Publicam-se muitos livros, mas poucos são aqueles que realmente são relevantes. Contam-se nos dedos aqueles que captam, ainda que
migalhas, as misérias nossas contemporâneas, oferecendo-nos uma nova e
instigante visão das coisas. Se essa nova visão é instigante e capaz
de produzir debates e efervescentes polêmicas, estamos diante de uma obra desse
tipo. Agora se essa obra não gera apenas debates, mas desavenças e convulsões;
se coloca em cheque certezas solidificadas e as torres de marfim intocáveis de
certos intelectuais; se
essa obra não apenas enfia a faca no corpo de seu oponente (escrever também
pode ser uma declaração de guerra) mas a gira diversas vezes, com a intenção de
ir mais profundamente na lógica dos argumentos, então estamos diante de um
livro não apenas relevante, mas de um livro necessário, cuja leitura é
premente para compreender e se posicionar no mundo.
"Anarquismo: crítica e autocrítica", lançado pela Hedra em
2011, é um desses livros. Reunindo dois textos do norte-americano Murray
Bookchin (1921-2006), traz ao leitor brasileiro uma série de questionamentos
sobre a relevância das táticas que a esquerda (no geral) e o anarquismo (no
particular) utilizam para enfrentar o capitalismo, em seu estágio de hegemonia
global praticamente absoluta. Os textos - "A esquerda que se foi" e "Anarquismo social ou anarquismo estilo de vida: um abismo intransponível" - foram publicados há mais de 20 anos (1991 e 1995, respectivamente) e geraram uma enorme onda de ataques contra Bookchin, vindos sobretudo de anarquistas, que chegaram a dizer que ele estava louco e sofria de complexo de superioridade. Quando as críticas a um autor começam a se resumir a evocações de patologia, em geral vale a pena ver o que ele tem a dizer, mesmo que seja para ler absurdos. Não é o caso de Bookchin: chamá-lo de mentalmente perturbado foi uma atitude infeliz e que colocou em certa obscuridade um autor que tem muitas coisas interessantes para dizer.
Apesar dos textos presentes no livro terem mais de duas
décadas de existência, conseguem ser violentamente atuais, especialmente para
nós aqui no Brasil, onde o debate político tem cada vez mais acirrado as
posições ideológicas e a direita, com uma esperteza fenomenal, tem conseguido
arregimentar mais e mais seguidores. Pior que isso: palavras como
"revolta", "rebelião" e "dissidência", antes
comumente associadas àqueles que estavam à esquerda do espectro político, estão
hoje no vocabulário padrão dos defensores de intervenção militar e do slogan
"Deus-Pátria-Família". Ser revoltado hoje no Brasil não é lutar
contra o Estado, a polícia, o racismo e a propriedade privada: o
"contestador", o sujeito "que mete a real", o que "critica
o sistema" é aquele que defende a pena de morte, é a favor das
privatizações e acredita que estamos em pleno regime comunista. É sintomático
que o maior movimento pró-impeachment tenha o nome de Revoltados Online, algo
impensável para um grupo de direita nos anos 80 e 90.
Socialmente, a primazia da revolta - vamos deixar de covardia e afirmar
de vez - não está mais na esfera das forças da esquerda, mas sim com os
Almeidinhas e Constantinos da vida.
Vou comentar brevemente alguns pontos que considero como os mais relevantes
nos dois ensaios do livro. Lê-lo me ajudou muitíssimo a avaliar a atuação da
"esquerda" em nosso país, que muitas vezes oscila do bom mocismo
hippie inofensivo à inconsequência niilista espetaculosa de quebrar qualquer
coisa à sua frente sob pretensas alegações revolucionárias, passando por um
governismo vergonhoso que, com muitíssima boa vontade, pode-se caracterizar
como centro. É uma leitura para todos os desgarrados que não abraçam os
slogans fáceis da despolitização que considera todas as facções políticas como
rigorosamente iguais (um caminho perigoso e mesquinho) nem
muito menos os coxinhas da "nova direita" (e não nos deixemos enganar
nem por um segundo: ela não tem NADA de novo, é a mesma e velha Casa Grande só
que agora com iPhone na mão e trabalhando em agências de publicidade), e tampouco conseguem se imaginar ao lado de
delirantes militantes do PCO ou de apalermados de centro estudantil. É
necessária uma mudança, uma radical
mudança, e as cartas que estão na mesa agora não são todas as
que existem no baralho.
Falemos do autor e do livro, então.
Bookchin começou sua trajetória intelectual nos centros trotskistas e,
portanto, sua formação tem muito do pensamento marxiano. Sua migração gradativa
para o anarquismo proporcionou-lhe refletir sobre quem desempenha, no atual
estágio de desenvolvimento do capitalismo, o papel de sujeito revolucionário.
Ora, sabemos que no marxismo clássico esse sujeito é o proletariado, o
trabalhador assalariado das fábricas. Seria através desse sujeito revoltado
contra o capital, que lhe impunha uma existência repleta das mais horrendas
privações, que se iniciaria a revolução; tomariam o poder e os meios de
produção, implantando o socialismo e preparando assim o futuro para uma
sociedade sem classes.
Bookchin, tiozinho simpático |
Dentro dessa visão de que o sujeito revolucionário deixa de ser "o
trabalhador" para ser "a comunidade", Bookchin defendeu que o
sindicalismo é um modelo que deve ser superado. Para ele, as comunidades
deveriam se organizar e - aí começa a sua grande polêmica com os anarquistas -
participar das estruturas de poder municipais, inclusive entrando em eleições
com uma plataforma que reivindicasse a democracia direta por meio de
assembléias populares, de modo que as decisões dos municípios fossem tomadas em
primeira mão por aqueles que diretamente vivenciam seus problemas. Segundo ele,
a administração municipal é, assim como a polícia, a cara mais imediata do
Estado na vida das pessoas. Muitas decisões importantíssimas que afetam nosso
cotidiano passam pelas decisões da prefeitura – por exemplo educação infantil pública,
uma responsabilidade municipal, que decide como e quando aplicar os recursos
recebidos do poder estadual.
Obviamente a tese de Bookchin foi recebida pelo movimento anarquista
tradicional com severas críticas. Como um anarquista se propõe a entrar no jogo
partidário, participar de eleições e aceitar as instituições políticas
burguesas, ainda que municipais? Cito integralmente o trecho onde Bookchin faz uma defesa de
seu municipalismo libertário:
“[o município] constitui a base para as
relações sociais diretas, democracia frontal e a intervenção pessoal do
indivíduo, para que as freguesias, comunidades e cooperativas convirjam na
formação de uma nova esfera pública. (...) A partir do momento em que os
municípios se federem para formar uma nova rede social; que interpretem o
controle local com o significado de assembléias populares livres; que a
autoconfiança signifique a coletivização dos recursos; e que, finalmente, a
coordenação administrativa dos seus interesses comuns seja feita por delegados –
não por “representantes” – que são livremente escolhidos e mandatados por suas
assembléias, sujeitos a rotação, revogáveis, e as suas atividades severamente
limitadas à administração das políticas sempre decididas em assembléias
populares – a partir deste momento os municípios deixam de ser instituições
políticas ou estatais em qualquer sentido do termo. A confederação destes
municípios – uma comuna das comunas – é o único movimento social anarquista de
ampla base que pode ser vislumbrado hoje, aquele que poderá lançar um movimento
verdadeiramente popular que produzirá a abolição do Estado. É o único movimento
que pode responder às crescentes exigências de todos os setores dominados da
sociedade para dar poder e propor pragmaticamente a reconstrução de uma
sociedade comunista libertária nos termos viscerais da nossa problemática
social atual – a recuperação de uma personalidade poderosa, de uma esfera
pública autêntica e de um conceito ativo e participatório de cidadania.”
Bookchin curtindo uma bad vibe sinistra |
Outra tendência contemporânea do anarquismo que recebeu golpes
duríssimos de Bookchin foi o primitivismo. Essa tendência, que tem em John
Zerzan um de seus mais conhecidos expoentes, tem como tese fundamental que “a
civilização” é um mal em si mesmo e que deve ser superada. Assim, todas as
conquistas da civilização – agricultura, linguagem, ciência, tecnologia, artes,
etc – devem ser destruídas para que o homem novamente viva em seu estado
primordial de caçador-coletor, sem hierarquias e não exercendo poder sobre
outras criaturas humanas ou não-humanas. Os primitivistas defendem que o
estágio civilizatório atual é um desvio na história da raça humana, um
brevíssimo período para uma espécie que já existe há mais de 2 milhões de anos
e que, nessa trajetória, viveu a maior parte do tempo em “harmonia” com “a Natureza”.
Superar a civilização não é apenas desejável, mas também necessário: o estilo
de vida por ela inaugurado – com produção agrícola, domesticação de animais, especialização
do trabalho e crescimento tecnológico – terminará por fatalmente destruir todo
o planeta.
