7.13.2020

Setenta mil mortos


Girar a chave. Abrir a porta. Ver a rua. Sentir o vento frio de julho batendo na face. Ou do que resta dela. Agora que todas são encobertas por máscaras. Não as conceituais, essas que vestíamos todos para não mostrar ao outro o horror íntimo que carregamos. O bom funcionário - mas que morria por dentro um pouco todo dia fazendo um trabalho que odiava. A boa namorada - mas que só continuava naquela relação porque sua autoestima destruída a fazia se sentir nojenta e indigna da felicidade. A boa mãe - mas que no fundo queria é mais que seus filhos nunca tivessem existido, grávida tão cedo de um homem que não ama mais e nem certeza tem se um dia amou. O bom pai - mas que bebia todo dia com vergonha de assumir para a família que gostava mesmo era de homem. Tantas máscaras a vida toda que chega uma hora que nem sabemos o que é rosto, o que é máscara. Mascosto. Rosáscara. Deve haver alguma palavra que, intermédia, seja uma e outra. É bem possível que alguém já a tenha inventado em alguma língua. Há tantas palavras no mundo, e é razoável pensar que morreremos sem dizer todas.

Pandemia é uma palavra que aparecia pouquíssimo nas falas cotidianas. Especialmente dos vermes urbanos, tão metidos a sabichões. Aquele tipo de imbecil que mede seus conhecimentos pela quantidade de notícias que lê. Que vê a si mesmo como "uma pessoa bem informada". Como se uma andança pelas ruas, respirando a crueza da vida, não fosse informação. De uma outra natureza, mas informação também. O foda é que somos levados a crer que apenas lendo nos tornamos "pessoas bem informadas". Aí tem aquele tipo de verme que só lê sobre a miséria, sobre o o crime, sobre a desgraça de viver no Brasil em meio a uma pandemia. Mas ele não anda nas ruas, não vê as letrinhas se transformarem em fatos de carne e osso à sua frente, na figura de... pessoas. Sabe, pessoas? Aquela entidade amorfa que surge como números em um gráfico? 70 mil mortes por Covid-19. Cada um dos pontinhos no gráfico, uma pessoa. 

Mas eu estava saindo na rua quando comecei a escrever isso aqui. Não importa a quantidade de mortes. A curva que aponta para o céu e mostra a pandemia brasileira como uma tendência ao Infinito. Foda-se: a vida continua, você é um homem ou um fraco? Uma voz mental, uma espécie de versão mais turrona de mim, grita comigo. Tem que sair na rua, fazer o que precisa ser feito. Viver, enfim. Mesmo que agora todos estejamos mascarados e isso nem é mais uma figura de linguagem. Já tem quem esteja faturando com máscaras estilosas. De super-heróis, claro, são as mais procuradas. Tem também as cômicas, que vendem bem. Rir da desgraça e se acomodar a ela. Fazer da desgraça um negócio. O Brasil que deu certo. A ironia que esvazia a tudo, que nivela no mais raso dos patamares para esfregar na cara de todos que ninguém e nada tem importância. 

Ando em direção ao centro da cidade. Passo por vários comércios. Operando normalmente. A diferença são as máscaras. Todos usando. Ou pelo usando dentro das lojas: basta sair delas que pluft! o que estava no rosto vai para o queixo. Ou a testa. A mão que tocou produtos tocados por mãos outras e cada toque potencialmente um foco de infecção em escala logarítmica de repente toca a máscara que antes cobria o rosto e que provavelmente voltará ao rosto algumas lojas pra frente - a chance de dar certo é tão pequena que eu estou quase acreditando nos argumentos dos negacionistas, de que a máscara não serve pra porra nenhuma e tudo não passa de um plano chinês para dominar o mundo.

Plano chinês para dominar o mundo. Como eu amo esse tipo de maluco. Suas violências, sejam verbais ou físicas, têm sua origem nefasta num caldo cultural que reúne preconceito, autoestima deteriorada, fracasso amoroso e baixíssima inteligência. Quando nisso tudo você coloca uma dose de religião evangélica, a maluquice aumenta bastante de nível, e aí chega naquele estágio de acreditar em terra plana. Todos são irreversíveis, mas esse último é de longe o mais irremediável.

