1.01.2009

O nada do Revéillon

Acordar. Ir ao trabalho após uma noite mal dormida. Nem tomar banho para chegar rápido e rápido ir embora. É dia 31 de dezembro de 2008, um dia como qualquer outro. Um ano acaba e começa todos os anos e as pessoas ainda festejam. Não vejo motivos, mas mesmo assim sempre passo a virada festejando. Contradição, quem não as tem que atire a primeira pedra, disse Jesus (há uma bíblia na sala de minha casa, estranho ter uma bíblia em uma casa de pessoas com tão pouca fé, mas acredito que em todos os lares as coisas são assim). Contradições ou pecados? Não importa, ambos são louváveis. Haverá fogos e bebidas e comida e a tradicionalíssima lentilha. Penso nisso enquanto vou ao trabalho. Ruas vazias. Lojas fechadas. Se não fossem as decorações natalinas, eu diria que o mundo tinha alcançado um estado de semi-perfeição, bastando para isso apenas o ocaso do Sol. Ou talvez nuvens de densidade megalítica, o que daria no mesmo. Choro e ranger de dentes. No Apocalipse de São João o dia do Juízo Final é descrito como um dia de trevas sem Sol (lembrança falha, a bíblia na sala, não quero ir até lá). Seria por isso um dia triste? O elevador sobe dez andares. Sentar na mesa. Nada para fazer. Refletir. Qual o sentido de minha presença neste lugar. Sorrir para as pessoas que como eu acordaram forçadas para chegar, sentar e nada fazer. Passa alguém pela minha mesa para dedicar um feliz ano novo. Não sei como responder. Falar sempre foi uma tarefa difícil, mas responder a isso requer esforço demasiado. Desejar um ano de felicidades é algo muito sério. Cabe em um ano acontecimentos inúmeros. Como desejar felicidade a alguém por 365 dias e ser sincero ao falar isso? Diz-se que todos são sinceros nessa hora. Eu tento ser, mas minha vontade é dizer: "olha, eu não sei como será seu ano, possivelmente será duro e repleto de contratempos, talvez algum ente querido morra, talvez você morra, então esteja preparado, a gente nunca sabe, não é mesmo?". Mas a realidade está aí para ser escondida, deturpada e enfeitada com mil palavrinhas sabor-qualquer-coisa-menos-amargo. Dizemos então "Feliz ano novo!", sorrimos, trocamos beijos, trocamos abraços. O discurso nos salva da chatice dos chatos e brindamos com espumantes, alguns pulam ondas, há aqueles que oferecem presentes para Iemanjá, e isso é também uma forma de discurso. Um forma de salvação. Fujo do trabalho-nada, ganho as ruas novamente, vejo perto do Largo da B. algumas lojas abertas. Não sei o que as pessoas tanto compram. Em breve, os livros escolares ensinarão que as funções vitais do homem são comer, beber, respirar. defecar, reproduzir e comprar. Liberais darão saltos de alegria nesse dia, fiéis loucos que são todos eles da demência do Mercado. O metrô está vazio, sub-percorrendo a Paulista, que em breve estará como um formigueiro, dançando, suando e rebolando ao som de alguma trilha sonora erótica dos grupos de música popular. Haverá brigas, assaltos e vômitos espalhados pelos cantos das ruas próximas. Policiais de saco cheio vão esbofetear uns tantos quantos, e cada tabefe dado será um alívio, o equivalente a um copo de cerveja não bebido. Há aqueles que se embebedam com doses de violência, eu mesmo já tive meus deleites e confesso que isso vicia. Sair do metrô. Chegar em casa. Arrumar a mala. Ir viajar. Repetir o ritual de milhões, jogar-me de cabeça no nada do Revéillon, dar abraços e beijos na primeira hora do ano novo, sorrir, festejar, deixar a Mentira sentar em seu trono de rainha e açoitar com seu cetro as costas arqueadas da Realidade.

5 comentários:

  1. Anônimo1:31 AM

    Sentar-se à mesa. Nada para fazer. Refletir - aí mora o perigo! Cabeça vazia = casa de qualquer um.

