Eu vivi todos os dias da minha vida sendo eu mesmo.
Senadores castrados de seus desejos quiseram fazer com que eu descesse de
minhas sandálias, essas mesmas sandálias que me deram um nome, para lamber suas
bolas envelhecidas e corromper-me pelo bem da Coisa Pública. Acontece que eu
nunca entendi que bem é esse, nunca me senti parte de público nenhum - público
sempre me remeteu a algum tipo de multidão, e eu odeio a todas elas. Solitário
desde a infância, o pequeno Augustus Germanicus brincava sozinho com as sombras
de si mesmo. Mesmo agora, pontifex maximus da Roma Aeterna,
rodeado de tantos escravos que nunca acho que vi a todos, sempre prontos para
me servir como eu bem entender em todos os sentidos, mesmo agora sinto-me só. É
como sempre me senti.
Foi na selvática Germânia onde meu nome mudou. Naquelas
florestas frias e sombrias esmagamos cem nações selvagens com o peso das
Legiões. É incrível o ímpeto guerreiro dos bárbaros: são como cães raivosos,
não se rendem nunca, e mesmo acuados pelo medo são terrivelmente perigosos. Seu
valor está em nunca se entregar, mesmo contra todas as evidências da derrota.
Um deles, que eu julgava morto no campo de batalha, me puxou a perna enquanto
eu passava; no puxão eu caí, e uma das sandálias se desprendeu de meu pé,
fazendo com que o bárbaro a mordesse quase rosnando de ódio. Mais morto que
vivo, foi fácil me desvencilhar dele.
Os companheiros de batalha riram da situação - o filho do
imperador caindo diante de um bárbaro semimorto. Aquilo me envenenou com ódio.
- Gostou de minha sandália, bárbaro?
Os risos da soldadesca rasa continuavam, mais tímidos, agora
que eu me punha de pé.
- Vamos fazer isso do jeito certo.
Retirei minha outra sandália enquanto pisava na enorme
ferida no ombro esquerdo do bárbaro. A dor o fazia gritar. As tentativas débeis
de me golpear com a mão direita acabaram quando, com um golpe de meu gládio,
cortei metade de seu braço.
- Você não precisa mais dele, não é mesmo?
Nenhum riso mais era ouvido. Apenas olhares curiosos me
acompanhavam enquanto eu segurava as duas sandálias juntas. Meu tio, o
imperador Tibério, a quem eu respeitava como um pai, de longe via a cena
montado em seu cavalo.
- Está gostando das sandálias, bárbaro?
Comecei a enfiá-las na sua boca, segurando sua cabeça entre
meus joelhos. Pressionei as sandálias com força, empurrando-as para baixo com o
peso de meu corpo. Com o gládio, um leve corte na boca abriu mais espaço para
enfiá-las ainda mais fundo. Ouvi seus maxilares darem um estalo. Nunca imaginei
que seria um som tão alto, reverberando nas florestas frias e sombrias seguidos
por gemidos. Lágrimas.
Olhos do bárbaro pedindo socorro.
Olhos dos soldados pedindo que eu parasse.
- Mais um pouco, não é mesmo?
A garganta dele já estufada, como um sapo coaxando. Acho que
convulsionava. Os soldados tentavam não olhar. Mas não conseguiam. Eu ria para
eles.
- Sandálias gostosas, não acha, bárbaro?
O gládio rasgou a garganta suavemente. O sangue como uma
cachoeira rubra. As sandálias saindo através da carne exposta. Puxei-as com violência
enquanto o corpo sem vida dava seus últimos espasmos. Vesti-as calmamente antes
de seguir o caminho rumo ao nosso acampamento. Foi assim que conquistei meu
apelido, que acabou por se transformar no meu próprio nome. Calígula. Os
soldados que antes riram: mirei os olhos de cada um enquanto me arrumava. Estavam
profundamente sérios. Quase envergonhados, eu diria. Metros a frente passei por
meu tio Tibério, que nada disse. Apenas me lançou um olhar satisfeito, como que
dizendo o que todo imperador deveria saber: para o vulgo, o imperador sempre
deve ser extraordinário.
Desse dia em diante foi como se algo em mim tivesse mudado.
Eu havia descoberto o poder da realização da nossa vontade mais íntima. Aqueles
pensamentos que nem mesmo os deuses ousavam ter quando ainda viviam nesse mundo.