Está na hora de aceitar que nós perdemos para os malucos. Eles estão ditando as regras do jogo. Quem se opõe a eles com textos elaboradíssimos no máximo vai conquistar alguns crushes. Não vai esclarecer nada, nem ninguém. Os malucos entraram no parafuso de piração de si mesmos e estão espalhando sua loucura cada vez mais loucamente. Há inclusive uma pretensão iluminista gigantesca naqueles que acham que, se falarem com cuidado, de modo bastante argumentativo e leeeeeennnnntaaaaaameeente, conseguirão trazer o maluco para a luminosidade do conhecimento e da libertação. Se anos de escola não conseguiram mostrar a esses malucos que a Terra é redonda, não será um texto que pode ser lido em cinco minutos que mudará isso. 

Os bares são um capítulo a parte. Nem no período mais restritivo da nossa quarentena de mentirinha eles pararam de funcionar. Quarentena carnavalizada, com sabor de trópico e jeitinho especial. Afinal foda-se, você é um homem ou um fraco? Vai deixar que o Estado determine se você pode beber ou não? De repente todos se descobriram como exemplares anarco-individualistas, stirnereanos de carteirinha sempre prontos para defender com ardor sua autonomia - claro que aqui entendida como a licença para se entupir de álcool, a droga legalizada que todos aceitam e utilizam como uma carta de alforria para a humilhação do capital. Gostam tanto da sexta-feira que ela virou até um verbo. Uma operação linguística interessante: a sexta-feira, antes o nome de um dia símbolo da libertação do trabalhador, agora é uma ação. Sextava-se já no café da manhã do último dia da semana, onde podia-se dar ao luxo de algo mais gorduroso porque afinal é sexta; sextava-se no almoço do mesmo dia, indo a um restaurante novo com os colegas do escritório pois ninguém mereceu essa semana puxada com 400 reuniões; sextava-se inclusive antes mesmo de tudo isso, escolhendo uma roupa mais descolada para ir trabalhar e portanto adequada para a sexta propriamente dita pós-expediente num bar hipster do Largo da Batata pois afinal sexta à noite pertence aos Excessos.

Estou falando de um tempo que já foi. O verbo sextou tomou ares mais contidos, menos explosivos? Pelo menos isso eu achava até ver como está o centro: festas em apartamentos, em casas, meio às escondidas, com sabor de proibido. Aglomerações porque né, ninguém é de ferro. Você é um homem ou um fraco, caceta? Vamos todos brindar a vida nesses tempos de morte. Pandemia. Palavra nova. Agora tão vulgar. Palavra já tão usada. Palavra que não é mais nada. 

Mendigos amontoados debaixo do Minhocão. Não há máscaras. Mas há crack. Pedrada após pedrada a realidade do concreto frio vai embora. Pelo menos até a fome voltar com sua violência silenciosa. Aí a caridade vai fazer seu papel e ajudar manter esses caras vivos. Eles são necessários, mas não como humanos. São necessários nos planos de morte de manter sempre a postos algum cão de farda armado pelas redondezas. Ou um batalhão deles. Quadras para cima, em Higienópolis, pensa-se que o melhor seria passar a metralhadora em geral. O que o Covid não ceifar, que a paz armada faça. Não aprenderam nada com os antepassados mortos nas câmaras de gás? Se tivessem, teriam horror do nome de um bairro que nasceu como forma de manter os ricos livres da sujeira do centro. O cinturão da Santa Cecília e da Vila Buarque mantendo uma espécie de barreira para que as hordas de imundos não cheguem até a linda praça Vilaboim e adjacências. Muita gente diferenciada nessa desgraça de cidade. Nem uma pandemia para acabar com isso tudo. Eu aposto um rim que tem alguém em algum lar em Higienópolis que pensa assim. Não apenas lá. Deve ter alguém  onde você mora. Algum parente. Você mesmo. Bem escondidinho debaixo de sua máscara de cidadão. Vamos acabar com todas as farsas de uma vez. Setenta mil mortos, parceiro. Não temos mais tempo para ficar segurando falsidade que isso dá câncer. Abre seu coração, mesmo que seja para vomitar algo sujo e fedorento. Prefiro monstros na rua do que no armário, ardilosos, acumulando seus ódios covardes.

