4.18.2021

Botinhas (ou sobre quando um cavalo foi nomeado senador em Roma)



Pela janela o Monte Palatino brilhando sob o luar que em breve dará lugar ao Sol. A essa hora, quando Vésper começa a aparecer no céu, as festas na Suburra estão ainda em agitação desenfreada onde eu, muitas vezes, mergulhava para gozar de prazeres extremos sem ser notado como sou – um verdadeiro deus. Hão de me cantar em poemas no futuro, tal como a Odisseu o fizeram. O imperador divino que fazia orgia com a gente simples e com os patrícios, indiferentemente. O imperador que colocou um fim ao reinado dos deuses. Júpiter, Ceres, Febo, Latona, Vênus: todos eles já há séculos não prestam mais atenção nesse mundo. Tem coisas mais importantes para fazer. É hora de dar um basta nisso. Dar um fim a toda a imundície que impregna Roma. Que está em cada tijolo dessa cidade. Em cada cidadão respeitável que acumula crimes silenciosos. Em suas gentes vulgares que amam o circo mais que o pão. Animais todos eles. E sempre assim eles serão.

Eu vivi todos os dias da minha vida sendo eu mesmo. Senadores castrados de seus desejos quiseram fazer com que eu descesse de minhas sandálias, essas mesmas sandálias que me deram um nome, para lamber suas bolas envelhecidas e corromper-me pelo bem da Coisa Pública. Acontece que eu nunca entendi que bem é esse, nunca me senti parte de público nenhum - público sempre me remeteu a algum tipo de multidão, e eu odeio a todas elas. Solitário desde a infância, o pequeno Augustus Germanicus brincava sozinho com as sombras de si mesmo. Mesmo agora, pontifex maximus da Roma Aeterna, rodeado de tantos escravos que nunca acho que vi a todos, sempre prontos para me servir como eu bem entender em todos os sentidos, mesmo agora sinto-me só. É como sempre me senti.

Foi na selvática Germânia onde meu nome mudou. Naquelas florestas frias e sombrias esmagamos cem nações selvagens com o peso das Legiões. É incrível o ímpeto guerreiro dos bárbaros: são como cães raivosos, não se rendem nunca, e mesmo acuados pelo medo são terrivelmente perigosos. Seu valor está em nunca se entregar, mesmo contra todas as evidências da derrota. Um deles, que eu julgava morto no campo de batalha, me puxou a perna enquanto eu passava; no puxão eu caí, e uma das sandálias se desprendeu de meu pé, fazendo com que o bárbaro a mordesse quase rosnando de ódio. Mais morto que vivo, foi fácil me desvencilhar dele.

Os companheiros de batalha riram da situação - o filho do imperador caindo diante de um bárbaro semimorto. Aquilo me envenenou com ódio.

- Gostou de minha sandália, bárbaro?

Os risos da soldadesca rasa continuavam, mais tímidos, agora que eu me punha de pé.

- Vamos fazer isso do jeito certo.

Retirei minha outra sandália enquanto pisava na enorme ferida no ombro esquerdo do bárbaro. A dor o fazia gritar. As tentativas débeis de me golpear com a mão direita acabaram quando, com um golpe de meu gládio, cortei metade de seu braço.

- Você não precisa mais dele, não é mesmo?

Nenhum riso mais era ouvido. Apenas olhares curiosos me acompanhavam enquanto eu segurava as duas sandálias juntas. Meu tio, o imperador Tibério, a quem eu respeitava como um pai, de longe via a cena montado em seu cavalo.

- Está gostando das sandálias, bárbaro?

Comecei a enfiá-las na sua boca, segurando sua cabeça entre meus joelhos. Pressionei as sandálias com força, empurrando-as para baixo com o peso de meu corpo. Com o gládio, um leve corte na boca abriu mais espaço para enfiá-las ainda mais fundo. Ouvi seus maxilares darem um estalo. Nunca imaginei que seria um som tão alto, reverberando nas florestas frias e sombrias seguidos por gemidos. Lágrimas.

Olhos do bárbaro pedindo socorro.

Olhos dos soldados pedindo que eu parasse.

- Mais um pouco, não é mesmo?

A garganta dele já estufada, como um sapo coaxando. Acho que convulsionava. Os soldados tentavam não olhar. Mas não conseguiam. Eu ria para eles.

- Sandálias gostosas, não acha, bárbaro?

O gládio rasgou a garganta suavemente. O sangue como uma cachoeira rubra. As sandálias saindo através da carne exposta. Puxei-as com violência enquanto o corpo sem vida dava seus últimos espasmos. Vesti-as calmamente antes de seguir o caminho rumo ao nosso acampamento. Foi assim que conquistei meu apelido, que acabou por se transformar no meu próprio nome. Calígula. Os soldados que antes riram: mirei os olhos de cada um enquanto me arrumava. Estavam profundamente sérios. Quase envergonhados, eu diria. Metros a frente passei por meu tio Tibério, que nada disse. Apenas me lançou um olhar satisfeito, como que dizendo o que todo imperador deveria saber: para o vulgo, o imperador sempre deve ser extraordinário.