Bookchin jogando um Counter Strike entre uma crítica e outra |
Cito Bookchin:
“Crucial é que a regressão do primitivismo dos anarquistas de estilo de
vida nega o mais destacado atributo da humanidade enquanto espécie e os
aspectos potencialmente emancipatórios da civilização euro-americana. Humanos são
muito diferentes de outros animais, na medida em que fazem mais do que meramente
adaptar-se ao mundo à sua volta; humanos
inovam e criam um mundo novo, não só
para descobrir seu próprio poder como seres humanos , mas para fazer o mundo ao
seu redor mais adequado ao seu próprio desenvolvimento, tanto em termos de
indivíduo, quanto de espécie. Ainda que a capacidade de transformar o mundo
esteja distorcida na sociedade irracional de hoje, ela é um dom natural e um
produto da evolução biológica humana – não só um produto da tecnologia, da
racionalidade e da civilização. O fato de pessoas que se dizem anarquistas
defenderem um primitivismo que beira o animalesco, com sua mal-disfarçada
mensagem de adaptação e de passividade, é uma vergonha diante de séculos de
pensamento, práticas e ideais revolucionários; isso difama as memoráveis
tentativas da humanidade de se libertar do provincianismo, do misticismo, da
superstição, visando transformar o mundo.”
A proposta primitivista é cativante. Força-nos a pensar, de modo
radical, a nossa relação com a Natureza. Ela direciona um olhar desconfiado
perante todas as comodidades do dia-a-dia que nós, especialmente os moradores
de grandes cidades, estamos acostumados a ter em tal nível que nem conseguimos
imaginar como seria a vida antes de sua existência. Jamais negarei o valor de
questionamentos desse tipo e sou um entusiasta ilimitado de todo e qualquer
pensamento crítico em relação ao desastre da era moderna. Os que buscam modos
de vida à margem do consumo e em comunidades mais ou menos isoladas, vejo-os
como indivíduos de coragem exemplar, que venceram os encantos da Hidra
Neoliberal e seus milhões de confortos e prazeres. A eles brindo, hoje e sempre. Mas o supremo “não!” que eles
dizem tem embutido também um certo sabor da derrota de todos os sonhos e
esperanças coletivas: se a revolução se resume agora a deixar de trabalhar e
viver do lixo dos outros, a negar “a civilização” mas continuar usando
computadores e todas as suas facilidades, e os que não embarcam nesse jogo hedonista são vistos como parte
do problema, então não falemos mais de solidariedade ou justiça, mas
simplesmente de méritos e conquistas – o que tornaria os adeptos do pensamento anticivilização mais
próximos do discurso empresarial do que do revolucionário.
Outras tendência que mereceu críticas ferozes de Bookchin foram os
pacifistas. As atuais demandas sobre controle de armas para civis como forma de
“promover a paz”, defendidas inclusive por muitos setores da esquerda, soariam
como abomináveis para os anarquistas e revolucionários do século XIX. Naquele
então, era mais do que claro que armar o povo, treiná-lo e capacitá-lo para
atuar como milícia era vital. Isso se justificava de modo intransingente: o
monopólio da violência não deveria pertencer ao Estado. O sentimento
antimilitar era fortíssimo, mas jamais veríamos imagens de rifles quebrados ou
posicionamentos favoráveis ao desarmamento da população. Hoje, quando surge
alguma personalidade defendendo o direito de portar armas, a esquerda em geral cai
matando em cima com as alegações de “fascista”, “mais amor por favor” ou algum
meme engraçadinho para “lacrar” a discussão. A defesa do uso de arma é vista,
sempre, como violenta em si mesma e como tendência ao militarismo, o que são – sempre
foram, segundo Bookchin – coisas completamente distintas. Enquanto o berreiro
antiarmas segue forte, o “outro lado” procura se armar... [ATUALIZAÇÃO de 2018: escrito há quase três anos, na época de sua concepção Bolsonaro era ainda um palerma qualquer. Sua candidatura recente deveu-se, em muito, à defesa do porte de arma, sob uma ótica completamente fascista].
O livro fecha com a questão do reformismo versus revolução. Hoje em dia,
a defesa de direitos trabalhistas tem muito de governismo (quando este não
corta direitos, claro) ou participação de partidos que desejam abocanhar uma
parcela de poder e somente isso. Era diferente com os revolucionários do século
XIX, que entravam na luta por reformas como uma forma de mostrar o fracasso do sistema atual, além de
garantir condições menos humilhantes para os trabalhadores de então – tudo isso
sem jamais tirar do horizonte a superação do sistema capitalista. A reforma era
demandada, portanto, como uma tática para um objetivo mais amplo. Faz sentido:
ao invés de esperar uma revolução que tornará todos iguais (e que ocorrerá em
um futuro incerto e via de regra distante) garantia-se uma situação melhor aqui e agora, especialmente para quem
estava em piores condições. Entretanto a demanda por reformas, que deveria ser o
preparo da corda que futuramente estrangularia o capitalismo, terminou por
enroscar-se no pescoço da própria esquerda, levando-a a adotar de modo
irrestrito a prática do mal menor e conduzindo-a “a um pântano liberal de
humilhações e concessões infindáveis” – a imagem do Paulinho da Força Sindical é o que
me veio imediatamente à cabeça quando li isso pela primeira vez.