Encontro um amigo na andança pelo centro em tempos pandêmicos. Não sabemos como nos cumprimentar. Nós que antes sempre nos abraçávamos, agora dando cotoveladas desajeitadas. O carinho substituído por algo que nem é um cumprimento. A gente ri, mas é mais de nervoso. De tristeza. De ódio impotente contra algo que mata mas é invisível. E que se centuplica com o egoísmo. Afinal eu preciso sair. Eu preciso me exercitar na rua. Eu preciso ir ao shopping. Eu. Eu mesmo. Euzinho. 

Meu amigo me pergunta como eu estou. Na hora que vou abrir boca não sai nada. Quantos meses em casa que nem sei mais como falar. Digo, falar de modo humano, não em conference calls com clientes. Aquilo não é conversa, é trabalho. E um risco no chão deve separar um do outro, e de modo ainda mais forte em tempos onde o office é a home, para que este último não se transforme no primeiro de modo perpétuo. Já imaginou como seria horroroso ter que comer, cagar, dormir, trepar, chorar, ficar bêbado, rir, lavar roupa, surtar etc dentro do seu local de trabalho? Pois é, ultimamente tem sido assim. As belezas da fala fácil sobre assuntos gerais; a poesia dos encontros amorosos inusitados; o debate entre copos de cerveja sobre livros que estamos lendo curtindo um solzinho de fim de tarde em algum bar da Praça da Árvore; a saudade matada com um abraço apertado naquele café semi-escondido da Casa da Rosas - perdemos tudo isso. Ao encontrar alguém nessas situações, tudo fluía como se deve - com a leveza de que poderíamos falar sem a pressa de um relógio, sem a máscara de um sobrenome de empresa. E agora nem consigo falar mais quando encontro um amigo que amo na rua. Parecia que eu estava tendo um treco. Penso no pior: derrame. Convulsão. Alguma doença rara que impossibilita a pessoa de falar com amigos. Mas que a deixa toda prosa quando o assunto é trabalho. Não é doença. Mas efeito do isolamento. Março a julho. Quatro meses. O tempo voa. E mata. Ainda que aos poucos. Minha voz, defunta de sua naturalidade, não sai diante de um amigo.

- Tá tudo bem, mano?

Nada sai. Me esforço. Deve ser assim que crianças aprendem a falar. Forçando as cordas vocais. 

- Errrrr... aaaaa...

Que papelão. Não é derrame porra nenhuma. É desarticulação frente a situações inusitadas: as conversas, se não tiverem horário marcado para ocorrer como todas as demais nos últimos quatro meses, tornam-se impossíveis. Artigos de chatíssimos futurólogos dizem que a pandemia deixará como legado alterações profundas em nossos comportamentos: viagens mais curtas, mais tempo preparando a própria comida, exercícios físicos praticados em casa, etc. Uma dessas alterações seria a perda da capacidade de falar de modo espontâneo? Sinceramente espero que não. Penso como seria flertar se isso se tornasse crônico. A incapacidade de dizer algo além do oi-tudo-bem sem parecer um palerma. Já é bem palerma iniciar um flerte com um oi-tudo-bem, mas ruminar um errr ou aaaaa tornaria tudo ainda pior. Talvez seja importante insistir, tentar falar algo a mais, forçar as cordas vocais como fazem as crianças pequeninas - mas eu desisto antes de começar, gesticulo que tá tudo bem mandando um jóinha seguido de um Hang Loose e dou meu cotovelo pra bater, esse péssimo gesto que se tornou o cumprimento dos tempos pandêmicos, e sigo adiante a caminhada deixando o meu melhor amigo meio estupefato no meio da rua, sem entender por que diabos eu nada falei com ele e só gesticulava alegremente. Uma tentativa porca de esconder o meu desespero de não conseguir falar.

