12.28.2012

O burguês, por Hermann Hesse


"O “burguês”, como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares de opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao ascetismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável. O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições."

Trecho de "O lobo da estepe", do Hermann Hesse.

12.21.2012

Fim do mundo


Escrevo isso nos momentos que antecedem o Fim do Mundo, o 21/12/2012, que todos sabem que não irá acontecer mas ficam alardeando, com o cinismo fanfarrão que é a insígnia  máxima da cultura moderna [o período anterior é completamente contraditório e assim permanecerá, como prova de que a doença cínica contamina a todos, e não me excluo do séquito dos enfermos]. O ano, pesado, arrasta-se ao seu final e, como quase todo mundo, proponho-me a fazer um balanço do ano dois mil e doze de Nosso Senhor.

Nas leituras, gastei boa parte do meu tempo em 2012 com René Guénon. Ainda estou nos princípios da extensa obra dele, seguindo as instruções de leitura contidas neste guia do Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais . Resolvi empreender a leitura completa das obras de Guénon por um motivo: o crescimento de pessoas, editoras, encontros e grupos que levantam a bandeira da Tradição Primordial mesclando-a com política, ativismo e outras tendências da Via da Ação, muitas vezes com claro interesse beligerante, e que consideram a obra de Guénon um "atraso", um "erro", "passiva" demais em um mundo que pede, a todos os momentos, que se passe da contemplação para o campo de batalha. Só o tom imperativo de tais discursos, onde defende-se que estamos nos momentos extremados do Fim dos Tempos, onde em breve o mundo vai acabar, me dá uma espécie de nojo misturado com cansaço: parece que estou ouvindo as mesmas ladainhas apocalípticas daqueles crentes fanáticos que pregam na Praça da Sé, com suas Bíblias cheirando a axilas mal lavadas. Publiquei muitos textos do Alexander Dugin aqui no blog, autor pelo qual nutri bastante interesse nos últimos meses, e que é um dos que se enquadram muito bem na rubrica daqueles que defendem a "Tradição" com um tom propagandístico, partidário e político. Entretanto, após ler dois livros dele, a conclusão que chego é que pouquíssimo da Tradição encontrei em seus escritos, praticamente nada de "verdadeiramente espiritual", mas em contrapartida encontrei um tipo de pensamento que coloca no liquidificador uma série de fontes das mais contraditórias, embeleza com uma verborragia carregada de termos apocalípticos e põe na prateleira das idéias prontas para o consumo de jovens que, cansados da democracia, buscam uma nova utopia salvadora, e de preferência que tenha cheiro de mísseis e marchas militares antigas. Cansado que estou das utopias, e desde há muitos anos, passo adiante e deixo os delírios de Dugin e companhia para quem tenha interesse na loucura de acreditar em um mundo melhor, e fico com o "atrasado" René Guénon.

Na música consegui, finalmente, voltar a ter uma "rotina" com ensaios em uma banda, o que não fazia desde 2009 com o fim do Life is a Lie (que esteja repousando eternamente). Digo "rotina" assim, entre aspas, pois os ensaios foram esporádicos, até porque não se trata exatamente de uma banda no sentido tradicional do termo. Gravamos as músicas, ou pelos 99% delas, na sala da casa de um dos integrantes, graças ao maravilhoso ser humano Steve Jobs e sua empresa Apple. É incrível como um Macbook pode fazer gravações com qualidade e facilidade impressionantes. E o melhor: com custo zero, praticamente. Possibilidades enormes, sem dúvida, mas ainda confesso que é bem estranho fazer música sem estar no clima de estúdio, rodeado de amplificadores, instrumentos, etc. Creio que no primeiro semestre de 2013, finalmente, lançaremos as músicas que produzimos ao longo do ano [como em todas as bandas da qual participei, o processo de composição é bem lento, quase penoso; nunca serei um "músico produtivo", daqueles que lançam dezenas de lançamentos ao longo do ano, todos excelentes; essa afirmação, contudo, jamais tirará do meu altar de ídolos o hiper produtivo Mikko Aspa, o homem que nunca dorme e participou/é as bandas Noise Waste, Grunt, Nicole 12, Clandestine Blaze, Deathspell Omega, Bizarre Uproar, Stabat Matter (deve ter outras quinhentas) e também administra uma gravadora, uma revista, um fórum de discussões (onde sempre participa com posts gigantescos) e uma produtora de filmes pornôs]. Não ouvi muita música nova esse ano, pelo menos não na quantidade dos anos anteriores (claro reflexo de um ano agitado onde trabalhei mais do que nunca). Os que mais me chamaram a atenção foram os seguintes:

