6.15.2010

Carta número 1

A pior companhia que posso ter sou eu mesmo. Chafurdo na mediocridade como um porco na lama; feliz, lambuzado de todas as podridões que hipocritamente execro, torno-me lentamente um distorcido reflexo da autoimagem enganosa que tenho de mim. Projeto sonhos futuros feitos de uma matéria completamente ridícula. Construo uma casa, uma família e uma esposa ideais: nessa ilusão gosto de me demorar entre os compromissos cotidianos (imaginar a própria vida é o primeiro sintoma de que se odeia a própria vida). Então me vejo em uma ampla morada, uma arejada casa burguesa, com seu mobiliário estúpido, seus quadros estúpidos, seu cachorro de estimação estúpido; ainda não tenho filhos nessa vida imaginada e minha esposa é perfeita com um grande rabo, pernas torneadas e fome de puta. Ao mesmo tempo é completamente apaixonada e nada tem na vida a não ser a mim, o centro de seu sistema solar, o astro ao redor do qual ela orbita com a consciência de uma imbecil. Tenho dinheiro suficiente para viagens internacionais duas vezes ao ano, jantares nos restaurantes da Serra e caprichos outros dos quais as pessoas em geral se valem para gastar sem pensar muito. Tudo que foi relatado é um resumo aporcalhado dos pensamentos que eu desenvolvo até os detalhes: é assim que gasto as minhas horas, construindo mentiras.



Tenho hoje quarenta e quatro anos. Isso parece um bocado de tempo. Apesar da velhice denunciada por minha aparência, sinto-me uma criança. Obviamente não digo isso com o intuito de afirmar um sentimento de jovialidade, alimentado por comerciais de algum idiota premiado em Cannes ou livros de autoajuda para fracassados sorridentes. Não: o que retenho da infância é a dolorosa inconsciência de nada saber sobre aspectos elementares da vida. É como se a experiência acumulada entre tantos ir-dormir-e-acordar nada significasse. Acumulei decepções, ódios e algumas alegrias que carrego como lembranças, ou seja, mortas. Graças a essas alegrias, posso dizer que a ação de lembrar-se de algo bom, ou melhor dizendo, que a insistência de lembrar das coisas boas que nos aconteceram pode ser colocada na categoria das perversões, como um tipo peculiar de necrofilia. E embora o senso politicamente correto diga que perversão é uma questão de ponto de vista, a história nos diz que sempre é melhor não tê-las. Certamente eu teria noites mais amenas e gastaria menos com remédios se me fosse dada a divina bênção de nada lembrar, de absolutamente tudo esquecer.

Lembrar é, de alguma forma, trazer para o presente coisas que já não são. Há alguns que sustentam que as lembranças dos homens são compostas de uma imensa dose de fantasia, criando situações que jamais ocorreram. É impossível discordar disso, pelo menos para mim, pois tenho exemplos que comprovam isso, de mentiras que inventei há anos atrás e que hoje recordo como se de fato tivessem acontecido. Fiz isso inúmeras vezes e tenho certeza de que continuarei fazendo. Muitas pessoas devem fazer isso; inclusive, descobri recentemente uma mentira que me contaram, e é claro que envolveu traição, e é claro que na época eu acreditei como a mais sapientíssima verdade, e é claro que luzes vermelhas e anseios homicidas perturbaram a minha mente, afetada pela honra vilipendiada após a descoberta da farsa. Nunca dei maior valor para seja lá quem for, homem ou mulher, na disputa das mentiras: todos mentem, disse o House em um dos episódios, e se ele disse eu acredito.

O mais estranho e fato inexplicável: por que fazer essas confissões hoje. Se eu não escrevesse essas porcarias que aqui vão seria bem possível que... não sei. Certas coisas simplesmente acontecem porque sim. Abracemos o mistério.

