12.14.2010

Carta número 2


O melhor das noites onde se perde o sono: ver o acúmulo lento, denso e inexorável de maus pensamentos, de rancores cheios de bile, de análises isentas de covardia que, nas horas luminosas, o espírito jamais conseguiria empreender.

Há formas muito melhores de passar uma noite: embriaguez, risos, sexo (principalmente sexo) e todas os demais apetites do baixo ventre. Mas há momentos em que mesmo nada disso satisfaria, em que nem mesmo a devassidão de um Nero seria suficiente para uma sede vermelha que só se extinguiria com um único elixir -e o seu sabor é de destruição. Quantas bocas não seriam necessárias para substituir o desejo de arremessar-se de cara contra uma parede, de esmurrá-la até os ossos trincarem e, mesmo com a dor mais absurda do mundo, rir, soltar gargalhadas de satisfação, de delírio e -por que não dizer- de volúpia? Desonesto, porém, seria o coração daquele que, tendo-lhe sido negada uma noite de sono, se contentasse com os carinhos de um alguém qualquer ao invés de executar um mergulho no que há de mais podre e inumano dentro de si. O sangue menstrual, arauto da fertilidade, fluído ferroso, é uma espécie de sujeira, e é através dele que a Vida anuncia o seu ciclo. As leis naturais assim exigem da vida: sê imunda, e frutificarás.

O meu sangue, porém, é de outra natureza. Escorre pelo nariz que bateu contra a beirada da cama, em um extremo de ódio por não encontrar o repouso (tola ilusão, desejar a tranqüilidade quando um vulcão se agita em mim). Não me limparei. Manche-me toda a roupa, misture-se ao suor de meu corpo cansado, lave-me todo, e que não me permita dormir sem antes experimentar uma Gnose capaz de elevar a visão após afundar-me até os fins dos fins. Sê imunda, oh Vida, e frutificarás.

E melhor que a ausência de sono é o silêncio que, salvo alguns poucos barulhos da rua, experimento aqui nesse templo (pois a loucura deve ser completa e mentalizo que não estou em casa, mas em um templo longínquo e inacessível, o que é uma mentira absurda mas agora tudo precisa fazer sentido ou então a operação fracassará). A suavidade do não-som, do não-lugar, do Nirvana maldito que busco há anos e que nunca encontrarei pois minha alma é agitação e Samsara girando sem parar. Se ao menos um motivo estivesse mais claro, mas não: solto no espaço resta-me o sangue de minhas narinas, os meus sonhos estilhaçados, a minha dignidade no chão. Sê imunda, oh Vida, e frutificarás.

Olho para a cama com desprezo. Nenhum descanso mais até que a Gnose esteja completa. E este sacrifício de bobo da corte nada significa na marcha do tempo; mesmo que todas as noites de minha vida, desse ponto em diante, fossem passadas em vigília, nutrindo ódio por lençóis e travesseiros, colchões e cobertores, o mundo e seu destino ridículo não se moveriam uma ínfíma porção que seja para algo diferente. Todavia aposto em ações que jamais darão frutos, o que é uma espécie de grave estupidez. Mas do que vale saber isso em condições como as minhas? A sensatez é um tipo de medo ou de cabresto. E eu escolhi viver sem medo e  tentando manter os olhos bem abertos, mesmo que seja apenas para me enojar perante o lixo dos outros -o lixo que todos nós somos. Sê imunda, oh Vida, e frutificarás.

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