4.16.2009

Vênus sob o paralelo 23°

Enfim uma mesa vaga, sábado à noite os restaurantes da Grande Cidade invariavelmente ficam assim, repletos e barulhentos. Aqueles que se incomodam com longas esperas e conversas à mesa que mantenham distância dos restaurantes daqui, especialmente do Le Tartine e suas mesas-siamesas-de-tão-próximas, que a M. nunca incomodaram quando nos invernos passados ali vinha jantar com os amigos. Eram animadas conversas entre pratos de sopas borbulhantes, degustadas sem esforços como se estivessem já frias, e depois vinho, e depois gargalhadas e casacos pesados descendo a Consolação sentido centro.
Justificar
Certamente sopa não tomariam, prefeririam pratos mais adequados, mas sobre isso nem M. nem P. pensavam enquanto subiam a estreita escada daquele bistrô francês surrealisticamente implantado nos trópicos, que ocupava discreto um sobradinho antigo em uma rua sem importância. Terminada a escada logo viram a mesa, que ficava aos fundos de uma sala pequena repleta de outras mesas, todas cheias. Mas apesar do barulho e do calor ficaram felizes, pois perceberam a mesa onde jantariam estava ao lado de uma grande janela aberta, uma promessa de um pouco mais de ar e, com sorte, refrescantes brisas.

– A quiche daqui é uma delícia, você vai ver.
– Hum, adoro quiches.

Perderam os olhos no cardápio colorido e então chamaram o garçom. Pedido feito, bastava apenas esperar para saciar a fome. Não demorou muito e logo chegaram as bebidas. Goles que descem vigorosos, sorvidos com paixão, goles de vinho, este veneno de Vênus, que refrescava as gargantas quase secas de M. e P., naquela noite tão somente um casal qualquer de mãos entrelaçadas sobre a toalhinha-toda-detalhes que cobria a rústica mesa. Conversavam já afetados pelo rubor que precede a semi-embriaguez, experimentando a mistura de ardências tropicais com a divina bebida dos Césares. Não era possível saber do que falavam, mas isso não interessa ao leitor, basta saber que da mesma forma que todas as cartas de amor são ridículas [e não seriam cartas de amor se não fossem ridículas] assim também são as conversas dos amantes, e a conversa entre M. e P. não seria nem um pouco diferente de nenhuma outra conversa de namorados que o Le Tartine e seus garçons de sotaque esquisito já foram testemunhas.

As quiches ali são servidas junto com uma salada de rúcula e alface temperada com molho de mostarda e nozes. O neófito, ao ver o prato pela primeira vez, julga-o demasiado pequeno para satisfazer seu apetite. Seja pelos temperos empregados, seja pelo modo de preparação do prato, aquelas aromáticas quiches sempre surpreendem aos desavisados, mesmo os mais famintos, que terminam a última garfada já muito para além de satisfeitos. O prato, embora saborosíssimo, necessita de uma certa dose de esforço para ser consumido até o final. Mas não veja o leitor nisso qualquer espécie de sacrifício: é um esforço que se recompensa a cada nova mordida, verdadeira explosão de sabor e prazer palatal que deixa tanto a Deus quanto a seus anjos profundamente tristes, obrigados a omnipresenciar o pecado da gula pela trilionésima vez, tudo graças aos sibilinos talentos do cuisinier do Le Tartine.

– Gostou?
– Sim, perfeita.
– Quer um pedaço da minha?
– U-hum.

Ele cortou um pedaço de sua quiche de cogumelos e levou o garfo até a boca dela, que abocanhou a fatia vagarosamente, mastigando com olhos semicerrados. Isso causou uma tempestade de pensamentos nada singulares em M., e não é preciso que o leitor seja alertado a respeito de que tipos de pensamentos eram esses, homens em geral são muito previsíveis. Somente é necessário saber que ele gostou da idéia de partilhar os pedaços de sua quiche daquele modo tão próprio dos namorados.

– Quer mais um pedaço?
– Não, obrigada.
– Vamos, deixa eu colocar de novo na sua boca.
– Você tá sendo safado!
– Não, claro que não, quero apenas te dar de comer, só isso.

Um pedaço de quiche não tem absolutamente nenhuma condição erótica, mas a Malícia é capaz de transformar até uma refeição em um torneio de provocações mútuas. E foi assim que P. preferiu se concentrar no próprio prato, com olhos fixos nos olhos de M., e com gestos intensamente femininos cortava os pedaços de sua quiche, para depois passá-los pelo molho de mostarda e nozes da salada, de um lado ao outro, em um movimento ritmado, para subitamente levá-los à boca e mastigá-los decidida, quase feroz.