Desse dia em diante foi como se algo em mim tivesse mudado. Eu havia descoberto o poder da realização da nossa vontade mais íntima. Aqueles pensamentos que nem mesmo os deuses ousavam ter quando ainda viviam nesse mundo. Há tempos que não vemos milagres no mundo, mas apenas o crime. É o resultado de um mundo sem deuses. Continuaram ofertando sacrifícios a eles. Tolos. Mas mesmos sozinhos no mundo, os homens não fizeram nada de melhor. Eles são covardes. Os deuses nunca foram covardes. Júpiter arriscava tudo em nome de seu amor insaciável, até mesmo a amizade para com seus irmãos. Diana também: uma deusa da caça, sozinha e tão bela nas matas infinitas, quase estuprada pelo bruto Acteão, transformando-o em um cervo como forma de castigo. O medo de ser estuprada parou a Diana? Jamais: ela continuou pelos campos, indômita e selvagem, até que os deuses enfim deixaram este mundo para ir rumo a outros. Sim, outros mundos. Que pequenez é essa de achar que para os deuses só existiria esse?

Quando decidi me tornar um deus criei para mim um mundo onde apenas os prazeres poderiam existir. E para isso eu me vali do extraordinário, como meu tio Tibério, abençoado seja, me sinalizou como o caminho para o Império Perfeito. Orgias onde escravos se adornavam com peles de hienas e vinham rastejando e uivando até meu leito, para serem sodomizados tanto por mim como pelas concubinas. Piscinas de vinho onde nos banhávamos até vomitar de embriaguez, misturando o odor azedo do vinho com outros de natureza sexual. Eunucos que divertiam as minhas garotas sicilianas, sempre as mais interessantes (o Mediterrâneo tem algo em sua água que tempera os corpos com um sabor especial). Egípcios de pele negra como o ébano que me faziam tremer em gozos que nem a mais experiente princesa patrícia conseguiu fazer. Provei de todos os tipos de corpos de todas as nações conhecidas; senti até mesmo aqueles prazeres raros que cães, cavalos e serpentes podem conduzir um homem corajoso, levando-o ao limite do que os normais consideravam como depravado. Pois eu não me sentia mais um homem, mas igualmente não me sentia ainda como um deus, embora buscasse incessantemente ser como um deles e realizar, em vida, coisas que apenas deuses sabem fazer.

Sei que tramam a minha morte, esses senadores que não aceitam meu reinado. Tomaram com assombro quando Incitatus entrou no Senado conduzido pelos meus pretorianos. Por que um cavalo não poderia ser senador? Ainda mais o cavalo de um deus, que o acompanhou não apenas em batalhas na dura Germânia mas também em festins de libido e excesso? Incitatus tem mais vigor que muitos desses velhos senadores caducos, bem como entende mais de política do que metade daquele covil de víboras. Senadores que nunca pisaram fora dos arredores de Roma, que não sabem nem o quanto pesa um gládio... Não é a guerra uma forma de política também? Incitatus guerreou por todas aquelas velhas víboras de toga. Ele merece mais do que isso. Cônsul, talvez?

Embora insatisfeitos com Incitatus, o que mais causou raiva nos senadores foi eu ter decretado que suas esposas seriam prostitutas. Parecia-me lógico que eles, como homens, serviam Roma discursando. Suas esposas também não deveriam fazer o mesmo? Elas também servem a Roma através do sacro ofício da prostituição. Deveriam me render glórias, esses senadores. Um deus transformando suas mulheres em instrumentos do Amor. Um deus transformando Roma em um império ainda maior, mais nobre, mais próximo do eterno. E eu quero mais. Levarei o estandarte da Águia até onde nem Caio Júlio César ousou sonhar. Ele vai ter inveja de mim, ele que hoje é apenas uma sombra do que foi. Caio morreu como um homem. Eu, recrio-me como um deus. Não é meu título, afinal, o de pontifex maximus? Estou fazendo pontes entre mundos agora. Estou abrindo um caminho rumo ao Inimaginável. 

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nota: "caligae" era o nome das tradicionais botas romanas usadas pelos soldados. "Caligulae" é o diminutivo de "caligae", ou seja, "botinhas". O apelido foi dado ao jovem Calígula quando seu tio Tibério, então imperador, levou aos campos de batalha o franzino sobrinho, que usava roupas pequenas. O apelido desagradava muito a Calígula e o acompanhou por toda a vida. O episódio de Incitatus narrado no conto de fato aconteceu bem como a determinação de prostituição das esposas dos senadores. 

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