A escrita é talvez a única forma de extrair daqui (bato com a mão direita no peito, a esquerda segura o lápis no papel) todo esse cataclisma que me impede de ter dias tranqüilos. Agitação. Taquicardia. Vontade de gritar até cair sem forças no chão, com cordas vocais cheias de nódulos cancerígenos. Mas sei: tal desejo não cai bem em um homem de minha idade, soaria como um chilique, coisa que execro e, de mais a mais, não gosto de ser incomodado e igualmente não gosto de incomodar ninguém. Além do mais, gritar me aproximaria dos bichos, que nada sabem da escrita; contudo sou cioso de minha humanidade, de minha herança ocidental, e então me entrego ao ato de escrever. Assim consigo me comunicar melhor do que pelos sons da fala: isso seria uma espécie de covardia? Afinal vejo aqui apenas o papel em branco, sujando-se aos poucos com minhas misérias (mal) escritas. Somente a ele devo encarar. É fácil encarar algo assim, que não possui olhos. Antes eu não tinha dificuldade alguma de olhar uma pessoa nos olhos enquanto conversávamos, mas desde já há alguns anos tem se tornado mais e mais difícil fazer isso. Procurei saber se isso era algum tipo de doença, mesmo parecendo absolutamente improvável; meu oftalmologista fez uma cara de enorme interrogação quando lhe perguntei se isso era uma enfermidade. Deve ter esquecido a pergunta um segundo depois, como em geral os médicos, esses folgados pretensiosos, fazem com as queixas dos doentes. Percebeu já como os médicos falam com seus pacientes com rapidez, querendo despachá-los tão logo entram na sala? Devem ficar felicíssimos quando sozinhos em suas salas brancas, distantes daqueles reclamões dos doentes. Devem no fundo é ter nojo deles (de nós), contando os minutos para ir embora e se livrar do vozerio de dores. Pois então, eu admito, sou como um médico. Não tenho doença alguma: não gosto de olhar nos olhos dos outros por nojo, e isso é tudo.

Foi por esse nojo que lenta e sistematicamente afastei-me de conhecidos, amigos e parentes. Se parte de meus problemas provem disso, não saberia dizer. Pessoas com espírito gregário afirmariam que está aí a causa de meus sofrimentos; como sou motivado por preconceitos (existem bons e maus preconceitos, segundo Camus, e todos os meus são bons) considero pessoas desse tipo os exemplares mais ridículos da raça humana. Dizer isso é o bastante. Afastei-me porque eu não me considero uma boa pessoa. Após machucar tanta gente prefiro a reclusão. Desperdiço-me. Dessa forma torno-me o único prejudicado por meus atos, e assim me parece mais correto. Dito isso, posso confessar que, andando pelas ruas, incontáveis vezes entrei em alguma loja para evitar encontrar conhecidos que vinham na direção contrária, ou diminui o passo para não encontrar um amigo que estava mais na frente. Não, não apliquei tais expedientes apenas com conhecidos: fiz isso com amigos que freqüentavam a minha casa, e com parentes também. Isso certamente está longe de ser algo único: todo mundo faz isso, o tempo todo. Clamar originalidade por isso seria um erro.

Olho para os espaços em branco do papel. Releio tudo o que eu escrevi. Vejo apenas vaidade. Vômito. Um desejo de me contar. De me ver como letra. Uma versão intelectualizada de mim. Eu que sou um estômago com um pinto. Que pouco tenho a oferecer como ser pensante, já que escrevo sensações brutas, não pensamentos. Além disso, o que espero com meus escritos? O que é exatamente isso que, linhas atrás, denominei "cataclisma"? Pergunta errada: na verdade, trata-se de algo que não é. Um vazio. O que me consome é uma enorme lacuna. Uma gigantesca lacuna de quarenta e quatro anos. Infantilmente vividos. Um buraco. Um poço seco, antigo e profundo.

