1.30.2008
C´est la vie
1.21.2008
O Mercado e a Alma
Ainda sentado na cama M. brigava com a sedutora preguiça quando o telefone tocou. Vem logo, o Mercadão hoje deve fechar cedo, era A. alertando o amigo, afinal já passava das dez da manhã e possivelmente ao meio-dia todo o comércio fecharia as portas. A necessidade fez M. vestir qualquer coisa e esquecer de qualquer higiene, foda-se, é o último dia do ano, pra quê se arrumar. Chegando ao prédio de A. tomou o elevador e olhou no espelho, a qualquer desejo de vaidade não haveria mais lugar, se estivesse ridiculamente vestido teria que suportar, e na totalidade dos desastres do mundo o que é uma desastrosa escolha de roupas, suportamos todo dia a ofensa de um relógio no pulso para lembrar que somos escravos do tempo, perto disso o olhar de gargalhadas da garota linda que passou não é nada. M. já estava papeando com A. na cozinha, ontem eu e a D. compramos algumas coisas no mercado aqui do lado, dá uma olhada nestas azeitonas chilenas, estavam baratas.
- Chama logo a D., cara. Não quero demorar muito lá.
- Vamos.
E no Mercado o cheiro-alma da Cidade ficava ainda mais forte e misturava-se ao odor das frutas da estação,das verduras, das carnes, das pessoas que amassavam na quase orgia dos corredores estreitos. Prove uma uvinha, mais doce aqui não há, disse o vendedor orgulhoso de tão gordo, e entre os dedinhos espertos deixa escapulir um punhado de róseas uvas para as mãos de A. Quantos dias eu conseguiria viver apenas comendo as frutas dadas como amostra, M. perguntou a si mesmo. Viver naquela cidade era caro demais, fizera planos de gastar menos no ano que chegava, quem sabe as economias ajudassem a comprar um carro, mas um empecilho de ferro a piorar o trânsito da cidade.
Começou a ver todas aquelas pessoas se fartando de frutas cristalizadas, de ameixas, de tremoços, de queijos, eram famílias inteiras a compartilhar risos e sacolas. Todos pareciam felizes, e isto fez M. colocar em cheque sua felicidade, sua satisfação para com o mundo, com sua vida. Pois era um ano pesado o que embora ia, estranho atribuir uma massa física ao ano, mas é como se 2007 lhe pesasse nos ombros. Enquanto isso o vendedor gordo generosamente distribuía suas uvas, e era tão satisfeito que enojava. A. e D. logo adiante inspecionavam uns provolones, e mais gente chegava suada de tão apressada. Sei lá por que diabos uma ternura brotou no coração de M. enquanto ali parado estava, atrapalhando com seu imobilismo o livre trânsito das pessoas e suas sacolas, de-tudo-expectador, a pensar nos quitutes que comeria naquela noite e em quais novas paixões e desastres se envolveria no ano que nascia.
1.20.2008
Literatura e Filosofia
Inspirado pelo post anterior sobre Deleuze, andei a pensar nestes dias a respeito das relações existentes entre literatura e filosofia, ou melhor dizendo, da literatura e seus "personagens filosóficos".
Aqui, obviamente, é impossível não lembrarmos de alguns nomes. E em minha lista, Raskholnikov ocupa o topo, pela sua fúria destruidora de mundos, cujos questionamentos não pouparam sequer a si mesmo. Mas apenas ele não basta, e também podemos colocar aqui Herman Hesse, Álvaro de Campos, Saramago, Kundera... (se alguém estranhar que comecei com um personagem e continuei a lista apenas com autores, aviso que para mim Raskholnikov é tão real quanto eles, e até mais vivo que muita gente que anda por aí, cheia de saúde).
Eu tinha 17 anos quando li Crime e Castigo. Hoje, 12 anos e muitos outros romances depois, posso dizer que os que mais gostei foram aqueles que mais filosofia me trouxeram. É por isso que "Seara Vermelha" me causa tédio: ali há enredo, há personagens, há situações, há cenários, mas me falta o choque de idéias e questionamentos que encontro ao ler "Crônica da Casa Assassinada". O que os separa não é apenas a opção política, Jorge Amado o comunista, Lúcio Cardoso o católico liberal, mas a amplitude das questões que afetam as personagens e o próprio narrador. Tampouco isso se determina pelo comunismo chato de Jorge Amado, já que Saramago é um vermelho de carteirinha e me fez chorar e destruir uns dois conceitos antiquados sobre a vida com "O Ano da Morte de Ricardo Reis".
