros de gasolina. Essa devoção mostra muito a nosso respeito, refletindo-se em uma cidade contrária ao pedestre e ao caminhar lento e irresponsável; em um urbanismo pautado em vias que façam o trânsito fluir rápido; em condomínios afastados do centro, repletos de áreas verdes, feitos para atender a uma demanda por "tranqüilidade" tipicamente burguesa de certa fatia de privilegiados, e que nada mais são que simulacros de bem-estar protegidos por muralhas de medo; em todo um conjunto de áreas de entretenimento onde só se chega de carro, ou que é mais conveniente ir em um; enfim, nossa devoção pela gasolina, que ficou mais evidente com a crise no abastecimento, mostrou que esse derivado do petróleo modela em larga escala a própria dinâmica da cidade, sua geografia, sua divisão dos espaços - e também nossa maneira de ser. O que é algo triste de admitir. De qualquer maneira a essa altura, dia 11 de março, o abastecimento de gasolina já está normalizado em praticamente toda a cidade, e não se alcançou um estado realmente crítico. A lição que tiro é que, se alguma vez isso se repetir, alguém poderia distribuir armas entre todos os motoristas, como uma espécie de teste, apenas para vermos o que poderia acontecer.


3.07.2012

Tradução de livros no Brasil



O post de hoje é um texto publicado no site da revista Época, na editoria de cultura, com muitos bons argumentos sobre a precarização da atividade do tradutor literário no Brasil.

Talvez a melhor interpretação para o fato seja essa: de um lado editoras que desejam ter os menores custos possíveis para lançar novos títulos, e buscam tradutores que cobram pouco pelo serviço; do outro, tradutores sem formação adequada saídos de um curso de idiomas qualquer que, convencidos de suas capacidades tradutórias (e com o apoio do Google Translator), arriscam-se a verter para o idioma pátrio textos literários. 

Para além desses dois fatores – por assim dizer a superfície, os sintomas externos – há o flagrante dar de ombros para as atividades intelectuais que exigem tempo e profundidade. Tais atividades são tomadas como irrelevantes, desnecessárias, luxos para poucos. Na turbulência moderna, a produtividade é colocada como valor em si, e localizada à frente de todos os demais. Assim, não importa tanto a qualidade de uma tradução, desde que ela esteja pronta rapidamente e possa chegar às livrarias antes do concorrente; o tradutor (ele também participante do fervor moderno e portanto afetado pela premissa de que o conhecimento pouco – ou nada – vale) oferece então algo aproximado do texto de partida não como uma opção consciente, mas por incapacidade de absorver nuances culturais e linguísticas durante o processo tradutório. A longa imersão em uma língua estrangeira, ou melhor dizendo, em um cultura estrangeira certamente faz parte da formação desse tradutor ideal, comprometido em realizar traduções que aproximam-se o máximo possível das intenções do autor traduzido.

Mas é justamente a busca por exatidão, verdade e clareza que não possui mais lugar nesse mundo. A atividade tradutória de textos literários segue essa tendência, e seria insensato acreditar que seria diferente. Exceções, como em tudo, obviamente existem, mas não são suficientes para calar uma tendência.

Agora o texto:

Tradutores mais que traidores

Os livros no Brasil são tão mal traduzidos que comprometem a categoria



Uma das obrigações mais agradáveis da função de jornalista é a de ler muito e acompanhar de perto os lançamentos de livros, selecionando os bons dos maus lançamentos. O prazer, no entanto, pode facilmente se transformar em tortura, já que os maus títulos sempre superam numericamente os bons. Nós setoristas de cultura somos obrigados a lidar com obras esotéricas, romances para moças (hoje chamados de chick-lit), suspenses de quinta disfarçados de inteligência (os smart-thrillers) e biografias pretensiosas, cujo autor parece desejar loucamente ofuscar o biografado. Aproveitamos menos de 5% do total estimado de 20 mil títulos lançados anualmente no país.