- Blood of the Black Owl - "Light the fires!"
- Preterite - "Pillar of winds"
- Aluk Todolo - "Occult rock"
- Ianva - "La mano di gloria"
- Abuse Patterns - Reproducing the Pathology

O restante do que ouvi ou é antigo ou é rock, como Madball, que me peguei ouvindo novamente tempos atrás, ou Cwill, que é velho demais e eu escutei com a vivacidade de uma recém-descoberta pois a memória abandona-me mais e mais. Entretanto, o que mais me interessa ouvir atualmente é completamente distante de música; ruídos, experimentações, elementos desconexos me animam mais que melodias. Talvez porque proporcionem um escudo sonoro mais eficaz contra o mundo exterior, isolando-me do som nauseantes das conversas no metrô. Aliás, desenvolvi esse ano uma quase-fobia, que é a de entrar no metrô sem meu MP3 player. O trajeto deixa-me sufocado: as nuvens sonoras de conversas odiosas, o som das risadas desgraçadamente agudas de algumas mulheres, os filhos da puta que gritam nos celulares e tornam públicas suas discussões sobre NADA. Uso, então, meus fones de ouvido como um casulo de onde saio somente quando cruzo a porta de minha casa.

No campo da escrita, consegui desenvolver uma parte de um novo livro - um romance, para ser mais exato. Tem pelo menos dois cadernos com um monte de folhas anotadas, rascunhos de rascunhos, que precisam de uma ordem ainda. Não é algo que eu tenha deixado morrer, mas claramente releguei a um segundo plano, seja por compromissos profissionais, seja por ver em boa parte dos escritos uma vaidade enorme, que me fez ter muita vergonha de existir. No final das contas, muito da literatura é feito sobre vaidade, ou pelo menos a vaidade é a mola propulsora do escritor, que deseja publicar e ver seu nome "imortalizado" em uma folha de papel. Declarada ou não, ela sempre está. Mas acho que exagerei em muitas partes, e a meta é reescrever tudo o que foi feito, com o firme propósito de tornar minha sensibilidade quase nula em tudo o que virá. Nada do que sentimos, é importante; o mundo passa muito bem sem nossas queixas, nossas alegrias, nossas esperanças. Isso é tão claro para mim que chega a ser desonroso publicar qualquer linha que exceda o justo limite de uma vaidade controlada com férrea disciplina. Justamente por isso, a tendência é escrever menos e menos, até extinguir-me. 

Em relação à vida pessoal, este ano consegui solidificar laços muito importantes, tanto amoroso quanto de amizade. Foi excelente a convivência que tive com poucas mas valorosas pessoas, que não necessito nomear aqui. Conquistei, também, alguns novos amigos, pessoas com as quais aprendi muitas coisas e mantenho uma relação que desejo aprofundar no novo ano. Ao mesmo tempo, foi possível ver com mais clareza ainda o que me distancia de um monte de outras pessoas, o que me distancia de suas paixões e ambições, de suas perturbadas maneiras de existir e relacionar-se com os demais. Envoltas em um maremoto de contradições, anseios descontrolados e atitudes irresponsáveis, a maioria das pessoas me deixa com uma sensação de enorme preguiça. Considero-me, de certo modo, bastante diferente delas; não comungo de seus sonhos, de seus "problemas", de suas rotinas. Coloco-me o direito, apenas, de manter-me distante de tudo aquilo que não considero saudável, assim como de empurrar com um gesto, violento se necessário, qualquer ameaça ao meu círculo de convivência. É muito trabalhoso ter muitos amigos, e na verdade ter muitos amigos é no fim das contas não ter nenhum amigo de verdade. Por isso é melhor ter sempre cada vez menos e assim acumular mais - uma matemática estranha que parece saída de um livro de auto-ajuda, mas é o que a vida tem me mostrado na base do exemplo.

Para dar o clima de tensão necessário para a entrada de um novo ano, uma bela canção para encerrar o post: