Ao som de"Your Love Can't Hold This Wreath Of Sorrow", álbum de 2021 Of The Wand and Moon (seguramente um dos melhores discos do Segundo Ano da Peste)
Há um provérbio chinês assim: "Que você viva em tempos interessantes". Sempre achei curioso esse provérbio. Ele é enigmático de um modo bastante estranho. O que significaria um tempo interessante, afinal? Esse provérbio é algo que desejamos favoravelmente, ou tem um certo tom de maldição? A magia do texto é essa: damos ao que lemos a entonação que quisermos. Ou que pudermos. Cada um faz a interpretação que é capaz de fazer.
Os tempos que vivemos são interessantes no sentido de serem extremos. Eles exigem de nós um esforço heróico. Eles maltratam. Chacoalham nossas certezas e atiçam os medos. Como se todo dia fosse uma nova provação. Um outro ordálio. O iniciar sempre renovado do rolar a pedra rumo ao pico de um nova montanha, que parece ser sempre maior do que a anterior.
A miséria inclemente desses nossos tempos interessantes faz com que qualquer andança, em qualquer centro urbano brasileiro, literalmente tropecemos em corpos famintos pelas calçadas. Sempre houve uma miséria absurda nesse país, fruto de abismos sociais que remontam às capitanias hereditárias. Mas pelo menos até onde minha memória de quatro décadas remonta, nunca chegamos a tanta visibilidade da miséria como agora. Ela se escancara como nunca. Voltando a ser um morador do ABC desde ano passado, comecei a passar novamente por lugares que sempre percorria, e em diversos deles amontoados de pobreza e degradação. Como uma espécie de mofo que se espalha lentamente, a miséria despontando no horizonte meio provinciano do ABC: um mendigo que começa a dormir abaixo de uma marquise, logo depois outro, e mais um, até que então o que era a fachada de um prédio se transforma numa espécie de casa para despossuídos sem futuro seguirem com suas existências invisíveis. Comerciantes detestam mendigos. Atrapalham os negócios. As mãos dos botas pretas se enchem de coxinhas ou outros agrados mais caros para "serviços especiais" serem feitos. Tudo em nome da lei e da ordem. Ainda melhor se banhadas em sangue. Ou talvez apenas um apavoro a base de bordoadas na calada da madrugada e pronto: o clima favorável novamente para os negócios se faz presente. Isso não elimina a miséria, apenas a tira de um lugar para que ela brote em outro. E junto com ela aquele conjunto básico de cobertores fedidos, papelões, certa algazarra e bebedeiras ocasionais. Muitos palermas criticam os mendigos beberrões. Deveriam comprar comida, diz o Enzo do Recursos Humanos que trabalha na Faria Lima. Na cabeça desse tipo de imbecil viver na rua é uma opção. Na verdade, acho que os mendigos bebem é pouco. Eu no lugar deles faria de tudo para esquecer a vida, louco de tudo que pudesse beber ou cheirar.
Com certeza que os tempos que chamo de interessantes para os mendigos não são nem de longe isso. Alguns devem se lembrar, caso ainda tenham sanidade, de tempos antigos onde tudo era interessante. Conheci mendigos que eram assalariados como eu. Alguns tiveram empresas. Hoje deixam-se consumir a cada tragada num cachimbo de crack. Eu tomaria um soco bem dado na fuça se falasse para esses caras que eles vivem em tempos interessantes.
Que estão sendo testados.
Que devem resistir etc.
Há aqueles que gostam de ajudar os mendigos. Quando eles chegam pedindo algo, ouvem suas histórias mirabolantes, alguns são péssimos mentirosos e sabemos que tudo que estão falando é para, ao final, pedir dinheiro. O Enzo da Faria Lima é um desses que ouve tais histórias com um mix de medo e nojo. Se o mendigo é insolente ele se caga todo. Eu gosto muito mais dos mendigos sujeira mesmo, aqueles que são debochados, que chegam apavorando, do que os mendigos calados e humildes. Dá mais gosto você falar com quem lida com o inimigo com sangue no olho. O mendigo insolente está em guerra contra o nosso mundo interessante, caro leitor, e ele vê eu e você como um alvo a ser extorquido, como alguém que lhe deve pois, afinal, que desgraça é essa de vocês terem tudo e eu aqui não ter nada.
Estava falando dos Enzos que gostam de ajudar os mendigos. Não é exatamente gostar, mas eles sempre ouvem as histórias de pesar que lhes são ditas pelos miseráveis, e deixam ao final uma ajudinha. Fazem isso mais por peso na consciência do que qualquer outra coisa. No fundo sentem culpa. Dar um dinheiro é uma forma de comprar um conforto. A satisfação de poder falar que ajudou. Que fez sua parte.
Vômito.
Eu só penso em vomitar.