Imagino que romances Cioran escreveria, se tivesse estômago para criar um mundo e nele colocar personagens. Aspirante que era a ser um eterno objeto, certamente consideraria a tarefa desonesta demais. Este texto ainda não acabou e certamente escreverei mais a respeito do diálogo sempre fecundo entre literatura e filosofia.
1.10.2008
O ABCD de Deleuze
Ainda não terminei de ler. Fui até a letra D. Mas foi o suficiente para me apaixonar e, se você ler, vai entender por que eu disse isso.
Por hora eu me calo. Agora, vá até a página e comece sua leitura.
Zumbis!
Não há absolutamente sentido algum neste post, mas convido você a fazer o teste acima e saber quais são suas probabilidades de sobrevivência se, de repente, sua cidade for invadida por zumbis.
Sim, eu amo Madrugada dos Mortos e daria tudo para viver naquele filme por ao menos uma hora (e devidamente armado de uma AK47, é claro).
Não, eu não fui e não irei JAMAIS ao Zombie Walk e acho que quem foi merece tanto desprezo quanto qualquer jogador de RPG.
1.03.2008
O sonho de uma mulher desesperada
(“Saiba você pois que há mulheres que conseguem ser maravilhosas até mesmo quando um certo desleixo as afeta. Elas conseguem provocar suspiros de paixão não pelo salto alto ou pela ousadia de um decote, mas principalmente pela insolência de um cabelo despenteado, pelo olhar de nojo endereçado a tudo, pela petulância ao acender um cigarro e baforar a fumaça como quem diz ‘eu simplesmente não suporto nenhum de vocês’. Todo homem se depara com uma mulher dessas, e acredite, elas sabem como proporcionar muita diversão.”)
E delicado não é apenas o quarto, mas também a maneira sem cuidados dela ali deitar Olhando-a assim, enquanto ela dorme, com o corpo desajeitado e semicoberto por fino lençol, percebe-se o seu sono tranqüilo, a frieza de um sono que não se atormenta por nada – ou melhor, a aparência de um sono que não se atormenta por nada. Pois se possível fosse vasculhar os sonhos de outrem, a S. atribuiríamos um sono cheio de tormentos, um sono que não descansa o corpo mas o mutila por mil imagens que se repetem, por mil vibrações oníricas que o abalam.
(“A minha eu conheci faz alguns anos. Pois bem: tudo que ela me trouxe, no dia em que foi embora a desgraçada levou em dobro. Eu podia ter lá meus problemas, todo mundo tem, mas sério, eu ainda conseguia manter uma certa dignidade; sempre achei os românticos idiotas, sempre achei os que sofriam por amor dignos de pena, mas graças a ela eu me vi perdido. E eu acho que para sempre.”)
Ela suspira mais fundo, lentamente começa a se movimentar na cama, até que se vira por completo e deita de bruços, todo o movimento realizado como se cada músculo pesasse toneladas, e mesmo assim é inegável a harmonia toda deste balé de adormecida. Mas neste momento, onde o mexer-se na cama parece fruto da arte, não há nada de equilíbrio nos sonhos de S.: ela está correndo, parece ser em uma floresta, está nua, suja e apavorada, há pessoas acampadas em barracas próximas, com horrendas deformidades, ela grita por socorro mas ninguém a ajuda, apenas a observam e ficam a rir, e ela continua a correr. Qual o significado deste sonho, S. perguntou a si quando o teve pela primeira vez, não encontrou resposta e continuou sonhando. São quatro meses e as mesmas imagens se repetem, existe mensagens escondidas nele, uma amiga com tendências esotéricas sentenciou, mas isso não foi o bastante para que o oculto sentido se manifestasse e muito menos para que, na noite seguinte, o tormento de S. não se repetisse.