Há tempos que não vemos milagres no mundo, mas apenas o crime. É o resultado de
um mundo sem deuses. Continuaram ofertando sacrifícios a eles. Tolos. Mas
mesmos sozinhos no mundo, os homens não fizeram nada de melhor. Eles são
covardes. Os deuses nunca foram covardes. Júpiter arriscava tudo em nome de seu
amor insaciável, até mesmo a amizade para com seus irmãos. Diana também: uma
deusa da caça, sozinha e tão bela nas matas infinitas, quase estuprada pelo
bruto Acteão, transformando-o em um cervo como forma de castigo. O medo de ser
estuprada parou a Diana? Jamais: ela continuou pelos campos, indômita e
selvagem, até que os deuses enfim deixaram este mundo para ir rumo a outros.
Sim, outros mundos. Que pequenez é essa de achar que para os deuses só
existiria esse?
Quando decidi me tornar um deus criei para mim um mundo onde
apenas os prazeres poderiam existir. E para isso eu me vali do extraordinário,
como meu tio Tibério, abençoado seja, me sinalizou como o caminho para o
Império Perfeito. Orgias onde escravos se adornavam com peles de hienas e
vinham rastejando e uivando até meu leito, para serem sodomizados tanto por mim
como pelas concubinas. Piscinas de vinho onde nos banhávamos até vomitar de
embriaguez, misturando o odor azedo do vinho com outros de natureza sexual. Eunucos
que divertiam as minhas garotas sicilianas, sempre as mais interessantes (o
Mediterrâneo tem algo em sua água que tempera os corpos com um sabor especial).
Egípcios de pele negra como o ébano que me faziam tremer em gozos que nem a
mais experiente princesa patrícia conseguiu fazer. Provei de todos os tipos de
corpos de todas as nações conhecidas; senti até mesmo aqueles prazeres raros
que cães, cavalos e serpentes podem conduzir um homem corajoso, levando-o ao
limite do que os normais consideravam como depravado. Pois eu não me sentia
mais um homem, mas igualmente não me sentia ainda como um deus, embora buscasse
incessantemente ser como um deles e realizar, em vida, coisas que apenas deuses
sabem fazer.
Sei que tramam a minha morte, esses senadores que não aceitam
meu reinado. Tomaram com assombro quando Incitatus entrou no Senado conduzido
pelos meus pretorianos. Por que um cavalo não poderia ser senador? Ainda mais o
cavalo de um deus, que o acompanhou não apenas em batalhas na dura Germânia mas
também em festins de libido e excesso? Incitatus tem mais vigor que muitos desses
velhos senadores caducos, bem como entende mais de política do que metade daquele
covil de víboras. Senadores que nunca pisaram fora dos arredores de Roma, que
não sabem nem o quanto pesa um gládio... Não é a guerra uma forma de política
também? Incitatus guerreou por todas aquelas velhas víboras de toga. Ele merece
mais do que isso. Cônsul, talvez?
Embora insatisfeitos com Incitatus, o que mais causou raiva nos senadores foi eu ter decretado que suas esposas seriam prostitutas. Parecia-me lógico que eles, como homens, serviam Roma discursando. Suas esposas também não deveriam fazer o mesmo? Elas também servem a Roma através do sacro ofício da prostituição. Deveriam me render glórias, esses senadores. Um deus transformando suas mulheres em instrumentos do Amor. Um deus transformando Roma em um império ainda maior, mais nobre, mais próximo do eterno. E eu quero mais. Levarei o estandarte da Águia até onde nem Caio Júlio César ousou sonhar. Ele vai ter inveja de mim, ele que hoje é apenas uma sombra do que foi. Caio morreu como um homem. Eu, recrio-me como um deus. Não é meu título, afinal, o de pontifex maximus? Estou fazendo pontes entre mundos agora. Estou abrindo um caminho rumo ao Inimaginável.
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nota: "caligae" era o nome das tradicionais botas romanas usadas pelos soldados. "Caligulae" é o diminutivo de "caligae", ou seja, "botinhas". O apelido foi dado ao jovem Calígula quando seu tio Tibério, então imperador, levou aos campos de batalha o franzino sobrinho, que usava roupas pequenas. O apelido desagradava muito a Calígula e o acompanhou por toda a vida. O episódio de Incitatus narrado no conto de fato aconteceu bem como a determinação de prostituição das esposas dos senadores.