Epifania vem do grego Eπιφάνεια, que significa “aparição”. A palavra latinizou-se e entrou para o calendário católico designando o momento da adoração de Jesus pelos Três Reis Magos, vindos do Oriente para contemplar a “aparição” de Deus na terra. Epifania também tem uma acepção secular e significa a apreensão do sentido profundo de uma realidade por meio de algo simples, inesperado ou banal.
Epifania pode ser um bilhete oculto, mas que o descuido de um amante deixou escapar e justamente aqueles olhos que não o deveriam ler o fazem, tomados de espanto (adorei a noite de ontem, espero ansiosa o dia em que poderei enfim tê-lo só para mim, apenas meu e de mais ninguém, assim como eu já sou toda sua). Epifania no formato de um simples pedaço de papel cuja leitura é como um sonho ruim, leitura acompanhada de uma incredulidade amarga, mas que explica as conversas semimudas, os carinhos sem calor, o sexo sem a entrega.
Epifania é também um diagnóstico tardio (O câncer no pulmão já está em metástase por via hematogênica, Explique melhor doutor, Metástase é o processo que espalha as células cancerígenas de um órgão para outros órgãos, por via hematogênica quer dizer que é pelo sangue, o que é o mesmo que dizer que o câncer já se alastrou pelo corpo inteiro, Não há mais nada a fazer então, Não, sinto muito, só nos resta esperar). Diagnóstico que faz lembrar das dores absurdas, do cansaço para coisas que antes não nos cobravam nenhum esforço, dos primeiros sintomas que nunca percebemos mas que o veredicto do médico torna uma realidade pungente, levando cada célula cerebral a trabalhar no limite, vasculhando o passado na busca do impossível que é saber quando se deveria ter ido fazer um check-up, quando se poderia ter descoberto aquele pequeno amontoado de células mortas que crescia silencioso, alimentando a doença em pequenas doses, expandindo lentamente sua massa negra e sem forma que faz apodrecer até os ossos.
Epifania tanto pode ser a respeito do indivíduo (a traição do amante, a doença incurável) como também abranger realidades maiores. Há epifanias que nos revelam aspectos do mundo, da vida em geral. Podem ser experimentadas na solidão de um quarto ou nos bancos de um metrô às dezoito. A janela de um ônibus, por exemplo, ao passear indiferentemente pelas avenidas de uma grande cidade, pode ser canalizadora de epifanias. Como a moldura de um quadro, a janela de um ônibus (algo simples, inesperado ou banal) mostra a cidade como uma paisagem; o efeito em geral é entediante, mas há momentos em que a janela testemunha algo maravilhoso e convida os olhos próximos a compartilhar desta visão. O que daí resulta é problema de cada par de olhos que aceitou o convite.
Uma janela convidou os meus em um fim de tarde, quando o ônibus chegava ao final da avenida P. Olhei para uma praça que ali fica, onde existe um chafariz desativado já há anos; sem água, o chafariz é triste e apenas acentua a decadência daquela pequenina praça circular de bancos sujos e árvores feias. No centro do chafariz há uma estátua de um homem agachado olhando para baixo com a mão direita ameaçadoramente levantada, como que prestes a golpear algo que está no chão. Passavam muitas pessoas por ali naquele final de tarde, como sempre, mas detive os olhos em um casal de namorados: sentados em um dos bancos da praça, em frente ao chafariz desativado e triste, eles se olhavam trocando sorrisos, ela com os braços sobre o pescoço dele, ele com as mãos na cintura dela. Pareciam contentes, talvez apaixonados e, se quisermos exagerar, até mesmo felizes. O fato é que estavam sentados em uma praça e trocavam carinhos, da mesma forma que milhões de outros casais já fizeram, em incontáveis praças pelo mundo. A praça pública, símbolo de recreação e bem-estar, arremedo de natureza entre prédios que só crescem, a praça pública ou, mais precisamente, o namoro em praça pública nos parece, nós filhos dos tempos modernos, um acontecimento remotíssimo e que só pode ter lugar na memória dos velhos e nas páginas de uma literatura que pouco nos interessa. Mas nada disso importava para aquele casal. Era necessário um lugar para sentar e trocar carinhos e ali, naquele banco, eles encontraram esse lugar.