Ora, dentro dessa tortura mora outra ainda mais cruel: a oferecida pelas traduções de obras estrangeiras para o português do Brasil. É cada vez menos raro encontrar traduções de baixa qualidade de obras importantes lançadas por grandes editoras brasileiras. O problema se dissemina por toda parte, do setor de didáticos e paradidáticos ao dos best-sellers e grandes obras literárias. Ninguém escapa da má tradução. A grande vítima é o leitor, prejudicado sem saber, mesmo porque não tem obrigação de julgar uma tradução.

Como leitor profissional, tenho vivido momentos de horror crescente ao me deparar com traduções literárias, aquelas que deveriam merecer um pouco mais de cuidado por parte dos encarregados do texto vernáculo. Para não ferir egos, é melhor não citar quem e que obras foram vertidas. Afinal, os problemas são recorrentes em boa parte dos títulos literários. Eles são de três ordens: técnica, educacional e cultural.

O primeiro aspecto que chama atenção está na abundância de falhas de revisão ortográfica. São aqueles erros que atrapalham a leitura, desviam a atenção e, pior, fazem a gente duvidar da qualidade do conteúdo do que está lendo. Erros tipográficos, como se dizia antigamente, já deveriam ter sido eliminados de nossas vidas. Em revistas e jornais, cometem-se muitas dessas falhas, e é uma luta cotidiana para tentar banir esses monstrengos que rebaixam qualquer texto. Quando se trata de livros, porém, essa questão já deveria ter sido ultrapassada. Com revisores competentes e corretores de texto de última geração, é possível detectar os erros. Claro que seria necessário algum tempo para o trabalho ser realizado. Esse tempo parece ter acabado.

Os erros de português são mais frequentes do que os de ortografia. Concordância, regência e sintaxe são massacradas impiedosamente, tudo em nome de vultos literários conhecidos. Ler um clássico dessa forma conspurcado irrita e muitas vezes ultraja o leitor. O tradutor atua aqui não como um traidor (de acordo com a expressão italiana clássica dada à profissão: “Traduttore, Tradittore” - tradutor, traidor), e sim como um genuíno usurpador dos tesouros da literatura. Com um mínimo de conhecimento, qualquer um percebe que oportunistas quase analfabetos se encarregam de tarefas para as quais obviamente não têm competência.

Ainda mais graves são as ocorrências de equívocos que demonstram a falta de cultura daqueles que estão fazendo tradução. Eles produzem versões desprovidas de coerência do enunciado e coesão entre as diversas partes de um texto. Isso indica que falta pensamento lógico básico em muitos tradutores. Eles usam barbarismos imundos e contaminam o idioma. Como se não bastasse, desconsideram que a tradução também deve envolver conhecimento da parte do tradutor em relação ao contexto do idioma que ele está vertendo. Em um romance que li recentemente, traduzido do espanhol, o teatro São Carlos de Lisboa está grafado “San Carlos”, como se fosse um teatro espanhol, e a região da Saxônia aparece como “Sajonia”. E assim por diante, derrapadas desse tipo desqualificam a tradução como um todo, pois evidenciam a falta de preparo e de conhecimento que o tradutor possui do assunto. É interessante que essas traduções parecem subestimar a inteligência do consumidor, como se ele não fosse capaz de distinguir o ruim do pior.

Tenho quase certeza que esses indivíduos que se dizem tradutores fazem questão de assinar seu trabalho nas páginas de rosto dos livros lançam mão dos mais pérfidos recursos para completar suas tarefas. Já li muito livro cuja tradução em português parece ter sido produzida no Google Translator.

Até aqui descrevi a situação. Chega a hora de perguntar por que todos esses erros, equívocos e bandalheiras ocorrem. Dois motivos me ocorrem de imediato: o fenômeno da vulgarização das traduções, que reflete o avanço do mercado, e a indigência cultural brasileira, que não prepara adequadamente profissionais de tradução, ou, pelo menos, desconsidera os profissionais da área e remunera mal tradutores arrivistas ou mesmo amadores.

Vamos ao primeiro motivo. Como tudo no mundo, livros não consistem em entidades perfeitas. E eles se tornam cada vez mais precários à medida que o mercado impõe uma alta velocidade de lançamentos. O mercado brasileiro de livros cresce 8% ao ano. Além disso, os livros já estão livres do papel, e chegam agora até nós no formato digital de e-books. Havia um respeito talvez exagerado pelo texto impresso em papel. Hoje o papel não passa de um subproduto do texto digitalizado. O papel traz matéria a um bem imaterial chamado texto. A dessacralização do objeto livro deixa os salteadores à vontade para fazer o que bem entenderem com as obras alheias.

