Ainda preciso ficar mais sete horas aqui dentro. Tal como o prisioneiro da solitária, conto os minutos que me separam da liberdade até o enlouquecimento. Um copinho de café e uma rápida ida ao banheiro apenas aumentam a sensação de que estou sob rígido controle. Todo meu esforço, então, vai ao sentido de transmitir aos demais que estou profundamente atarefado, olhar fixo no monitor, fazendo cálculos monstruosos, projeções de cortes de gastos para melhor multiplicação de dividendos. Em verdade minha mente está a quilômetros de distância visitando as delícias de uma cena de crime hediondo, algum excesso sexual ou relembrando o ótimo filme de ontem. Nada na tola vida corporativa que preciso aturar para garantir meu sustento me interessa. Sou incompatível com gráficos e fórmulas financeiras. E sempre quando aperto o nó da gravata penso o quão estranho são os caminhos que Deus escolhe para Seus filhos, quer acreditemos Nele ou não. Mas o que importa tudo isso? Será que eu desejo, no mais íntimo, que me paguem para fantasiar poesias? Tudo que me sobra são insatisfações e, desde a última visita ao médico, o início de uma gastrite nervosa. Nem refrigerantes, nem frituras, evite os enlatados, e passar bem meu rapaz.
3:30 PM – 27/06
O pior são as reuniões com a gerência: encontros programados para durarem duas horas, acabam se estendendo por até quase três, repletos daqueles sebentos protocolos de bons modos corporativos. Dê-me um castigo corporal, minas sem fim para escavar na Sibéria, uma noite andando nú nos domínios de Isengard, permitam-me sentir o sangue da carne escorrer e pintar no solo alguma imagem qualquer, um desenho infantil e grotesco – mas não me façam participar de mais uma reunião dessas. Até cheguei a dormir em uma delas. Sentado, a cabeça caída para frente, a expressão azeda da minha chefe louca para explodir desatinos enquanto os outros apenas esperavam meu despertar humilhado. Sempre me alegro quando lembro daquela incômoda (para os outros, não para mim) sesta corporativa, mas não gostaria de repeti-la.
5:15 PM – 29/06
Estou indo para a sala dela. O motivo eu já sei. As vendas da minha equipe não estão bem. Nunca foram. Dependendo do meu esforço, nunca serão (sou o tipo de homem que não se entende com notas ou valores; sempre quando adquiro algo me sinto como se tivesse sido enganado e na maioria das vezes faço péssimos negócios, mesmo quando compro chicletes). Era a quinta vez apenas hoje que esta prostituta me chamava na sala dela apenas para gritar. Uma gritaria e um acúmulo de palavras poucos gentis. Resultados, precisamos de resultados, sua equipe está péssima, você precisa motivá-los, não sinto comprometimento de sua parte, isso é irresponsabilidade. Friamente eu ouvia tudo, até o final. Olho no olho, como deve ser. Cada palavra era pesada, analisada, relacionada com diversos outros dados e, em questão de segundos, emaranhado em cálculos e numa queda vertiginosa de auto-estima, surgia um El Greco, os céus pesados de Toledo e o desejo de um êxtase de santo prestes a tocar o Intangível (as pinceladas velozes e o tom sobrenatural da cidadela, vista ao longe, as cores frias que quase tornam tudo opaco...).
- Você está anotando tudo que estou te pedindo?
- Sim. Tudo aqui, na minha agenda. Mais alguma coisa?
A sala tem uma larga janela no fundo. A cidade e seus prédios, posso vê-los daqui; conto o primeiro, o segundo, o terceiro, e são tantos que perde-se a conta e o olhar em meio a tantos prédios. Nas paredes predomina a candura de uma pintura nova, higiênica e desconfortante. O ambiente lembra um hospital. A mesa, em cor negra, acomoda uma agenda, canetas e um computador. Mulheres, amantes que são dos laços afetivos e (em grau ainda maior dos) seus símbolos, encheriam aquela mesa com fotos de entes queridos: o esposo, o namorado, os filhos, o amigo... Contudo não há nada que lembre afeto naquele ambiente. Nenhuma menção de carinho, nenhum traço de desorganização: ordem absoluta e fria que trazia-me enjôos.
- Eu sempre chamo você aqui pelo mesmo motivo. As vendas da sua equipe...
- ... pioram a cada dia!! Eu sempre falo sobre isso, mas parece...
O Ragnarök começaria com uma grande tempestade e as gotas fariam barulhinhos sabor creme de avelã. As gotas escorreriam pela minha boca semi-aberta. Ligaria para minha ex-namorada: você tinha razão, os barulhinhos da chuva têm sabor. Ficaria feliz por isso. O Ragnarök destruiria tudo mas a chuva seria consolo triste no meio da destruição.
- ... que você não se importa com nada!
- Estou revertendo esta situação. Nos últimos dias...
E olhando mais além dos primeiros prédio, a água da chuva que cai, densa, escura, constrói uma cena sem beleza, mas que prende o olhar e faz esquecer o Ragnarök. E por detrás da eficiência de minhas explicações de subalterno, apenas desejo minha demissão, apenas um confortável seguro-desemprego, apenas algumas migalhas pelo esforço de anos aqui. A imagem longínqua dos prédios, cada vez mais opaca e distante, mesclando-se ao som de minha voz mentirosa, que diz aquilo que precisa ser dito e que não impõe respeito nem convicção, vai aos poucos perdendo o interesse, e nada mais consigo olhar, nem sentir – sou todo voz, e uma voz toda de mentira e engano. Reproduzo com automatismo coisas inventadas não por mim, mas não reconheço quem as inventou. Até mesmo duvido se sou eu mesmo falando, se não há mais alguém que não vi quando aqui entrei, mas a dúvida é banal e passa depressa. Logo vem a mente mais uma vez a chuva, as telas de El Greco, uma confusão, mas não importa o que eu penso, o discurso é arranjado com precisão arrisco a dizer aritmética, contraditório atribuir às palavras uma alma de número, mas assim as coisas acontecem quando o que se fala é aquilo que o outro quer ouvir, um esforço mental quase nulo, basta deixar que o decoro e a hipocrisia guiem a língua. Coloco ao lado do discurso pronto um sorriso simpático, não há como dar errado tal tática, e já não me importo mais com a aparência de ambulatório da sala, apenas quero terminar mais esta encenação, e se o sorriso adiantar o fim melhor.