A moldura-janela movia-se (tanto a contemplação do casal como o que aqui segue não durou mais do que segundos) permitindo que o olhar alcançasse um outro ponto do chafariz desativado. Isso revelou que havia algo dentro do chafariz; a princípio não pude definir muito bem, mas então percebi (o bilhete oculto, o diagnóstico tardio) que se tratava de uma mulher: de cócoras, semi-oculta pela borda do chafariz, ela defecava desavergonhadamente, espalhando suas fezes aos pés da estátua central (enorme ironia aquela mão levantada, como prestes a golpear um animal rastejante, um verme). Eram pastosos pedaços de fezes que nasciam para o mundo no chafariz daquela praça suja de árvores feias; e logo ali em frente, sorridentes e estúpidos, um casal de namorados sentado em um banco, gozando da decadente hospitalidade de uma praça pública. Nenhum deles parava de fazer o que estava fazendo pela presença do outro: ela continuava defecando; eles, sentados logo ali em frente, permaneciam com os mesmos gestos e olhares apaixonados. A praça pública atuava como um neutralizador de presenças incômodas, de odores fétidos, de olhares curiosos, abrigando uma cena que já demasiada vulgar, repetida cotidianamente e até mesmo com graus de escatologia ainda maiores. E assim como os amantes que traem e os diagnósticos tardios, a cena que vi pela janela do ônibus (algo simples, inesperado ou banal) já é parte do cotidiano, e mescla-se à paisagem urbana como um item a mais, a necessária peça do quebra-cabeça sem a qual o jogo jamais estará completo. Aquele quadro absolutamente banal –a praça abandonada, a indiferença do casal de namorados, a ausência de pudor da mulher que defecava– funciona como um microcosmo da Cidade, reflexo de suas manias e trejeitos, espelho onde o seu sentido mais profundo se apresenta ofegante, impiedoso, terrível como uma epifania do divino cheia de brutalidade e selvageria, mostrando a mim, nos poucos segundos em que contemplei aquela cena, o sentido profundo de uma cidade enlouquecida e que permite tudo que viole suas próprias regras, infiel até mesmo para as próprias mentiras que conta, regozijante de seu vão glamour subdesenvolvido, sufocada pela hipertrofia desenfreada das banalidades mais chãs e constantemente espancando a todos com o peso hercúleo das avenidas congestionadas, da insegurança supervalorizada pelos jornais que vivem de sangue, da falência de tudo o que é público. E com feridas do tamanho de nossas desilusões –enormes, profundas, antigas– a miséria cotidiana é engolida como um gole de café e mesmo com tantos pontapés nenhuma nova dor parece ser possível.
"Epifania pode ser um bilhete oculto, mas que o descuido de um amante deixou escapar e justamente aqueles olhos que não o deveriam ler o fazem, tomados de espanto." - Alguém te contou como meu namoro acabou é??
ResponderExcluir"Epifania é também um diagnóstico tardio." - Como vc sabe que meu cunhado tá com câncer??
Mãe Diná!!
Semana passada meu primo reclamava sem razão porque havia ganho uma festa de aniversário mas não era do personagem que ele queria. Eu o trouxe até a Praça da Luz pra ver as crianças da idade dele que são abandonadas, imundas, com fome, drogadas... e falei pra ele a mesma frase de seu texto: "A praça pública atua como um neutralizador de presenças incômodas." Praças são bem vistas, essa é um lugar lindo... se não fosse a precariedade dos seres humanos.
A vida é uma coisa bem doida L. Pessoas que ocupam o mesmo local o aproveitam de maneiras diferentes. Pessoas com as mesmas condições vivem de maneiras diferentes. São valores, são conceitos. E ainda bem que é assim.
O importante não é manter o seu bem-estar?? (não sei mais a maneira correta de escrita pós reforma ortografica, me desculpe!)
Ah, e no teste das cartas de tarô ali ao lado, eu sou The Wheel of Fortune.
Um beijo L.
;)
A.
Olá,
ResponderExcluirperfeito a parte em que os romances nos livros já não nos interessam.
não nos deixe esperando muito pelo próximo texto.
P.O.
Bom texto, me fez pensar.
ResponderExcluirVou continuar acompanhando o blog, você tem uma linha de raciocínio muito boa.
http://cabaretdevenus.blogspot.com/
A Moral Burguesa ajudou os cafas, meu caro frequentador do Cabaret, ou você acha que era fácil lhedar com a sequência saia, sobre saia, espartilho, calçola e ainda ter que ficar chateado com um tal cinto de castidade ?
ResponderExcluir[]'s
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