    Bom você ter falado sobre a Biblia, Lê. Sou só eu ou você também acha estranho todos os anos as famílias brasileiras ignorarem de onde surgiu a data e desviarem seus valores para colocar em suas casas uma árvore que praticamente não existe no Brasil, simular neve, idolatrar um velhinho barbudo de bochechas rosadas vestido com um monte de roupas adequadas para baixas temperaturas??

    O que a Coca-Cola não consegue fazer, não é?

    http://3.bp.blogspot.com/_cJG9SZA3XA0/SUkSpoH5waI/AAAAAAAAAHI/4gV1xj_gAuc/s320/noer.bmp

    Mas como você disse, "a realidade está aí para ser escondida, deturpada e enfeitada com mil palavrinhas sabor-qualquer-coisa-menos-amargo." Por isso te admiro sem fim!!

    Também sinto esse vazio na virada do ano. Não sei o que tanto as pessoas almejam! Eu me iludo todos os ano com o questionamento "será que algo emocionante ou diferente irá acontecer quando os ponteiros se juntarem??" e nada.

    Há pessoas que se dizem purificadas, "de alma lavada", livres de todo o peso na consciência do ano anterior, mas eu não acredito. Se fosse assim, as consequencias também não se estenderiam pelo ano seguinte. Humpf!!

    É novamente hora da champagne e dos cumprimentos. Oras, por quê champagne?? Champanhe. Essa bebida nem brasileira é. Celebraremos com cana de açúcar!! Não?? E toda família tem aqueles 2 ou 3 que você só vê no Natal ou Ano Novo. Quem nem a cantora Simone. É uma festa de oportunistas mesmo.

    E a roupa branca nova?? É igual noiva. Todas se casam de branco, a cor da pureza, mas atualmente ninguém é virgem. Tudo balela!!

    Vai entender este mundo de ilusões...

    Beijo gigante L., ainda gosto bastante de você e vai ser assim por todo o sempre. Sem dúvidas!!

    A.

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  2. "Sou só eu ou você também acha estranho todos os anos as famílias brasileiras ignorarem de onde surgiu a data (...)?"
    Sim, é estranho demais. No Itaim, neste último Natal, havia uma rua com neve artificial. Olha que coisa mais bizzara, neve artificial em dias de 30 graus.

    Mas a melhor resposta para sua pergunta eu vou dar com um vídeo do Pat Condell. Tudo o que ele fala é o que eu queria falar! NÃO deixe de assistir, por favor:

    http://www.youtube.com/watch?v=hcBw1T2l8HY

    Beijos, srta A.!

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  3. O revéillon, como tantas outras datas, é um acontecimento muito curioso. O pior de tudo é: Assim como você e eu, tantas pessoas sabem dessas verdades paradoxais sobre a data e entram na mesma ciranda tosca de festas e frases prontas de alento e negação ao sofrimento que vier. Nããão, isso
    não é um comentário do tipo "olhe como seu texto está errado". Ao contrário, seu texto está certo, muito bem escrito e eu concordo com ele, mostly. Só é triste que não usemos essas nossas idéias para algo visceral e prático. Mas o que fazer?
    Já que não nos achamos mais no msn para falar de assuntos aleatórios, quando eu tiver um pouco de sossego te mando um email comentando melhor seus textos, posso? Beijos!

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  4. É difícil escapar do réveillon. E por mais que alguém tente não obter nenhuma informação sobre o mesmo, e então passar a ignorá-lo, não consegue mudar o mês sem ser atingido pela virada do ano.

    Gostei do texto. E como muitos nessa época, também acabei escrevendo sobre o tema. Sinta-se à vontade para lê-lo.


    Abraço.

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  5. Anônimo7:08 PM

    Feliz Ano Novo Lê, que seus sonhos se realizem, muito sucesso, dinheiro felicidade e acima de tudo, AMOR. AMOR é a lei, até mais do que a vontade de amar.

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