Os tempos interessantes atuais também agora nos presenteiam com a ameaça da extinção atômica. Quem foi criança nos anos 80 deve ter tido aquele tipo particular de medo que é o medo de um holocausto nuclear. Pelo menos em algum momento teve. Me recordo do Fantástico mostrando os avanços do programa Guerra nas Estrelas, que era basicamente os Estados Unidos fazendo propaganda de como poderiam abater mísseis soviéticos em pleno ar. Devia ser tudo mentira para tranquilizar o eleitorado republicano e democrata, ambos com o cu na mão de virar poeira radioativa. Existiam muitos filmes que falavam sobre o assunto guerra atômica. Em um deles tocava uma sirene antimísseis minutos antes do ataque começar. Me recordo de um dia estar brincando e ouvir uma sirene tocar. Era bem no meio da tarde. Fazia um mês que eu tinha assistido a esse filme. Eu fiquei apavorado. Mas nada aconteceu. Nenhum ataque de mísseis. Até parece que o Brasil ia ter sirenes de alerta antimísseis. Logo o Brasil. A infância é a época onde você é a pessoa mais esperançosa que você jamais será de novo. A esperança infantil chega a ser tola. Nós adultos vemos as crianças sendo esperançosas e temos a missão moral de não esfregar na cara deles a realidade. Temos que alimentar sonhos pois dos sonhos é feita a matéria da vida. É eles que nos moldaram quando éramos apenas inconscientes dos tempos interessantes que nos rodeavam. Quando tomamos consciência do que nos cerca de fato, a inocência já se foi. O tempo interessante que nos resta é o que é escancarado no noticiário, na vida cinza que sempre tenta deixar tudo como está. Você seria um cuzão digno de tomar uma porrada na cara se fosse o tempo todo franco com uma criança. A mentira é uma proteção para elas. A fantasia também. Elas ajudam a construir bases para que elas possam ser sozinhas o que devem ser. Mas sempre fica aquele pensamento de se não é dever nosso também prepará-los para os tempos interessantes que elas viverão. Os tempos pós-fim-da-inocência. Tempos onde terão que arrastar suas próprias pedras para os picos de suas próprias montanhas. Não deveríamos prepará-las afinal para serem um pouquinhos mais cascas-grossas num mundo que, veja bem, está agora em 2022 com risco de uma hecatombe nuclear?
Fé. Sempre a fé no amanhã. Por mais que não se queira, algo em nós sempre está ali nos puxando para o dia seguinte. Mesmo que Putin aperte o botão e nuvens de destruição radioativa comecem a vir da Europa para cá, não há como pensar que simplesmente todo mundo sentará esperando morrer. Haverá o caos. Mas também haverá a nossa sempre necessária dose de comodismo. Somos uma espécie cômoda. Quem tem fogo dentro de si acaba por ter sempre incêndios a provocar. Está sempre em busca de, frente a tempos chatos, torná-los interessantes mesmo que às custas da destruição de tudo ao seu redor.
Da destruição dos que estão ao seu redor.
Da destruição de si mesmo.
Essa que será sempre a mais bela de todas as formas de destruição.
A mais egoísta e a única que pode, após tanto sangue derramado, transformar o que nos restou em algo novo.
Nossos tempos interessantes puxaram muitos para a destruição de si mesmo. Eu mesmo esfacelei-me não sei quantas vezes, debati comigo mesmo um gazilhão de outras tantas. Morte após morte após morte, até descobrirmos aquilo que realmente somos. Qual a nossa real missão nesses tempos interessantes nos quais nascemos. O Destino que colocaram diante de nós e que nos obrigaram a viver - mas que podemos sabotar, de várias maneiras, e não me parece existir nenhuma passaporte para a dignidade real que não passe por ser um sabotador radical dos planos que fizeram para nós.
Uma quebra radical de coisas endurecidas e cristalizadas. Amarras poderosas que nos atam a tantas formas de pensar e agir que jamais serão nossas, sempre serão dos outros. Eu sempre tive um incômodo horrível de viver segundo os ditames dos outros. Era como uma traição. Era como me vender para uma felicidade que não me dizia respeito. Eu também jamais permitia que, quem quiser que estivesse ao meu lado, se sacrificasse por mim. Que mudasse por mim. Eu nunca gostei de esperar algo das pessoas. Toda espera é uma decepção. Que cada um forneça a nós de forma livre e espontânea o que tem a oferecer. A beleza da vida reside nisso: no desprendimento. Isso é uma verdade amarga que nossa espécie, cômoda por natureza, tem dificuldade de engolir. Comodismo tem a ver com rotina, planos e objetivos. Isso tudo nos conduz a um ritmo seguro de viver. Tempos interessantes nada tem a ver com comodismo e é por isso que os momentos de real atribulação, onde tudo chacoalha e as coisas caem no chão - inclusive nós mesmos - é que são os momentos onde a vida pulsa em toda a sua beleza caótica.
Talvez o mais sensato fosse ser cômodo. A maioria vive assim e não há razão para duvidar da real satisfação que eles tem com isso. Mas alguém seria tolo de achar que poderia ensinar ao fogo para parar de queimar? Para que a água não molhasse?
Aos condenados e condenadas que vivem sempre em busca do mais interessante dos tempos: eu os saúdo com meu cálice levantado. Que a vossa coragem de sempre ir adiante inspire a outros tantos que precisam. Que extingamos desse mundo a raça dos Enzos da Faria Lima que querem a tudo tornar mecânico, previsível e tedioso. Que tenhamos conosco a força de heróis como Sísifo, milenarmente empurrando sua rocha montanha acima; de Lúcifer, cuja força bestial ilumina esse mundo que todos acreditam pertencer a outro e não a Ele; de Raskolnikóv, que levantou a arma contra uma ideia e pode ver além da moral do homem comum. Tempos interessantes que se façam agora, mesmo que às custas do fim de tudo que pensamos ser.