– Está uma delícia.
– Tô percebendo.

M. enche a sua taça de vinho enquanto fala alguma coisa, não precisamos prestar atenção [as cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas]. Depois pega a taça, a mão enlaçando-a completamente, as regras de etiqueta tão ridículas quanto as cartas dos enamorados repreenderiam este gesto de M., sussurrariam envergonhadas que se deve sempre pegar uma taça pela haste e com a ponta dos dedos, mas ele não daria ouvido a sussurro algum, queria apenas beber tão rapidamente quanto possível, e foi o que fez: a taça levada com delícia aos lábios, o pescoço sustentando a cabeça que se projeta para trás, o veneno de Vênus descendo garganta abaixo, já são ardências romanas que avivam a carne nesta divina bebedeira tropical.

– Quanta sede.
– É só o começo, neném.

Quiches acabadas, pediram a sobremesa. A torta de maçã com sorvete de creme é a suprema opção do restaurante, e seria quase como nunca ter ido lá se M. não fizesse P. prová-la: a torta é servida quente, com generosos pedaços de maçã caramelada, perfeita combinação para um cremoso sorvete-que-derrete, a esta altura Deus e seus anjos já devem ter cansado de chorar as almas perdidas dos clientes do Le Tartine. M. fez questão de, tão logo tenham chegado as deliciosas tortas, levar até a boca de P. um pedaço daquele doce terrível, que soltava fumaças tanto frias quanto quentes, curiosa síntese mal-resolvida.

– Gostou?
– Sim, e quero mais.

O leitor precisa saber: isso foi dito com uma intenção cruel. Só aos homens é possível compreender a vasta dimensão da crueldade de uma mulher dizendo quero mais enquanto passa a língua pelos lábios superiores. E da mesma forma são cruéis as mãos femininas que arrumam os cabelos por nada, são cruéis os atos de se espreguiçar sem estar realmente com preguiça, são cruéis as unhas vermelhas, são cruéis os brincos de argolas enormes e são cruéis muitas coisas que aqui não vou dizer, traição grave aos meus companheiros revelar assim nossas fraquezas. O que resta dizer sobre este jantar é que as cruéis palavras de P. funcionaram como um elemento ativador de todas as potencialidades venusinas do vinho, e de repente não importava mais o infernal calor dos últimos dias, não importava que as mesas estavam todas cheias de pessoas falando sem parar e com suas respirações aumentando ainda mais o calor no Le Tartine, não importavam as quiches nem as tortas de maçã e muito menos saber que só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas: para aqueles dois a única coisa importante era pagar a conta e desesperadamente voltar para casa o mais rápido possível.

4 comentários:

  1. Post fantástico amigo, bela narrativa e adorei o nome também rsrsrs.

    ---

    Tem post novo no Cabaret de Vênus, e dessa vez é feminino.

    http://cabaretdevenus.blogspot.com
    -

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  2. Ahh, mon Die!

    Mon ami, esse seu texto era tudo que eu precisava ler para ir dormir feliz. Ao ler, me transportei para Paris. Ah, como eu queria estar em Paris. Como queria estar em um bistrô aconchegante com mesas-siamesas com o meu namorado. E como se tudo isso não bastasse, o meu apelido começa com P (Pelirroja) e o do meu excelentíssimo começa com M. E devo confessar que abri um sorriso enorme quando li a referência a Fernando Pessoa.

    Obrigada por nos levar à Paris. Desculpe-me por ser meio intrometida e nos ver em seu texto, mas realmente não pude evitar.
    Adorei o blog, adorei Paris e suas delicious tags! ;)

    À bientôt!

    Bisous! ;*

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  3. "– Gostou?
    – Sim, e quero mais.

    O leitor precisa saber: isso foi dito com uma intenção cruel. Só aos homens é possível compreender a vasta dimensão da crueldade de uma mulher dizendo quero mais enquanto passa a língua pelos lábios superiores. [...] Traição grave aos meus companheiros revelar assim nossas fraquezas."

    Bom saber ;D
    Vou ter que explicar lá no Cabaret que esse tipo de charme não tem nada de 'frescura'.^^
    Obrigada pela visita.

    http://cabaretdevenus.blogspot.com

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  4. Mademoiselle Pelirroja,

    "M. e P.": coincidências, elas tornam a vida mais divertida, não?

    E não há necessidade de se desculpar, alegra-me saber que você se identificou com o texto. Volte sempre

    Ms. Hannigan: vou cobrar esta sua explicação lá no Cabaret, ok? ;-)

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