Insisto em continuar escrevendo. Olhos doloridos pelo cansaço. Mãos muito frias. Corpo mutilado. Todas as luzes do prédio vizinho, antes acesas, estão apagadas. Os homens dormem sua justa cota de sono, mas essa noite dormir para mim seria como uma rendição. Como uma derrota. Pergunto-me mais uma vez: o que é, com precisão de detalhes, esse cataclisma interno? (esqueço da definição dada anteriormente, do poço seco, antigo e profundo) Pode ser expresso em palavras? Tudo o que aqui escrevo é uma tentativa de fazê-lo: o que não pode ser delimitado pelas palavras torna-se insuportável. Ou diz-se o indizível, ou sucumbe-se perante ele. A via que tomo, contudo, não é nenhuma dessas. Permaneço, como sempre em minha vida, na ignorância da posição intermédia, sofrendo as conseqüências de ambas. Guardarei vigília por toda essa noite. Saudando o sol com olheiras de angústia, em seguida dormirei um sono pesado, indestrutível. Tenho certeza que lerei novamente tudo o que escrevi aqui, na esperança de que algum conhecimento surja, uma gnose de si pelo artifício da escrita. Nada descobrirei: permanecerei enigmático para mim e um erro para o resto do mundo (a vaidade desse período é nojenta, mas a deixarei aqui, já que essa é a proposta desse rascunho). Quando muito, conseguirei ver alguma coisa mais profunda, após desligar a mente por algumas horas. Contudo -e saber disso é realmente desesperador- nunca será o suficiente. Estranho de mim mesmo, continuarei vivendo e tendo como companhia apenas a minha presença. Sei que casas burguesas me esperarão em meus delírios, assim como esposas peitudas, viagens para Berlim e divertimentos tão execráveis como minha alma podre. Enquanto isso a vida passa como um sonho, tornando mais brancos os meus cabelos, mais doente minha carne e mais azedo esse sabor horrível que me entra pelos olhos todas as vezes quando encaro a realidade.

4 comentários:

  1. Anônimo2:45 PM

    Leandro, acompanho seu website há algum tempo. Sempre me impressiono, me entusiasmo e me incomodo com suas postagens. Parabéns pelo projeto UGRA. Tomei a liberdade em linkar seu website ao meu.

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  2. Obrigado, D.
    Farei o mesmo com o seu blog. Vou acompanhá-lo também.

    Vi que você também é amigo do H., o que é uma ótima referência.

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  3. Primeiramente, é um prazer encontrar, em meio à fogueira de vaidades da "blogosfera" (sempre detestei esse termo), uma página que se preocupe mais com a essência do ato de escrever do que com as regras de concisão e firulas que costumam reger os sites pessoais a rede.

    Sobre o texto: a sua técnica é impressionante. Manter um fluxo de pensamento confessional e, ao mesmo tempo, de narrador distanciado, se inserir numa narração costante e ao mesmo tempo na previsão de futuro, sem gerar quebras de continuidade, é admirável e bem mais difícil do que parece no texto pronto.

    Posso estar errado, mas me surgiram duas influências claras: "Notas do Subterrâneo", do Dostoiévsky, e muito Henry Miller.

    Há muito o que dizer sobre a constatação enojada da podridão humana, como um antropólogo da escuridão, e a aceitação da própria condição, mas não achoq ue seja necessário falar disso aqui. Basta dizer que é um prazer pressionar feridas abertas.

    Assim que possivel lerei o restante dos seus textos.

    Abraços.

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  4. Zuni,
    Grato pelos comentários. É um prazer ouvir análises daquilo que escrevemos, o olhar do outro percebe coisas que nos escapam, justamente por não se misturar ao nosso demônio pessoal (aka vaidade).

    Pressionar feridas: os autores que mais gosto fazem isso. E sim, Dostoiévski é uma influência terrível para mim, não apenas quando escrevo, mas arrisco a dizer que foi crucial em minha formação geral.

    Vi que você escreve em diversos blogs. Vou lê-los com a devida atenção assim que a escravidão assalariada permitir. Abraço.

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