Trabalhei com telemarketing uma boa parcela da minha vida. Não nascendo em uma família rica, e contando apenas com a formação da escola pública, tive que me virar em uma série de trabalhos ruins na transição para a vida adulta: o primeiro foi um estágio em eletroeletrônica, onde fazia manutenção em máquinas de solda em diversas empresas do ABC e região; depois desse trabalho entrei no estoque de uma farmácia; depois de lá trabalhei por um curto espaço de tempo no IBGE; em seguida, uma tentativa frustrante de vender cursos de inglês. Logo depois disso, me vi sentado em uma operação de telemarketing. Cobranças enérgicas por tempo de atendimento. Metas de vendas nunca alcançadas. Horários humilhantes. Sábados maravilhosos da primeira juventude ouvindo gritos histéricos. O sabor da derrota experimentado dia após dia.
Sabor que tornou-se tão familiar, tão próximo, que me parecia natural a opção pelo comodismo. Aceitar a humilhação de seis horas no inferno seis vezes por semana. Humilhação que, na época, fez-me escrever essa letra para a banda que eu tocava. Eu trabalhava na Telefônica, no atendimento de reclamações de defeito - por aí você já pode entender o nível de felicidade das pessoas que eu ouvia todos os dias:
Chego sento, o atraso é marcado, computado
3% do salário descontado por seus constantes atrasos
Sendo avaliado, medidominha linha está com prazo de religamento vencidopor favor senhor queira aguardarque em 24 horas um técnico vai até o lugarpara sua linha normalizar15 minutos é tudo que tenho para comer alguma coisaenfim, relaxargritos rasgando a parede auditivaminha linha está muda há mais de três diaseu não vou pagar esta conta abusiva!Senhora: eu queria que telefone fosse de graçatodos usando e não pagando nadameus dias, então, seriam tranqüilose seus escrotos gritos não teriam sentidonão sou eu quem decide o valor de um DDDnem quantos telefones públicos uma rua pode tersou apenas mais um otário assim como você.
A música, "Seis horas no inferno" pode ser ouvida aqui a partir dos 8:41 https://www.youtube.com/watch?v=78PX7aM-F6g
Nunca gostei de reclamar da vida. Sempre preferi fazer algo que pudesse me livrar dos apuros. Mas naquele momento não tinha como simplesmente apertar o botão do "Foda-se". Era um dinheiro necessário para ajudar a manutenção das contas de casa (sempre tive inveja dos jovens que trabalhavam apenas para custear apenas os próprios prazeres, ou para ajudar nos gastos com a faculdade). Entretanto, conforme os dias passavam, o cansaço de ontem somava-se ao cansaço de hoje, e o futuro não era nada mais do que um headset, um login e a odiosa voz de pessoas com as quais não me importava.
Acho que foi ali, no exercício de uma função tão humilhante e desumana, que a minha inaptidão pelo convívio social tornou-se mais aguda. E junto com isso, um importante aprendizado: após ouvir tantas pessoas diferentes, hoje não hesito nunca em julgar alguém pelo tom de voz. Basta apenas uma palavra pronunciada para que eu possa identificar - com cristalina clareza - todos os traços de personalidade de um ser humano. A diversidade é algo erroneamente valorizado. Somos animais bastante reduzidos e podemos classificar a humanidade toda em algumas poucas classes, todo o mais é acessório.
Recentemente encontrei uma agenda de telefones que utilizava na época do telemarketing (naqueles longínquos anos, ter um celular era ainda algo bem caro). Em diversas páginas, intercalados aos números de parentes e amigos, números de telefones com nomes de pessoas que atendi e que, de alguma forma, me trataram mal. Nomes e mais nomes com telefones (em alguns, cheguei a anotar o endereço), com promessas de retaliação (trotes, pixações de muro, cartas ameaçadoras). Não cumpri nenhuma delas até hoje e não consigo me recordar de nenhuma das situações listadas. É um testamento estéril de um passado remoto (a aceleração do tempo produz essa sensação de que tudo se passou há séculos, mas na verdade foram quinze anos), um arremedo de vingança, uma obra de recalque de um rato. De qualquer modo, o ódio que ali existe, em cada uma das páginas do diminuto caderninho - como aquele ódio é pungente! Penso que, mediante os sortilégios corretos, aquele ódio poderia se materializar na forma de um pequeno golem, viscoso e irritadiço, que perseguiria cada uma daquelas pessoas arrancando-lhes gritos de pavor; o golenzinho não apenas amedrontaria os desconhecidos nomes do caderninho, como eventualmente me traria presentes dessas pessoas: um dente arrancado a força, pontinhas de unhas cortadas, fios de cabelo coletados no banheiro, pedaços de pele recolhidos na base da estiletada; juntos colocaríamos todas esses souvenires do sofrimento alheio em um altar em frente ao caderninho de endereços, como forma de incrementar seu poder; faríamos músicas para louvar o poder do Ódio ali presente, cozinhando os pedaços de pele com os dentes e fios de cabelo em uma grande panela, até tornar essa mistura uma espécie de sopa; comeríamos alegres, eu e o golenzinho viscoso e irritadiço, que cresceria em fúria e tamanho a cada prato esvaziado; planejaríamos cada vez mais e mais coisas ruins, celebrações cotidianas de vingança contra todas aquelas pessoas ali reunidas, pessoas que eram somente nomes esquecidos, nomes que nasceram em uma ligação qualquer onde apenas eu guardava alguma vaga lembrança, enquanto que para aqueles animais eu nada tinha sido a não ser uma voz de atendente de telemarketing, tão descartável quanto qualquer outra.
E me sinto um imbecil ao lembrar daqueles nomes agora, quando o tempo desgastou tudo e tornou amareladas as páginas desse caderninho. Nenhum golenzinho viscoso e irritadiço para me acompanhar nesses vãos sonhos de poder, nenhuma vingança concretizada mesmo que fosse através de uma mentirinha inofensiva. Não reconheço os nomes daqueles que me ofenderam. E não sem um pouco de espanto, nas páginas desse caderninho encontro outros nomes, que não estão grafados com a mesma letra nervosa pelo afã de vingança, mas sim com a minha letra normal, junto ao nome de amigos e parentes; são, portanto, nomes de pessoas conhecidas; mas da mesma forma que os outros, não me recordo delas. Esforço-me, busco no fundo da memória, nada encontro. Um vácuo. Um chão limpo, sem poeira. Uma sala sem móveis nem quadros, e com janelas de onde se pode ver o Nada. As palavras, assim como as pessoas, fogem em revoada com o vento abrasivo do Tempo.