(“Sabe o que eu desejei então? Que a maldita jamais tivesse paz. Isso mesmo. Paz, você nunca terá, eu disse. Na cara dela, no dia que ela foi embora. Falei isso e ri, ri de satisfação, ri inebriado de vingança, entorpecido de vingança. Nunca mais a vi, desde então. Melhor assim.”)
Agora ela não se mexe, mas solta um gemido. Nas pessoas que dormem, um gemido significa desejo de despertar motivado pelo medo daquilo que se sonha. S. sente medo, mas não consegue acordar, e segue correndo desesperada em seu sonho, ainda na floresta, mas agora passando no meio das barracas, que se multiplicaram, e os aleijados mal-cheirosos riem ainda mais alto, e para onde quer que ela olhe só há floresta e aleijados que riem sem parar, e S. geme ainda mais alto, principalmente quando percebe que as centenas de aleijados que a cercam têm o mesmo rosto, rosto de um homem que ela não consegue distinguir bem, mas que lhe é familiar, no mundo dos sonhos não há limites precisos para nada, e podemos desconfiar de S. quanto a esta familiaridade, já que mesmo acordado cometemos equívocos e tomamos por x o que na verdade é y. De qualquer modo, a impressão dos rostos iguais é profunda o suficiente para que os gemidos fiquem longos, doloridos. Estranho que gemidos ocorram tanto em momentos de medo e dor quanto de prazer, isso faz supor que até mesmo as imagens horríveis que S. suporta sejam no fundo motivos de delícia, mesmo que inconfessáveis. A cabecinha se agita um pouco, como se quisesse enfim se levantar e despertar, mas isso ainda não ocorre e tudo que vemos é um novo movimento do que chamamos logo antes de balé, já não há nada da graça de outrora, mas um alvoroçado mudar de posição, neste ponto a delicadeza de S. diminui e fica presente a mulher-voraz, a mulher que no auge do clímax grita e se movimenta em espasmos, não que S. esteja tendo um orgasmo, mas as pernas se movimentando rápido sugerem o gozo.
(“Hoje eu acho que deveria ter ido além. Sabe, uns tapas bem dados pra ela saber o que deve e o que não deve fazer com um homem que a ama. Mas eu só a peguei pelo braço e dei uns belos chacoalhões, maldizendo cada segundo da vida dela. Talvez dar os tapas não mudasse nada, ela iria embora uma hora ou outra mesmo, mas eu ficaria muito mais satisfeito. Só sei que, quando a agarrei e gritei, eu pude ver o medo que ela tinha de mim. Só aí eu me dei conta que já não havia mais nenhum amor nela, que nenhum esforço de reconquista seria possível. O melhor era deixá-la ir, já que na verdade há muito tempo ela não estava mais perto de mim.”)
No sonho, ela continua correndo, e há milhares de aleijados sufocando-a, ela pula por cima deles, dos que se arrastam, mas há outros que sustentados por pernas ossificadas se esfregam nela, e riem sem parar, ela cai e levanta, mãos tentam segurá-la, nem as lágrimas comovem os atrevidos, na verdade é isso que os deve excitar. Um dos monstros a pega pelo braço, arrasta-a para perto do rosto contorcido e grita, S. então finalmente distingue a face tão familiar, ela não pode acreditar no que enfim vê, e seu choro é intenso e desesperado, as mãozinhas agarram os lençóis, puxam-no para si, já está com as costas empapadas de suor, e tão presente é o medo que de seus olhos vemos escorrer lágrimas, balbucia algumas palavras, mas não é possível entender nada, entrecortada que estava a fala pelo gemido e pelo sono. Logo em seguida ela desperta, repletos de lágrimas os olhos, o choro que ainda não terminou, a expressão de confusão e medo nada se assemelha ao delicado semblante de antes. Já sabia que sonharia aquilo tudo novamente, exatamente igual, no dia seguinte. E a surpresa de reconhecer o rosto dele naquelas faces e corpos abomináveis a tomava por completo e produzia uma sensação desagradável. Pois era estranho logo ele assim surgir, como parte deste pesadelo tão incomum, e ao mesmo tempo tão real, mesmo que absolutamente improvável. Não conseguiu voltar a dormir e chegou a temer que não voltasse nunca mais.