A tristeza de não conseguir mais nada dizer.

De abrir a boca e nada sair.

Juro que tentei, leitor. Foi uma tentativa sincera. Uma intenção genuína de me comunicar falando. Mas não. Não consegui. Quatro meses fechado em um apartamento. Trabalhando até nos finais de semana. A fala sendo mediada pelo capital. Isso tem consequências. Daí lembro daquela frase. Não importa o que fizeram de nós. O que importa é o que fazemos com o que fizeram de nós. Se ele pensasse que seria usado para fins de autoajuda... acho que teria se suicidado. Simone ficaria triste, mas ela era uma mulher fodona, iria chorar por uma semana e seguir com a vida e ser maravilhosa do mesmo jeito. Seja como for, faz sentido a frase. Ainda mais em tempos onde a pandemia esgota a vida alegre que tínhamos, aquela onde o sabor da espontaneidade ainda permeava a tudo e por isso não a valorizávamos. Só damos valor ao que se perde: isso define a essência humana. Agora tudo é (ainda mais) mediado pela tirania do relógio, pelo ato mecânico de sair de casa de máscara, de lavar as mãos com álcool em gel a cada coisa que se toca.

´Penso em quantos rituais amorosos se tornaram impossíveis. Ir a um bar hipster tomar vinho e ficar ambos enamorados já semi-ébrios em um primeiro encontro, descendo as escadas meio que se apoiando um no outro só pra ter aquele pretexto de contato físico, tipo uma dança do acasalamento de humanos; de ir tomar um sorvete e trocarem colherzinhas um na boca do outro; de sentarem pertinho em um banquinho pra ver o movimento na rua tão grudadinhos nas noites frias de julho; de irem ao cinema e mãos juntinhas comendo o mesmo saco de pipoca; de chuparem-se sem receios de contrair a morte na pele que sugam. A Aids é um nada perto de um vírus que se pega até com um aperto de mão.

Para de exagero, afinal você é um homem ou um fraco? O que importa é o que você faz com o que fizeram de você. O meu lado turrão grita e eu acelero o passo. Já é noite nessa perambulação pelo centro que se iniciou no finalzinho da tarde. As ruas ficaram mais desertas durante a pandemia, mais do que o normal. A vida efervescente da boêmia paulistana onde nóias, puta, bichas, rolezeiros, punks, hipsters, playboys e perdidos em geral se misturavam em poucas quadras conflituosamente harmônicas: se nem tudo isso sumiu completamente, se tem alguns que ainda se aventuram com a irresponsabilidade da juventude, certamente aquela paixão vibrantemente viciosa que animava a noite dessas ruas do centro está ausente. Para não dizer morta. Há um silêncio fúnebre permeando cada pedacinho das antes boêmias ruas do centro. Todas as chances de sobreviver se esgotam cada vez mais neste país onde a palavra sofrer é usada demais. O verso da música se repete na minha cabeça como uma profecia vinda do passado. Agora que todos esperamos a pandemia passar, essa agonia prolongada já há quatro meses e sem perspectiva de final se repete, e se repete, e se repete -  um Ouroboros de expectativas sempre frustradas que nem o mais raivoso e niilista hino punk dos anos 80 conseguiu captar. 

Girar a chave. Abrir a porta. Desperdir-se da rua. Entrar no prédio controlando os movimentos. Não encostar em nada. Não tocar em nada. Besuntar-se de álcool em gel. Ficar nu já na entrada do apartamento. Colocar as roupas de molho na cândida. Agora borrifar álcool 70 nas mãos. Tomar um banho. Torcer para que o invisível Covid-19 não tenha ficado grudado em algum lugar. Ter entrado por algum poro. Setenta mil mortes em quatro meses. E contando.


2 comentários:

  1. É isso mesmo. Perdemos para os malucos.

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  2. Quatro meses e setenta mil mortos. E a gente achando que era muito. Que não daria para ficar pior.

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