O segundo motivo afeta a profissão do tradutor. A alta frequência de inexatidões acaba por prejudicar a minoria de excelentes tradutores em atividade no Brasil. Por isso, os tradutores profissionais estão se rebelando contra a situação. Sentem-se excluídos porque a tabela do Sintra (Sindicato Nacional dos Tradutores) é alta de acordo com as editoras, que querem trabalhar com orçamentos cada vez mais reduzidos. E já que os bons profissionais custam mais e levam mais tempo para entregar o trabalho, a solução encontrada é ignorá-los em benefício de amadores ou arrivistas. Criou-se uma espécie de lúmpen da tradução, que aceita pagamentos mínimos por uma tarefa da qual se safa rapidamente.

O que fazer para melhorar o nível das traduções e não comprometer a ínclita categoria dos tradutores? Não tenho resposta para isso. Talvez fosse útil criar instrumentos mais precisos para controlar a atividade. Mas quem faria isso sem medo de ser chamado de inimigo da liberdade de expressão? Melhor então seria empreender uma caça às bruxas para julgar e banir os maus tradutores do mapa. A desaparição de muitos tradutores preencheria uma lacuna em nossas vidas. A verdade é que a tarefa é mais complicada do que parece, além de exigir o longo prazo. Seria necessário investir com seriedade na formação dos tradutores, com critérios de seleção menos complacentes que rigorosos. Má tradução e a má leitura são farinha do mesmo saco de permissividade cultural em que estamos metidos.




3.01.2012

"O deserto dos tártaros", de Dino Buzatti



“- Estou bem – repetiu Drogo quase não reconhecendo a própria voz – Estou bem e quero ficar.


- Ficar aqui no forte? Não quer mais ir embora? O que lhe aconteceu?


- Não sei – disse Giovanni. – Mas não posso ir embora.”

É nesse momento, ao final do capítulo 9, que o personagem principal renuncia à vida na cidade e decide seu destino de reclusão no livro “O deserto dos tártaros”, do italiano Dino Buzzati. Esse post será uma brevíssima resenha desse angustiante romance.

Lançado em 1945, “O deserto dos tártaros” narra a história do jovem Giovanni Drogo que, após formar-se na escola de oficiais do exército, é designado a servir no antigo forte Bastiani, localizado nos limites extremos do império (não há uma referência espacial precisa, o que acentua ainda mais o caráter fabuloso do livro). Lá, nas muralhas do forte, vislumbra-se um imenso deserto, entremeado por montanhas inacessíveis, terrenos ressequidos e uma solidão tão imensa quanto a dureza das rochas milenares que o circundam. E nesse cenário de absoluto isolamento, soldados atentamente observam a planície sem fim, ansiosos de que os inimigos do Norte, os tártaros, enfim façam seu ataque há anos esperado.

Nessa espera absurda por um inimigo que não existe, Drogo encontra muitos homens que vivem no forte há décadas. Com paciência inumana, fielmente observam procedimentos de vigília das muralhas, de exercícios militares, de patrulhas metódicas em uma planície que é apenas um nada arenoso. No momento inicial, Giovanni observa tais comportamentos com um pouco de perplexidade; e temendo pelos efeitos negativos que poderiam macular sua carreira caso permanecesse por muito tempo naquele forte tão distante das oportunidades da cidade, pede transferência para outro posto logo no primeiro dia. O major Matti o aconselha a esperar pelo menos quatro meses: seria o tempo necessário para que o médico do exército viesse para os exames rotineiros, e ocasião perfeita para que Drogo alegasse algum tipo de problema ocasionado pela elevada altitude do forte e, então, conseguisse uma transferência sem risco de desonras, que poderia acontecer caso formalizasse um pedido desses logo nos primeiros dias.

Os quatro meses são suficientes para que o jovem Drogo fosse contaminado, ainda que em um grau mínimo, pela rotina do forte. Tempo o bastante para que ele também observasse o vasto deserto com paixão, na irracional espera pelos tártaros. Assim como os outros que ali estavam, para ele também a possibilidade de guerra contra o inimigo do Norte configurava-se como passaporte para um valor heróico de brilho sem igual – e então Drogo resolve esperar.  O romance avança no detalhamento de um cotidiano onde os dias de Giovanni passam como segundos, os meses como minutos, os anos acumulam-se sem ao menos que ele perceba. Para Drogo e todos os outros soldados ali confinados, em uma prisão voluntária das relações ditas normais, a espera tornava a glória do futuro combate ainda maior. Consumiam a vida na vigília constante das planícies do Norte, esperando os temíveis tártaros, aguardando um momento que nunca chegará, ao mesmo tempo convictos de que a guerra aconteceria e que tudo isso – a espera, os exercícios militares, as trocas de turno de guarda com seu rigor procedimental – que tudo isso não passava da mais absoluta perda de tempo. 

O romance foi muitas vezes considerado como uma alegoria da inutilidade do poder e suas convenções. O autor, em uma entrevista de 26 de maio de 1959 ao jornal Il Giorno, relacionou-o com “o amesquinhamento cotidiano e a condição humana em geral”. Uma boa interpretação, também sustentada pelo próprio Buzatti, é que o romance retrata uma sensação extremamente moderna: o consumir inutilmente a vida em uma tarefa sem fim, sem propósito, enquanto se espera um acontecimento espetacular que agirá como um divisor de águas – momento mágico que nunca se concretiza. Assim, a realização da vida se projeta sempre para frente (a conquista do “verdadeiro amor”, de uma casa, um bom emprego, etc, apenas para citar os exemplos mais banais) enquanto que a vida mesma se esvai em espera e amargura:

“Do deserto do norte devia chegar a sorte, a aventura, a hora milagrosa, que, pelo menos uma vez, cabe a cada um. Para essa vaga eventualidade, que parecia tornar-se cada vez mais incerta com o tempo, os homens consumiam ali a melhor parte de suas vidas.”

A passagem do tempo: talvez seja esse o grande tema do romance, o fio que amarra e ordena todas as suas partes. Como os homens experimentam essa passagem do tempo, como relacionam suas vidas, projetos, ambições e desejos com o fluxo incessante dos segundos. Buzatti mostra que a espera da felicidade futura é suficiente para preencher uma vida, mesmo que com as areias da ilusão. O velho Drogo, doente e esquecido pelo alto comando do forte, prepara-se nas páginas finais do romance para enfrentar os tártaros que enfim iniciam seu ataque – e é um rebotalho de homem, um velho doente e incapaz até de andar sozinho que pega o sabre, um homem que sabe muito bem que não tem mais condições de lutar. Nem mesmo esse ataque temos certeza que é, de fato, aquele tão esperado: não seria apenas mais um alarme falso, como outros do passado? Mas nada disso importa: está sustentando pela fé de toda uma vida, por anos esperando aquele acontecimento divisor de águas que transformaria para sempre a existência. 

As mentiras são capazes de muitas coisas, até mesmo de fazer um homem passar décadas no meio do nada, e de fazê-lo esquecer que no fundo o sentido do tempo é unicamente conduzir o ser ao seu término. A esperança de que as coisas um dia irão mudar radicalmente – essa fé que anima os corações de legiões de Drogos pelo mundo – muitas vezes nos priva da experiência da vida mesma, de seus perigos, tropeços, solavancos, explosões. É porque somos uma raça de descontentes: ansiamos por diferentes maravilhas e catarses o tempo todo. Nosso cotidiano é cinza, a rotina se baseia na estupidez, o amor torna-se cansativo e as promessas de eternizá-lo acabam por tornar os afetos um tipo de martírio – e passamos a desejar o nosso ataque dos tártaros sob a forma de um enriquecimento momentâneo, de uma viagem internacional ou de uma paixão que renove nossos instintos. É a compensação mentirosa que precisamos para suportar o deserto da vida.

Há uma adaptação do romance para o cinema, dirigida por Valério Zurline e lançado em 1976. Com trilha sonora de Enio Morricone, consegue reproduzir muito bem o clima desolador e angustiante do livro. Um vídeo com diversos trechos do filme: